Apostila do Seminário de Filosofia
TERCEIRA AULA
Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 29 de março de 1994.
Transcrição de:
Heloísa Madeira
João Augusto Madeira
e Kátia Torres Ribeiro
2a parte
A vida, plenitude do real. Deus é vivente, é zoon.
Acostumados a ver estas coisas no organismo vivente desde criança, são estes os traços que Aristóteles vai encontrar no que ele chamará de realidade, ou seja, ele procurará ver em tudo que existe, a sua unidade na variedade, a sua coesão e a sua hierarquia. O que é a mesmíssima coisa que encarar o real todo como se fosse um gigantesco modelo orgânico. Daí é que vem também a irritação dele com as matemáticas. Ele reconhecia, como os platônicos, que o mundo dos sentidos é muito difícil de captar, porque está em constante transformação. Seus elementos individuais não têm estabilidade suficiente para que você possa dizer algo sobre eles que já não se torne falso no instante seguinte. Os platônicos reagiam a isto fugindo dos entes sensíveis para os entes inteligíveis, sobretudo os geométricos, ao que Aristóteles objetava que, se os entes matemáticos tinham a estabilidade, isto não bastava para lhes dar a plenitude da existência. Ademais, os objetos matemáticos sofriam do mais grave de todos os defeitos – não serem objetos vivos. Segundo Aristóteles, evidentemente, o vivo é mais real que o morto. O vivo age, o morto apenas está num lugar, só vive espacialmente. O vivo, além de estar, age, produz efeitos sobre os outros seres. Esta é uma forma de existência mais intensa, mais plena e mais rica.
Dizia Aristóteles: vemos de um lado entes que são vivos, mas impermanentes, e de outro lado, temos entes permanentes, mas que não são vivos nem plenamente reais; sabemos que estes dois tipos de seres existem – sensíveis e matemáticos — , submetidos a leis que têm uma consistência própria e que não podemos mudar. Mas se estas duas formas de seres, reconhecidamente existentes são, cada uma delas, deficientes de um modo oposto, talvez haja alguma forma de existência que tenha as qualidades destas duas e esteja isenta de seus defeitos. Tenha a permanência do objeto matemático e seja viva e agente como os seres vivos. Este é o conceito aristotélico de Deus. Este Deus que ele só conhece como hipótese demonstrável por vias indiretas, do qual não tem experiência ou conhecimento direto, somente Ele atende ao requisito de ser perfeitamente real. Perfeitamente real seria aquilo que tivesse a forma mais intensa e rica de existência e ao mesmo tempo não fosse perecível, sujeito a acidentes. Só conhecemos isto como suposição que fazemos logicamente, não conhecemos por experiência, nunca ninguém viu Deus. Ele não se deixa apreender inteiramente pelos nossos órgãos dos sentidos. Por outro lado, também não se deixa apreender inteiramente pelos nossos cálculos e raciocínios lógico-matemáticos. Por um paradoxo, este Ser inapreensível se impõe a nós como o que seria o modelo da realidade plenamente real. Este vai ser o princípio fundamental da metafísica de Aristóteles. Este Deus seria o estrato superior da realidade. No entanto, este estrato não está separado do mundo sensível, como o mundo divino de Platão, mas está misteriosamente imbricado no real, ou antes, o real está imerso nele como dirá mais tarde S. Paulo Apóstolo: “Nele nos movemos, vivemos e somos”.
A importância das distinções em Aristóteles
Aristóteles admite uma complexa hierarquia do real; primeiro, não é composta de dois estratos, mas de uma infinidade. Em segundo lugar, o organismo é superior aos órgãos, mas, em relação aos órgãos, onde está o organismo? Não está em nenhum órgão. A relação complexa entre o todo e as partes que o compõem é uma outra característica do pensamento aristotélico. Daí a enorme preocupação de Aristóteles de estabelecer a relação entre unir e distinguir. A realidade é sempre é sempre composta de elementos distintos ou distinguíveis, porém nem sempre separáveis.
