Apostila do Seminário de Filosofia

QUARTA AULA

5 de abril de 1994

Transcrição de:
Heloísa Madeira,
João Carlos Madeira
e Kátia Torres Ribeiro.

1a parte

A intuição básica de Aristóteles é a idéia de totalidade – a esta idéia voltaremos muitas vezes, aprofundando mais e reconstruindo tudo a partir dela, que me parece a chave da obra.

O item que se segue – a estrutura da obra de Aristóteles segundo a tradição – nos dá a divisão que vamos usar como ponto de partida hipotético. Não quer dizer que eu aceite esta divisão e que ache que a organização a ser compreendida na obra de Aristóteles seja exatamente esta. Apenas, como esta estrutura é tomada como ponto de referência desde o começo da era cristã, vamos usá-la como ponto de partida de nossas investigações. Esta divisão foi mencionada também de passagem na primeira aula. Vamos aprofundá-la ao longo das aulas, e assim iremos estruturando este tema em torno de alguns pólos de atração aos quais retornaremos de tempos em tempos. A questão da intuição básica é um deles, a da estrutura da obra é outro.

O primeiro editor da obra de Aristóteles, que foi Andrônico de Rodes, fez um divisão de suas obras partindo da idéia de que ela deveria acompanhar rigorosamente as divisões que Aristóteles estabelecia no sistema das ciências, de modo que a divisão em volumes seria um reflexo da divisão ideal ou da divisão lógica das ciências. Esta divisão feita por Andrônico, embora muito criticada ao longo dos tempos, jamais foi alterada. A crítica principal que se pode fazer a ela é que a divisão do sistema das ciências é sempre do tipo ideal. Quando você estrutura o sistema das ciências, está definindo como esta divisão deveria ser, ou seja, quais os setores da realidade que estas ciências deveriam idealmente abordar e quais os critérios da divisão ideal. Enquanto isto, a divisão dos textos em volumes é uma divisão real e acidental. Porque, uma vez definido o sistema das ciências, primeiro: daí não decorre que o sujeito deva escrever um livro sobre cada ciência que ele tenha citado na divisão; segundo: mesmo que idealmente o indivíduo queira escrever um volume para cada ciência, não está dito que ele vá conseguir fazê-lo. Pode, por exemplo, morrer antes. Ou seja, divisão de textos é uma divisão de objetos, enquanto divisão do sistema das ciências é uma divisão de conceitos. Nem sempre uma coisa terá de acompanhar a outra. No conjunto da história da filosofia é raro que um filósofo escreva um volume para cada ciência de acordo com a divisão exata que ele fez dos vários assuntos. Um exemplo disto seria Kant. Ele divide os assuntos e escreve um volume para cada um. Outro exemplo, os escolásticos. Depois que a Escolástica foi-se consolidando – não ainda em Santo Tomás de Aquino -, firmou-se com ela uma divisão ideal das ciências que por sua vez se projetou numa divisão em volumes. Na obra do cardeal Mercier, por exemplo, há um rigoroso paralelismo entre as divisões do sistema e a repartição dos volumes, mas acho que esse paralelismo só pode se realizar perfeitamente em obras que expõem uma filosofia velha e consagrada, não naquelas que expõem a doutrina que o filósofo está criando naquele mesmo momento. A filosofia em estado nascente tem geralmente uma exposição improvisada e assimétrica. O neotomismo é por isto mais organizado, editorialmente, do que o tomismo. Se você tomar os escolásticos menores, sobretudo os mais recentes, por exemplo, Maritain ou André Marc, verá que eles fazem um volume de lógica, um de psicologia, um de metafísica, acompanhando a divisão das ciências.

Nesta divisão feita por Andrônico, não fica muito claro se ele está falando de idealidades ou de realidades, de conceitos ou de textos efetivamente existentes. O pior de tudo é que, se só havia sobrado, com as perdas, um terço da obra aristotélica, como este terço poderia acompanhar a divisão global do sistema das ciências? Mesmo que Aristóteles tivesse escrito os volumes rigorosamente de acordo com as divisões do sistema, se dois terços da sua obra foram perdidos seria muito pouco provável que sobrasse exatamente um pouco de texto para cada divisão, sem deixar nenhuma em branco.