Do socratismo e do platonismo, com sua visão mais ou menos esquemática do mundo até esta rede de distinções enormemente sutis e trabalhosas há um salto, um aprofundamento monstruoso. Quando entramos no mundo aristotélico, subitamente entramos no nosso mundo. Estas distinções, cuidados etc. ainda fazem parte do mundo científico em que vivemos hoje. Ninguém se aventura a uma investigação científica sobre o que quer que seja se já não tiver todo um sistema de uniões e distinções mais ou menos estabelecido, um quadro conceptual dentro do qual os vários aspectos da realidade aparecem nas suas relações mais ou menos verdadeiras, que a investigação confirmará ou desmentirá.
Aí também há uma grande diferença entre toda a filosofia anterior e Aristóteles. Desde que surgem os primeiros filósofos gregos, os chamados pré-socráticos, até Platão, a principal ocupação deles consiste em dizer alguma coisa sobre a realidade, isto é, emitir uma doutrina sobre a constituição do mundo. Em segundo lugar, têm a preocupação de distinguir no mundo, radicalmente, o que é essencial do que é acidental, e portanto em dizer logo o segredo fundamental das coisas. Toda a filosofia pré-socrática se caracteriza pelo fato de que a cada filósofo corresponde uma fórmula que ele emitiu sobre o que é o mundo em essência. Um diz que é água, outro os quatro elementos, outro o ápeiron ou indefinido, e assim por diante. Resumem numa fórmula a constituição do real, e arquitetam todo um mundo de pensamentos para sustentar esta tese. Aristóteles não faz nada disto, não tem nenhuma doutrina sobre a constituição última do mundo. Ao contrário, ele se preocupa em conceber estratégias e métodos que permitam progressivamente ir descobrindo alguma coisa. Ele inventou o que hoje chamamos ciência. A atitude científica é aquela que se abstém da proclamação dogmática de uma verdade, mas pretende encontrar uma verdade fundamental, provada em todas as suas etapas e que uma vez demonstrada, se torne universalmente obrigatória para todos os seres pensantes.
Por que não existiu um aristotelismo grego. Teofrasto e Estratão.
Com este salto deixamos para trás a etapa dos gurus, dos quais Platão teria sido o último (guru é o sujeito que detém o segredo da verdade, e o enuncia em duas ou três fórmulas potentes, como aforismos ou sentenças proféticas). Platão, embora já seja um grande filósofo no sentido posterior, é o último guru da antiguidade grega. Ele entra na história mais ou menos como uma espécie de detentor de um segredo último, que ele enuncia em algumas fórmulas como que reveladas. De Platão para Aristóteles temos um salto imenso, no sentido da conquista do juízo crítico e da autoconsciência da limitação humana. Comparado com Sócrates e Platão, para não falar dos antecedentes, Aristóteles é de uma atualidade chocante. E, sendo assim, começamos a entender porque não existiu um aristotelismo no mundo grego. A filosofia aristotélica tinha propostas que estavam muito além e muito acima das exigências momentâneas da mente grega. Por isto mesmo, embora o Liceu Aristotélico tenha continuado a existir, o aristotelismo desaparece de dentro do próprio Liceu e ele só tem propriamente um discípulo que podemos dizer que é aristotélico – Teofrasto. Este é apenas doze anos mais novo que Aristóteles, da mesma geração. Produz duas obras importantes – uma Metafísica ( apresentação da metafísica aristotélica ) e outro livro chamado Os Caracteres, série de perfis psicológicos de tipos, que conserva o vigor e atualidade até hoje, principalmente através da tradução e complementação que lhe deu La Rochefoucauld. Teofrasto é o único discípulo que captou algo de Aristóteles e pode ser dito aristotélico.
O seguinte escoliarca do Liceu – Estratão de Lampsaco – já não é aristotélico de forma alguma, embora imagine que o seja. Acredita estar sendo fiel ao mestre no instante em que expõe doutrinas que são já lhe são radicalmente contráras. Estratão interpreta Aristóteles num sentido empirista, isto é, declara que todo o conhecimento vem exclusivamente pela experiência sensível. Mas Aristóteles não é nem empirista nem racionalista, e acho mesmo que ele não veria nenhum sentido nesta oposição. Segundo ele, o inteligível não está separado da realidade empírica, oculto num céu onde só possa ser alcançado pela razão pura; está antes imbricado no tecido mesmo da experiência, de onde é preciso desembrulhá-lo pelos esforços conjugados da análise metafísica e da pesquisa experimental. A experiência, para Aristóteles, não é concebível fora dos quadros lógicos que, por sua vez, se fundam na intuição intelectual dos primeiros princípios, os quais não poderiam ser obtidos da experiência ( por mera indução quantitativa ) mas também não poderiam chegar ao nosso conhecimento sem ela. Estratão esmaga logo toda esta sutil combinação, reduzindo a filosofia de Aristóteles a um empirismo, um erro tremendo que, quase dois mil anos mais tarde, será causa de outro erro complementar e oposto, que é o de tomar Aristóteles por um racionalista hostil à investigação experimental. ( Não há filósofo em torno do qual se tenham acumulado tantas imagens equivocadas, e é por isto que, neste curso, adoto esta abordagem indireta, de ir cercando Aristóteles através dos Aristóteles imaginários concebidos pelos que o comentaram, defenderam e atacaram. )
Assim o aristotelismo vai desaparecendo. Mesmo a edição dos textos de Aristóteles no século I a.C. (272 anos depois de sua morte), não suscita o nascimento de nenhuma escola aristotélica. Enquanto isto, a Academia platônica continua existindo e continua produzindo grandes nomes. As obras de Aristóteles passam a ser lidas por membros da Academia platônica e os primeiros grandes comentaristas de Aristóteles na Antiguidade — Alexandre de Afrodísia, Porfírio e Siriano – são todos neoplatônicos, não são aristotélicos.
Desde o último aristotélico – Teofrasto ( 372 a.C. ) até o primeiro aristotélico em sentido pleno que surge na história – Avicena ( 980 d.C. ), no mundo islâmico – passaram-se 1.400 anos! Este fato não tem sido enfatizado e sublinhado como o estou fazendo neste momento. Não existiu nenhum aristotelismo no mundo, depois da morte de Aristóteles, até decorridos 1.400 anos, a duração de uma civilização. Não de um país, ou de uma escola filosófica, ou de um regime político – é a duração de uma civilização inteira, um ciclo inteiro de transformações. O mundo islâmico, hoje, ainda não tem 1400 anos de idade. Se se observar o que ele é hoje, comparado a seus dias de glória, pode-se afirmar que é uma civilização já em decadência. Em 1.400 anos dá tempo de nascer, crescer, florescer, decair e morrer uma civilização. Portanto, afirmo taxativamente: Aristóteles não fez parte do mundo grego. Foi uma semente grega que ficou guardada num vidrinho para florescer somente dentro do que chamamos civilização europeia. Aristóteles é um filósofo europeu e não grego.
Isto não é estranho. Diz Goethe: “O ente que realiza perfeitamente a qualidade que define uma espécie já não pertence a esta espécie”. Já está em outro plano. Assim como o homem cujas qualidades e virtudes realizem o que existe de melhor no ser humano já nos aparece como sobre-humano, com algo de angélico. Como Santo Tomás de Aquino – o “Doutor Angélico”. Ou um tipo como São Francisco de Assis, com qualidades que são humanas, mas realizadas de maneira tão integral que você vê que de certo modo passou para uma outra espécie.
Émile Boutroux na sua pequena biografia de Aristóteles diz que este não é só um indivíduo, mas é a consumação, a perfeição de todo o gênio da civilização grega. É verdade isto. Mas esta perfeição, esta consumação aparecem como o fruto de uma árvore, que já não faz mais parte dela, que vai ser destacado e vai ser a semente de outra árvore. O fruto perfeito, por sua vez só age – e esta ação é a própria realidade – numa outra árvore que provém dele. Este hiato de 1.400 anos entre a produção das obras de Aristóteles e o surgimento de um aristotelismo no mundo está na própria natureza do aristotelismo que, representando o suprassumo do legado grego, não poderia fazer parte da civilização grega. Assim como a herança deixada por um milionário não faz parte da fortuna dele, pois só é herança depois que ele morre. A herança necessariamente pertence a um outro. Ora, ainda assim, esta herança não é apropriada de repente e toda de uma vez. A Europa toma posse do pensamento aristotélico, mas não é uma posse integral. Uma posse no sentido imobiliário, em que se tem a escritura definitiva. A tomada de posse do aristotelismo pela civilização ocidental é um processo que começa a partir desta época, entre os anos 1000 e 1300, que é justamente o que chamamos período de formação do pensamento escolástico, e que na verdade não alcançou sua plenitude até hoje.