A divisão de Andrônico é a seguinte: primeiro, haveria um setor consagrado ao método de todas as ciências; é isto que Aristóteles chama de Organon, que quer dizer “instrumento”. Aí estão os modos de esquematizar o pensamento que são comuns a todas as ciências, a todos os setores do conhecimento, os tratados de lógica, em suma, os tratados que se referem aos discursos de modo geral. Para se orientar no mundo de Aristóteles, há uma série de nomes que é preciso decorar, assim como nomes de ruas, para você saber aonde está entrando.

As Categorias: o primeiro livro da série “Lógica”

A primeira obra do Organon chama-se “As Categorias”. Categorias são as formas básicas sob as quais a realidade chega até nós. Você percebe alguma coisa e esta coisa que você percebe é ou um ente real – como por exemplo percebo vocês neste momento -, ou então é uma qualidade – quando você percebe que está com calor; ou é uma relação entre as duas coisas – quando digo que a caneta está em cima da mesa; ou é uma ação que está sendo praticada por algum ente – o cachorro mordeu o menino. Todas as coisas que posso perceber no mundo estão colocadas numa destas categorias. Elas são a divisão máxima da realidade. E seriam, equivalentemente, os vários tipos de conceitos possíveis.

Voltando à frase “o cachorro mordeu o menino”- pergunto: mas isso é real? Sim. A ação do cachorro morder o menino é real, mas uma ação pressupõe um sujeito que a pratique. No entanto o sujeito não pressupunha esta ação. O cachorro poderia ser perfeitamente real sem morder menino algum. Para que ele mordesse o menino seria preciso que ele já fosse real antes disto e que o menino também o fosse. Entendemos assim que a realidade da ação não é do mesmo tipo que a realidade do ente, daquilo que Aristóteles denomina substância. No entanto, ela é real e não poderíamos reduzir a realidade da ação à do sujeito. Não basta que o cachorro exista para que ele morda. Entendemos que a ação tem um tipo de realidade própria que não se reduz à realidade do sujeito, embora não exista sem ela.

Estas várias modalidades de realidade é que são as categorias. Isto do ponto de vista ontológico. Do ponto de vista lógico, dizemos que elas são as espécies de conceitos que existem. Ou seja, conforme as várias espécies de realidade, teremos outros tantos tipos de conceitos. As Categorias são o primeiro livro da lógica.

Os predicáveis: definição, gênero, propriedade e acidente

O livro trata também de uma outra distinção. Quando faço uma afirmação qualquer a respeito de um ente, ela pode referir-se àquilo que o ente é essencialmente; a algo que ele fez acidentalmente, ou seja, que não faz parte da definição dele; e pode referir-se a algo que não é nem parte de sua essência, nem acidente.

Se digo: “O homem é um animal racional” – estou dando uma definição do homem. Porém se digo: “O homem é capaz de aprender aritmética” – isto não faz parte da definição, mas decorre dela logicamente. A isto chamamos propriedade, aquilo que é próprio do ente. Agora, se digo: “Fulano aprendeu aritmética” isto é um acidente, porque não é necessário que ele aprenda aritmética de fato. Toda e qualquer sentença que você diga a respeito de qualquer coisa vai cair numa destas modalidades.

Ou vai estar dando a definição do ser, ou vai estar dizendo um acidente ou uma propriedade dele, ou ainda pode estar dizendo o gênero a que ele pertence. Por exemplo: “o cachorro é um animal” não é uma definição de cachorro, nem um acidente nem uma propriedade. Digo apenas o gênero. A definição se faz indicando o gênero a que um ente pertence e qual a diferença que ele tem em relação aos outros do mesmo gênero. Vocês podem testar isto com quaisquer pensamentos e quaisquer frases. Isto continua sendo rigorosamente assim.

Esta divisão em quatro é a dos predicáveis. Por que este nome? Predicar quer dizer atribuir alguma coisa a algum ente. Tudo o que se afirma é uma predicação, é atribuir um predicado a um sujeito. Tudo o que se fala pode ser colocado ou na tábua das categorias ou na tábua dos quatro predicáveis. Quanto às categorias o próprio Aristóteles mostra dúvida quanto ao seu número. Numa lista dá sete, e outra dá oito, em outra dez. Isto significa que esta parte da teoria não está pronta. Quanto às sete categorias básicas não parece haver dúvida, porque ele as repete sempre. Além disso verifiquei que este número é o mesmo em todos os sistemas de categorias conhecidas nas outras lógicas do mundo (chinesa, hindu etc.).