O último grande escolástico citado na nossa lista é Duns Scot, nascido em 1266, que já não era propriamente um escolástico. Entre sua morte e o nascimento do sujeito que foi a grande expressão do aristotelismo renascentista – Pietro Pomponazzi – decorrem 200 anos: tempo da história inteira do Brasil como nação.
A História é feita de previsões errôneas
Nosso senso do tempo tem de sofrer alguns reajustes para estudarmos a história das idéias, onde as coisas transcorrem com uma lentidão terrível. Dizia Homero: “Os moinhos dos deuses moem lentamente”. São eles que produzem a farinha para o pão da história humana. As decisões dos deuses são tomadas lentamente, lentamente entram em vigor e produzem consequências que se desenrolam ao longo dos milênios. Para acompanhá-las temos de entrar numa espécie de câmara lenta. Nosso Congresso toma “decisões históricas” toda semana, mas é claro que esta impressão é baseada numa imagem falsa do que seja História. Não cabe ao próprio personagem da cena dizer qual a importância que suas ações de hoje vão ter no futuro. Estas “decisões históricas” são todas irrelevantes. Mas Weber diz que, com os eventos que parecem importantes no momento, costumam acontecer duas coisas – a primeira é que esses acontecimentos se fundem na massa acinzentada do historicamente indiferente; a segunda hipótese, é que o sentido dos eventos acaba sendo tão alterado que vira às vezes o seu contrário. Weber também diz, em outro lugar, que a História é o conjunto dos resultados impremeditados das nossas ações.
Os políticos que tomam decisões segundo uma interpretação simplista e esquemática do momento, caindo no engodo da retórica, arriscam-se a que suas decisões tenham efeitos inversos aos desejados. Quando Luiz XVI manda convocar os Estados Gerais, é para dar um fim ao clima de insatisfação. Ou quando o Czar da Rússia liberta os escravos, é para eliminar uma situação de insatisfação causada pela injustiça. Como resultado, Luiz XVI é guilhotinado e o Czar morre na explosão de uma bomba. Aqueles atos que, no entender dos personagens ( e segundo a retórica dos intelectuais do momento ), levariam à restauração do seu poder, causam em vez disto a sua extinção. É difícil o caso de um evento histórico que tenha efetivamente o sentido que seu personagem desejou ver nele. Como os mil anos do Reich, que se esgotaram em doze. Aquilo que parecia ser a culminação de um movimento nazifascista foi na verdade o seu fim. Imaginem se os autores da Revolução, ao guilhotinarem metade da França, soubessem que o resultado de tudo aquilo seria um império, um imperador que restauraria tudo e criaria uma nova dinastia, que depois cairia para dar lugar à volta da velha dinastia, e que em 1848 seria preciso fazer uma segunda revolução para morrer um bocado de gente novamente e que só por volta de 1870 haveria paz liberdade e prosperidade? Robespierre acreditaria nisso? Acreditaria que viria a entrar para a História como o protótipo do tirano sanguinário, em vez de como um libertador do povo?
O sentido do evento histórico é sutil, é melhor consultar os deuses e tentar ver as coisas a uma distância muito grande. Para isto, precisamos ter aquela neutralidade compassiva que nos permita querer ver o sentido das coisas como ele realmente é e não como o desejamos. Mas se já aderi a esta ou àquela causa, com todo o empenho, desejo evidentemente que ela seja vencedora e isto me faz apostar nela e ver as coisas de uma certa maneira. Não que todo militante seja um sonhador. Há muitos que são realistas, pessimistas ou cínicos. Mas é impossível que o militante não veja a situação em termos de vitória ou derrota da sua causa, e nem de longe imagine que outras contradições, alheias ao tema do seu interesse, venham a decidir o curso das coisas.