Quando existe uma coincidência muito grande entre indivíduos de muitas civilizações sem contato entre si e com milênios de distância, muito provavelmente estes indivíduos estão captando estruturas básicas do pensamento humano ou da realidade mesma. Então podemos fechar negócio em torno das seguintes categorias: 1- substância, 2- quantidade, 3- qualidade, 4- relação, 5- ação, 6- paixão, 7- espaço/tempo.

O segundo livro da série da lógica chama-se “Da Interpretação” ( Peri Hermeneias ). Quando Dante fala: “No meio do caminho desta vida, eu me encontrei por um selva escura, onde a correta via era perdida”, classifique isto nas categorias, se puder: de que Dante está falando? De um acidente, teoricamente. Nem todo mundo se encontra, em determinada etapa da vida, perdido em uma selva escura. Porém, num outro sentido,podemos dizer: isto é uma imagem de um processo essencial à vida humana, segundo Dante. A vida humana é perder-se do caminho reto, porque vivemos no tempo, entre os acidentes, e perdemos o sentido da nossa caminhada. E isto é um processo essencial à vida humana. Se é essencial, como pode ser um acidente?

Vemos que antes de classificar pelos predicáveis e pelas categorias é necessário interpretar a sentença. Conforme o sentido, a mesma sentença poderá equivaler a uma definição, a uma propriedade, um acontecimento etc.

Não podemos identificar a sentença gramaticalmente considerada, materialmente falada, com a proposição lógica correspondente. Por exemplo, se se trata de uma obra poética, a mesma sentença equivale a quatro, cinco, dez proposições lógicas. A interpretação correta da frase e de seu desdobramento nas proposições ou juízos lógicos formais é uma operação preliminar. É por isso que a gramática não funciona nem funcionaria jamais. Na gramática, o cachorro, por exemplo, é substantivo, mas o azul também é substantivo, embora às vezes também seja adjetivo. Ou seja, estes conceitos lógicos das categorias não correspondem rigorosamente aos conceitos gramaticais que depois foram forjados com base neles. Houve alguns espertinhos, a começar por um dos fundadores da lógica matemática – Rudolph Carnap – que dizem que as categorias de Aristóteles são apenas uma extrapolação das categorias gramaticais. Ele as teria tomado, dando-lhes um sentido lógico. Isto é pura ignorância, pois ninguém havia pensado em categorias gramaticais até então, não existia nenhuma gramática da língua grega e as primeiras especulações gramaticais dos gregos são do século I a.C., e baseadas em Aristóteles.

Carnap pertence à escola neopositivista. Para os neopositivistas, as categorias aristotélicas seriam apenas tipos de palavras, quando o que se deu foi o contrário: a gramática é que surge com base na lógica de Aristóteles. Surge, e já faz uma confusão medonha, porque evidentemente os tipos de palavras não correspondem a estes tipos de conceitos. Porque as palavras são apenas signos que indicam sons que por sua vez indica idéias. São representações indiretas de conceitos. A uma mesma palavra podem corresponder três, quatro, dez conceitos diferentes. É evidente que se temos sete tipos de conceitos, não vamos poder ter sete tipos de palavras. Assim como a um mesmo ser correspondem incontáveis maneiras de representá-lo. Você pode ser representado pelo seu nome, ou por uma fotografia ( num outro sentido da palavra representar ), e ainda em outro sentido, por um procurador, ou por um objeto de sua propriedade ( marcando um lugar etc. ). Entre o conceito e a palavra a relação é esta.

Nossos educadores, o Ministério da Educação, acham que o ensino do pensamento, o ensinar a raciocinar – incumbe aos professores de português. Ao ensinar a redigir, estariam ensinando a pensar. E é evidente que uma coisa nada tem a ver com a outra. Isto é admitir que ninguém pensa nada antes da escrever a primeira palavra. Existe um hiato de pelo menos sete anos entre aprender a pensar e aprender a escrever. E segundo lugar, os processos que estruturam a gramática não são processos lógicos. Uma gramática se forma por usos e acidentes. Se as pessoas decidem chamar gato de abóbora, ao fim de umas duas ou três gerações o gato fica abóbora definitivamente.