Então, se imaginarmos o que os contemporâneos de Aristóteles pensava dele, veremos que estavam todos enganados. E o próprio Aristóteles só não se enganou nisso porque não fez a menor previsão sobre o que aconteceria com o seu pensamento. Isto é outra coisa que nos parece assombrosa. Aristóteles não parece ter deixado para os seus discípulos nenhuma indicação sobre o que fazer. Não deixou uma orientação que pudesse de certo modo permitir a continuação do seu trabalho, como tinha feito Platão. Na Academia havia uma série de valores, de critérios tão bem estabelecidos que era só continuar como o mestre tinha começado que daria tudo certo. Mas Aristóteles não fez nada disso. Seu testamento é meramente pessoal, como os que se fazem hoje – o destino dos seus bens. É incrível a total despreocupação de Aristóteles com um trabalho que não tinha sido apenas pessoal – um trabalho coletivo, com centenas de pessoas contratadas graças a Alexandre para trazer informação para o Liceu. Como este trabalho imenso é deixado, quando ele morre – pelo menos ao que se sabe – sem continuidade? Explico isto em parte pelo fato de que quando Aristóteles morreu, este trabalho, para ele, estava praticamente encerrado; nos seus dois últimos anos de vida, ele estava no exílio e provavelmente prevendo que ia morrer, pois já partira doente, e sem comunicação com o pessoal do Liceu em Atenas. Em segundo lugar, ele não era um reformador do mundo. Não fazia planos para a vida alheia, que são a principal ocupação dos reformadores do mundo. Fez o que pode, e deixou os discípulos à vontade para fazerem o que quisessem. Em terceiro lugar, duvido que o próprio Aristóteles tivesse uma visão muito exata da revolução que havia começado. Não poderia, a não ser que fosse um profeta, imaginar o que ia acontecer com sua obra: o destino mais extravagante que se possa imaginar. Primeiro vai sumir tudo, todo mundo vai esquecer e quem ler não vai entender. Depois, tudo em torno vai acabar; esta polis, este regime; a Grécia será dominada pelos romanos; em seguida, vai erguer-se no mundo oriental um povo, o povo judeu, e do meio dele aparecerá um tal de Jesus Cristo que vai fundar uma nova religião sem importância, mas que trezentos anos depois vai dominar tudo isto; então vai aparecer algo chamado Igreja, que reconstruirá o mundo em novas bases; depois disto, mais a Oriente ainda, vai aparecer outro maluco, chamado Maomé, que vai trazer outra religião que dominará as Arábias e o Iran. Por lá é que vão ser reencontrados os manuscritos gregos, que serão passados para o árabe, depois para o latim, e isto vai cair nas mãos de um tal de Sto. Alberto Magno, que transmitirá a coisa a seu aluno Tomás de Aquino, o qual fará um estardalhaço a respeito – e então, finalmente, todo mundo vai ser aristotélico durante quatrocentos anos. Que história mirabolante! Poderia Aristóteles imaginar, mesmo de longe, esse destino póstumo das suas obras? Isto é absolutamente impossível. Portanto, Aristóteles não tinha a mais mínima idéia do que viria a acontecer.
Causas do desaparecimento do aristotelismo após a morte do mestre.
As visões iniciais que temos de um assunto às vezes determinam todo o restante das relações que teremos com ele. Por isso achei muito importante corrigir e explicar esta noção de Aristóteles como fenômeno grego. Pode ser grego nas suas causas, mas não nos seus efeitos.