A gramática se faz empiricamente, isto é, ao sabor de fatos reais. E esperar que ela tenha uma estrutura lógica é como esperar que os resultados da loteria esportiva funcionem com um rigoroso padrão lógico repetitivo. As estruturas da gramática não são lógicas – são estruturas de sons e grafismos que são sedimentadas pelo uso, uso este que está submetido a milhões de influências casuais. Por exemplo, antes e depois do sujeito comprar televisão, sua linguagem não será a mesma. Se dois povos entram em contato mais estreito, o povo mais forte, mais antigo, mais civilizado, exercerá sobre o outro uma influência terrível. É o que acontece hoje com a língua inglesa que está comendo a nossa língua, não no sentido de exportar palavras, processo normal, mas no exportar estruturas de frases: estamos falando português com estrutura de frase inglesa. Isto é muito comum em jornais, televisão etc. Os brasileiros também começam a dar um valor semântico diferente às suas próprias palavras, similar ao valor semântico de palavras vagamente parecidas da língua inglesa. Isto é a estrutura mental de um povo sendo implantada sobre outro. O resultado disto será maior ou menor conforme o apego maior ou menor que cada população tenha aos seus costumes linguísticos anteriores.

É uma trama estabelecida pelo desenrolar dos fatos, e então não obedece a uma regra lógica, mas ao puro empirismo. O serviço da gramática consiste e descrever o estado da língua e cada momento, mais ou menos como ela se encontra. E por uma decisão de ordem estética, estabelecer certos usos como preferenciais. Mas é uma decisão estética. Quando dizemos que tal frase ou tal outra é errada, ela é errada em função de determinado padrão que num certo momento foi adotado, às vezes por uma conveniência sociológica, ou política. Quando uma província é mais adiantada do que as outras, a linguagem dela se torna padrão para que as pessoas possa entender-se, como aconteceu na Itália, quando o dialeto da província toscana foi adotado como língua italiana. O que chamamos língua italiana hoje é na verdade um dos dialetos, que se tornou dominante. Então o italiano aprende em casa o seu próprio dialeto e na escola o toscano. É um processo de unificação da língua. Isto não quer dizer que a língua toscana seja em si melhor do que as outras. Os processos de uniformização da língua obedece a fatores casuais. Hoje em dia no Brasil, a linguagem-padrão é a da Rede Globo. Podemos questionar a autoridade da Rede Globo em matéria gramatical, mas não podemos questionar o seu poder, e a gramática não é feita pela autoridade, ela é feita pelo poder. Quem fala mais alto acaba sendo imitado.

A tentativa de estruturar a gramática segundo conceitos rigorosamente lógicos leva a perversões. Um exemplo comum é a diferença que existe entre sujeito lógico e sujeito gramatical. Se digo: “João matou Pedro”, o sujeito é João. Agora digo: “Pedro foi morto por João”. O sujeito gramatical é Pedro, mas o sujeito lógico continua sendo João. Isto é para verem o abismo que existe entre lógica e gramática. E também deve dar para entender a que desastre deve levar a idéia de quem tem de ensinar a pensar é o professor de português.

Além de levar em conta as categorias e os predicáveis, para poder aplicar estes conceitos à classificação dos demais conceitos, é necessário que a frase seja interpretada e que da sentença gramatical considerada nós retiremos os juízos ou proposições formais. Se pegamos esta primeira sentença da Divina Comédia, ela é uma sentença só, mas poderá ter um ou mais sentidos que constituirão as suas proposições formais, que estão materialmente todas na mesma frase. Jamais confundir a sentença real com as proposições formais. A sentença pode ser ambígua, ter dois sentidos, duas proposições formais. É disto que trata o livro da interpretação.

A frase de Dante, conforme seja interpretada como acidental ou própria do destino humano, já tem duas proposições formais que teriam de ser analisadas separadamente. É próprio da linguagem poética corresponder a várias proposições formais possíveis e é por isso mesmo que ela é sintética. Se desmembrássemos, para cada sentença, uma proposição formal, teríamos uma linguagem logicalizada. Ora, nem a língua corrente do dia-a-dia. nem a língua literária, nem a de comunicação social ou jornalística ou da televisão – nada disto é linguagem logicalizada. Tudo isto é linguagem ambígua.