Na aula passada mencionei que entre outras causas desta evolução anormal do aristotelismo, houve o fato de Aristóteles ter sido exilado em circunstâncias um pouco suspeitas por causa de suas ligações com Alexandre, o Grande. Relações que estavam estremecidas porque, numa crise política, Alexandre tinha mandado matar um sobrinho de Aristóteles, motivo pelo qual, apesar da amizade, todas as relações cessaram. Não chegaram a entrar em hostilidade mas não se procuraram mais para evitar de ter de acertar este ponto doloroso. Apesar deste distanciamento, quando surge uma guerra contra a Macedônia, todos os que tinham relações com o governo macedônico tornaram-se automaticamente suspeitos e Aristóteles teve de fugir. Não há indício do que aconteceu no Liceu em seguida, mas podemos supor que quem é amigo de suspeito, suspeito é. Portanto, deve ter havido uma correria geral para apagar indícios de relações com Aristóteles. Imagino que os textos dele foram-se tornando raros exatamente por isso. A história dos textos escondidos na caverna pode ser fictícia, mas a lenda deve ter sido inventada para explicar algo que aconteceu efetivamente. O fato é que os manuscritos sumiram e só dois séculos e meio depois reaparece a coleção nas mãos de Andrônico de Rodes. Mas não podemos explicar de maneira alguma pelo sumiço dos manuscritos a ausência de um aristotelismo grego. Primeiro porque não é possível que tenham sumido todos os manuscritos; segundo porque o Liceu continua funcionando. Acho que havia mesmo uma incompatibilidade da mente grega para absorver esta nova atitude intelectual, tão isenta daquele fundo profético-religioso que o grego estava acostumado a encontrar nos seus pensadores. Sobretudo nos séculos seguintes, a crise político-social da Grécia, inclusive com a extinção da chamada democracia grega e sua substituição por governos ditatoriais, vai fazendo com que os indivíduos, já não podendo participar da política, se sintam isolados e percam o sentido de participação na história e comecem a se preocupar cada vez mais com problemas de ordem psicológica e particular. Daí o sucesso das novas escolas filosóficas, das chamadas neo-socráticas — cínicos, megáricos –, dos estóicos e sobretudo dos epicuristas, porque estes todos transferiam o eixo das preocupações filosóficas desde as grandes questões teoréticas para problemas psicológicos. Tirando o estoicismo, não são propriamente escolas filosóficas, são como se fossem terapias tentando oferecer um alívio mais ou menos fictício, postiço, para os sofrimentos humanos, mediante disciplinas mentais. A proposta epicúrea, por exemplo, é nitidamente de nunca pensar na realidade, mas concentrar-se na recordação dos momentos agradáveis e só pensar neles, como se o presente não estivesse acontecendo. Tudo isto acompanhado de uma retirada da vida civil, para você se fechar dentro de uma espécie de ashram. O famoso “Jardim de Epicuro” é um ashram, para onde as pessoas iam para não sair mais, e onde ficavam curtindo as coisas simples da vida: comer, dormir, conversar com os amigos, só falar de assuntos agradáveis e nunca tocar nos males do presente. Uma espécie de sistematização da evasão. Como chamar a isto de filosofia? Não só o epicurismo como outras escolas deste tipo é o que estava em demanda – era o que as pessoas queriam, pois buscavam alívio urgentemente. Quem está em busca de alívio não está em busca do conhecimento da realidade. O conhecimento é um encargo, uma responsabilidade a carregar e supõe um certo equilíbrio das faculdades, que as pessoas não estavam absolutamente em condições de oferecer. Então, o aristotelismo desaparece não só por causa do fator material, da ausência dos textos, mas também por um fator psicológico- histórico, que o tornava desnecessário, do ponto de vista grego, naquele momento.
A gnoseologia de Aristóteles é organicista como sua cosmologia
Voltando às características básicas do pensamento aristotélico, que foram perdidas na geração seguinte do Liceu, vemos que desta visão inicial do real como organismo e como hierarquia, Aristóteles tira uma conclusão que é das mais importantes até hoje. A de que se a realidade que se oferece a nós tem uma forma de existência que se assemelha à do organismo – isto é, de ser uma unidade múltipla, vivente, temporal – o conhecimento humano devia ser exatamente a mesma coisa. Ou seja, não somente o ser tem esta forma orgânica de existência – a unidade de uma diversidade imersa no tempo e num processo evolutivo –, mas o conhecimento humano também deve ser uma unidade muito complexa de elementos diversos, coeridos sob uma forma orgânica, e existentes no tempo através de uma sucessão de transformações.