A diferença da linguagem poética é que ela é um tratamento técnico dado a esta linguagem ambígua. O poeta é ambíguo porque quer, porque quer fazer sentenças que contenham o máximo de proposições formais possíveis. O máximo de sentidos no mínimo de palavras – isto é a poesia. A linguagem do dia-a-dia não é ambígua por escolha; ela não consegue ser outra coisa. O poeta é ambíguo por suficiência, e nós por deficiência – mas há ambiguidade nos dois casos.

A terceira obra de lógica seria os “Tópicos”, que tratam da ciência da dialética, que leva este nome por tratar da confrontação de dois discursos simultâneos (dois ou mais). Segundo Aristóteles, a dialética é a arte de raciocinar onde não temos premissas firmes, ou seja, onde não conhecemos os princípios do assunto. Aí não temos base para raciocinar sobre os casos particulares. Imagine que você é Charles Darwin estudando a evolução animal. Você encontra o esqueleto de um determinado bicho e quer referi-lo a uma evolução. Você vai ter primeiro de situa-lo num certo momento, depois da espécie que o antecedeu e antes da que o sucedeu. Para isto você precisa ter a noção pronta da escala. Se você não tem a escala pronta ao menos como hipótese, não pode situar o bicho. É evidente que Charles Darwin não encontrou a doutrina da evolução pronta. Ele encontrava fatos biológicos, mas na hora de compreendê-los, lhe faltavam os princípios explicativos e mesmo os princípios classificatórios pelos quais pudesse situar cada fato. Então, como raciocinar? Tinha de fazer várias hipóteses. Por exemplo, você faz duas hipóteses a respeito do mesmo fato – encontra um determinado bicho e diz: “Isto aqui parece ser parente da lagartixa, mas por outro lado parece ser parente do hipopótamo”. É difícil ter acontecido isto a qualquer esqueleto real, mas suponhamos que você tivesse estas duas hipóteses. Quando Darwin associou o elefante ao cavalo, como o fez? À luz das aparências, não seria mais lógico procurar um parentesco com o rinoceronte, com alguma coisa mais parecida fisicamente? Por que ele achou o parentesco com o cavalo? Porque não usou o critério de aparência macroscópica, mas o da conformação dos ossos. Talvez, se tivesse encontrado outro critério, teria feito outras associações. Pela estrutura dos ossos, viu que se tratava de espécies contíguas ou parentes. Para cada um destes casos, ele tinha várias hipóteses possíveis. Ora, duas hipóteses contrárias se sustentam em duas séries contrárias de razões. Há argumentos a favor desta, que formam uma linha de raciocínio, e argumentos em favor daquela, que formam outra linha de raciocínio. Esta comparação é que se chama dialética. Quando você não tem princípios para explicar o caso determinado que você está averiguando, só lhe resta procurar estes princípios. E como encontrá-los? Seguindo as várias linhas de hipóteses contrárias, ao mesmo tempo. Não pode ser uma depois da outra. Porque cada hipótese é validada pelo confronto com a sua contrária. Entre duas hipóteses, uma parece mais válida. Então a que sobrou você compara com uma terceira e assim por diante. Por isso se chama dialética, porque é sempre uma operação dupla.

A arte da dialética serve, segundo Aristóteles, para três coisas:

1) Para investigações nas quais não existam ainda princípios científicos assentados.

2) Para o treinamento da mente. A dialética servirá ao longo de mais de mil anos como a prática escolar central do aprendizado de filosofia. Porque é pela dialética que aprendemos a confrontar as diversas possibilidades e deixar que elas se desenvolvam até que uma delas saia vencendo.

A importância escolar disto é incalculável. Se houvesse um treino dialético hoje em dia, a maior parte das idéias que estão em curso público desapareceriam, porque não suportam o mais leve exame dialético. Sustentam-se exclusivamente em argumentos retóricos. A argumentação retórica é baseada na verossimilhança, na impressão de veracidade. Quando discutimos retoricamente, temos uma crença e produzimos verossimilhança para sustentar esta crença. Produzimos exemplos em profusão. O exemplo é o tipo mais característico de argumento retórico. Exemplo não prova nada, mas dá verossimilhança; faz parecer verídico, dá vida ao assunto. Quando argumentamos mediante exemplos, estamos tentando tornar nosso raciocínio verossímil para quem nos ouve, tentando fazê-lo ver as coisas como as vemos. Se soubermos produzir exemplos vívidos, interessantes, o sujeito acaba vendo as coisas como queremos. Mas isto só serve para persuadi-lo, não serve para testar a veracidade do argumento. Então, como já foi explicado, a dialética serve para fazer uma triagem dos argumentos retóricos. Você confronta os vários “prós” e “contras” e desenvolve cada um de acordo com a melhor argumentação lógica possível, dando igual chance a todos os argumentos, para ver qual deles fica de pé no fim. Ou seja, na dialética você faz uma arbitragem, não toma partido. O argumento retórico é um advogado defendendo uma causa. O dialético é um juiz julgando a causa. Se houvesse este treinamento nas escolas de filosofia, política, ciências sociais etc, 99% das crenças iriam embora, porque elas não suportam o exame dialético. Nele devemos conferir igual chance aos dois argumentos. Se isto não é possível, entendemos também que não é possível uma decisão correta do assunto e que esta irá para o lado volitivo ou irracional. Se isto fosse levado em consideração não teríamos discussões como o confronto entre o capitalismo e o socialismo. O homem que defende o capitalismo, refere-se ao capitalismo como existe historicamente. O que defende o socialismo não se refere a nenhum socialismo histórico, que tenha acontecido em algum lugar, mas a um vago ideal futuro. Ora, o capitalismo também tem ideais – mas a discussão retórica compara os ideais de um com a realidade de outro, em vez de comparar ideais com ideais, realidades com realidades. Então é evidente que esta questão não pode ser resolvida. Se você compara os ideais de um com as realidades do outro, a discussão está viciada. Se você compara as suas qualidades com os meus defeitos, você sai ganhando automaticamente. Por outro lado, os defensores do socialismo – todos, sem exceção – hoje em dia já não podem fazer assim, porque temos uma experiência socialista de cem anos no mundo. Mas dizem que não é representativo, porque não corresponde ao seu ideal… Isto é o mesmo que julgar um indivíduo levando em conta somente os atos que correspondem aos seus ideais, e considerando como falsos todos aqueles que estão abaixo do ideal. Vejo que um sujeito é um bêbado, ms como tem o ideal de deixar de beber, tenho de apagar a realidade da sua bebedeira, e encará-lo como se ele não bebesse. Isto é o tipo da discussão viciada. Tenho um belíssimo livro que se chama Ideals and Realities of Islam, escrito por um homem por quem tenho o máximo respeito, Seyed Hossein Nasr, onde ele confronta civilizações tradicionais, particularmente a islâmica, com a moderna sociedade industrial, e chega à conclusão que a sociedade industrial é um horror e que as civilizações tradicionais é que são bonitas. Só que ele faz isto: compara os ideais islâmicos com as realidades do Ocidente, e nunca o contrário. O que é representativo do ocidente? A crise ecológica, esta sujeira toda, a alienação do trabalho. O que é característico do Islã? Os ideais maravilhosos que estão no Corão. Esta comparação não é possível, está viciada. Teria de comparar bens com bens e males com males; ideais com ideais e realidades com realidades.

Isto é uma regra dialética elementar. Quando você faz isto, é obrigado a engolir muitas coisas que retoricamente não desejaria. Toda esta revisão de ideais socialistas que existe hoje começou com a queda do muro de Berlim – ex post facto. Também fui socialista aos 20 anos, mas mudei sozinho muito antes que caísse o muro – por exame, confrontando. Levou quinze anos este processo; eu sei o trabalho que me deu. E as pessoas hoje mudam do dia para a noite, com a maior facilidade. Isto indica que não querem chegar a uma conclusão real. A solução não é fácil, do tipo pró ou contra. A dialética tem, então, entre outros usos, esta utilidade de formar a mente para o exame objetivo das questões.