Além do mais, tal como o organismo humano é uma coleção, uma unidade composta de estratos hierárquicos diferenciados, o conhecimento também deve ter vários estratos diferenciados que vão emergindo uns dos outros e que estão intrinsecamente ligados uns aos outros, de maneira a poderem ser distinguidos, mas não separados. Estes estratos, tal como a própria hierarquia dos seres viventes, se dispunham desde aquilo que é mais simples e pouco coeso até aquilo que é mais complexo e mais coeso. As formas de vida mais simples que conhecemos, as mais elementares, têm uma coesão muito deficiente. Por exemplo, uma ameba pode ser cortada ao meio e resiste a esta divisão. Se você cotuca uma ameba, ela se move, tem notícia de que algo de ruim se aproxima, e foge da agressão. Mas se você a cortar ao meio, diante do fato consumado, cada parte vai para um lado e trata de viver separadamente. Se uma minhoca é partida ao meio, as duas partes continuam se agitando. Têm uma forma de unidade deficiente. Conforme os animais vão manifestando funções mais diferenciadas, mais abrangentes e superiores, ao mesmo tempo a coesão destes animais é maior. Se você corta um pedaço de uma planta, ela pode continuar vivendo. O pedaço cortado pode morrer, mas o resto continua vivendo. Um animal já não pode ser seccionado da mesma maneira. E o princípio da coesão vai-se tornando mais firmemente uno para proporcionar uma abrangência maior das funções. Nesta escala, onde à maior complexidade corresponde uma unidade mais coesa, o homem estava evidentemente colocado no topo. O homem é o mais complexo e, ao mesmo tempo, o mais coeso dos seres terrestres.Aristóteles via o processo do conhecimento exatamente nos mesmos termos em que via esta escala dos seres viventes, da qual mais tarde sairá, por uma aplicação óbvia de um preceito aristotélico, a teoria da evolução. Esta, pois, se encontra pressuposta nesta escala dos seres viventes proposta por ele. É só temporalizar — coisa que Aristóteles também não falou, mas é uma decorrência óbvia de sua filosofia –, e você terá aí um esboço da teoria da evolução. Darwin reconhecia sua imensa dívida para com Aristóleles, e dizia: “Lineu e Cuvier foram as minhas duas divindades, mas não passam de colegiais quando comparados ao velho Aristóteles.”
A esta unidade diversa da visão do real corresponde então a unidade diversa como visão do processo cognitivo.
l. A sensação. — O conhecimento começa para Aristóteles com as simples percepções sensíveis. Estas são pequenas alterações que um organismo sofre devido à entrada de uma informação que vem do exterior. Nem todos os seres têm a capacidade de receber estas informações. Os minerais, por exemplo, não a têm. Esta capacidade já marca a diferença entre seres mais simples e mais complexos.
2. A memória. — Porém, diz Aristóteles, entre os seres capazes de receber informações sensíveis, há alguns capazes de retê-las, e outros não. Por exemplo, a ameba não tem memória, mas o mosquito já tem. Então, a memória significa a capacidade de você repetir a mesma informação na ausência do estímulo. Ou seja, se na primeira vez o estímulo veio de fora do organismo, da segunda vez o organismo mesmo o produz, de maneira atenuada. Entre os animais que não têm memória e os que têm existe um salto de complexidade e qualidade, similar àquele que existe entre os seres que não têm percepções sensíveis e aqueles que as têm. Já temos um duplo salto: os insensíveis e os sensíveis, e dentre estes, os que são dotados de memória.
3. A experiência. — Dentre os seres dotados de memória, alguns são capazes do conhecimento por experiência. O que é isto? É um princípio de generalização em que, de várias experiências iguais, você conclui uma regra mais ou menos comum. Vemos que um gato tem memória. Você o vê repetir certos circuitos de ações; porém ele não tem a mesma capacidade de aprender por experiência que tem um cachorro. Quem já tentou ensinar aos dois, verá que no caso do gato isto é quase impossível. O gato não consegue generalizar – fazer dos casos individuais uma regra — com a mesma facilidade do cachorro. E dentre os animais dotados de experiência, o que a tem em maior grau é o homem.
Resumindo os vários saltos até agora: insensível ® sensível ® memória ® experiência.
4. A técnica. — Porém, a experiência e o conhecimento por experiência se dão exclusivamente dentro de um organismo individual. Eu tenho as minhas sensações, tenho a memória e, a partir desta, concebo a minha experiência e crio uma série de circuitos repetíveis que me permitem reagir de maneira similar em situações similares. No entanto, o homem tem algo mais do que isto. Ele não apenas tem a experiência, mas ele pode resumi-la e transmiti-la a quem não a teve. Isto já é o que se chama técnica. Bismarck diz que só os imbecis aprendem com a experiência. “Eu aprendo com a experiência alheia”. Técnica é exatamente isto: um conjunto de preceitos que permite aprender com a experiência alheia e transmiti-la a outros, sem que você tenha de passar por ela. É obviamente isto que já caracteriza o homem.
Depois da experiência, vem então a técnica que é experiência condensada, resumida e distribuída socialmente. O indivíduo que pode aprender pela técnica tem um salto de velocidade e eficácia imenso em relação àquele que só tem a experiência. Com a técnica, começa o mundo da cultura e começa o mundo propriamente humano.
5. A ciência. — Depois da técnica, ainda há mais um salto. A técnica é apenas uma codificação das experiências repetidas. Além disso, temos uma forma mais condensada, mais eficiente e mais profunda de conhecimento. É o que Aristóteles chama epistemê, que traduzimos normalmente por “ciência”. É onde não somente se conhece e sistematiza o circuito das experiências repetíveis, mas se encontram os princípios que fundamentam a repetição das experiências. Desde o conhecimento pelos sentidos até a epistemê, no topo da pirâmide, existe um processo de simplificação e coerenciação cada vez mais abrangente. Ou seja: as experiências sensíveis são muitas, mas nos dão relativamente pouco conhecimento útil; a memória já resume isto e repete umas quantas informações significativas; destas, a experiência abole as repetições e conserva apenas os esquemas úteis; estes, na técnica, são simplificados e codificados de maneira a poder ser transmitidos, o que aumenta barbaramente a eficácia da ação humana. Finalmente, na episteme ou ciência, dois ou três princípios científicos que sejam encontrados permitem abarcar uma multidão de conhecimentos organizada, coesa e eficientemente. De modo que o conhecimento se escalona numa pirâmide cujos vários estratos são inseparáveis. Se saltar um, não tem o seguinte. Não se pode dizer: “Este conhecimento aqui é superior, podemos abandonar o inferior”. Não – ele é superior porque tem inferior por baixo. O tijolo de cima cai, se você tirar o tijolo de baixo. Esta hierarquia tem um sentido orgânico insecável. Os vários estratos são logicamente distinguíveis, mas não são realmente separáveis.
6. A sabedoria. — A escalada poderia parar por aí, e já teríamos dado conta da inteireza da esfera cognitiva no homem em geral. No entanto, Aristóteles admite que o homem ainda possa subir mais um degrau, elevando-se do conhecimento dos princípios que estruturam o mundo da experiência ao conhecimento dos princípios universais, princípios de todos os princípios. A isto corresponde um novo “órgão cognitivo”, o núus, “espírito”, órgão da sabedoria.
Porém, Aristóteles insiste que a sabedoria é própria somente de Deus, e que para o homem ela é antes um ideal realizado de maneira precária e parcial do que uma posse efetiva. Por isto, ele hesitará muitas vezes ao assinalar uma denominação para a ciência correspondente a este estrato. A denominação “metafísica” é de Andrônico de Rodes, e embora ela seja adequada sob muitos pontos de vista, Aristóteles não usa esse nome em parte alguma. Às vezes ele usa “filosofia primeira”, às vezes “teologia”, e às vezes — olhem que coisa significativa — “a ciência que buscamos”. Que buscamos, precisamente, porque não a possuímos. Por isto, no esquema da escala do conhecimento segundo Aristóteles, é justo incluir ou excluir o sexto estrato, a sabedoria, porque ela pertence à estrutura do homem como um ideal, mas não lhe pertence como posse efetiva.