3) A terceira utilidade assinalada por Aristóteles é a utilidade científica. Quando você está discutindo um assunto cujos princípios você desconhece, tem de remontar das questões até os princípios. Como se faz isto? Pela discussão dialética. O confronto crítico das várias possibilidades acaba fechando as alternativas até que num certo momento você tem uma espécie de intelecção ou intuição dos princípios que governam aquele assunto. Pode ser uma falsa intuição. Porém é claro que onde você não conhece os princípios, não tem as premissas, você não pode fazer um raciocínio inteiramente lógico. Vai partir do que? Todo raciocínio lógico parte de uma premissa. Se não tem premissa você tem de fazer uma espécie de raciocínio lógico ao contrário, das consequências para as premissas possíveis – sem esquecer que as mesmas consequências podem derivar de vinte premissas diferentes e até contrárias. Então os processos de exame dialético podem ser infinitamente complicados e estão todos descritos com bastante sutileza não só no livro dos Tópicos mas também em todos os tratados de dialética que depois foram escritos, desde então até a Idade Média e depois. Este é um material pelo qual a maior parte dos filósofos modernos não tem o menor interesse.

Vimos então os três usos da dialética:

1º) Para discussões onde você pretende alcançar um resultado meramente provável (uma retórica aperfeiçoada).

2º) Para utilização escolar – treinamento da mente.

3º) Uso científico – princípio de investigação científica. Guardem isto porque mais tarde é a esta sentença de Aristóteles, de que “a dialética é o meio de encontrar os princípios” que vamos recorrer para propor uma remontagem da nossa visão do sistema aristotélico, onde se coloca a dialética como a ciência principal.

As Analíticas e a teoria do silogismo

Depois do livro dos Tópicos, vêm dois livros que se chamam asAnalíticas e tratam do raciocínio lógico – o sistema dos silogismos. Silogismo é uma sequência de três proposições, onde das duas primeiras decorre necessariamente a terceira. Existem várias maneiras de montar um silogismo, algumas válidas, outras não. Aristóteles distingue 64 caminhos pelos quais o raciocínio silogístico pode chegar a uma conclusão. As premissas, por sua vez, segundo ele se dividem em dois tipos: universais ou gerais e particulares. Universais são as que se referem a toda uma espécie de seres; particulares, as que se referem a um em particular.

No famoso exemplo – Todo homem é mortal, Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal – a primeira premissa é universal ( Todo homem… ) e a segunda particular. Conforme o jogo de premissas universais e particulares, você terá conclusões que serão válidas para um indivíduo em particular ou para vários. No exemplo citado a conclusão se refere especificamente a Sócrates – a um indivíduo em particular e não a todos. Seguindo o jogo de premissas universais e particulares, temos um ciclo de 64 etapas possíveis – exatamente a estrutura do I Ching. O conceito de universal-particular em grande parte coincide com o conceito de Yang-Yin, respectivamente.

Se você pegar os silogismos válidos e os inválidos e fizer um raciocínio completo, terá 64 etapas, das quais somente dezoito são efetivas, probantes, as outras não. Por exemplo: Algum homem é careca, Sócrates é um homem. Posso concluir que Sócrates é careca? Não. Mas posso fazer o silogismo. Tem uma estrutura silogística, porém não é válido. Se você pegar cada etapa do raciocínio, pode tomar como nova premissa uma conclusão para um segundo raciocínio, desde que a some com uma outra premissa.

A = Premissa universal D = Nova sentença ( premissa universal ou particular )

B = Premissa particular

E = Conclusão.
C = Conclusão particular, premissa ( particular ) do novo silogismo

Rodando com todas as combinações possíveis, você verá que algumas são válidas, outras não. E a totalidade destes arranjos dá 64.

A combinação é entre as palavras todos e algum; conforme todos ou algum estejam na 1ª, ou na 2ª premissa ou na conclusão, você terá 64 combinações.

Existe uma clara analogia aí, porque o yang evidentemente se refere sempre ao universal e o yin ao particular, — o grande e o pequeno. Isto é bastante claro. O yin é um princípio de particularização, de segmentação, por isso mesmo é representado por um traço dividido ( — — ). A divisão, a distinção entre os seres é um princípio yin; a unidade do universo é um princípio yang. É o contrário do que diz o Fithjof Capra. Para ele, o yang representa a razão que é analítica e divide, e o yin representa a intuição que unifica. Mas se é assim, por que o chinês representou o yang com um traço contínuo ( —— ) e o yin com um traço dividido ( — — )? É porque o chinês não tinha lido o Capra…

Como se divide o I Ching? Não é um jogo de 3 e 2? Aqui também temos um jogo de 3 e 2. São três sentenças e duas possibilidades ( todos e algum – universal e particular). Se você tiver paciência, vai combinando e vai chegar nos 64. A silogística é um jogo exclusivamente matemático. Na verdade, um joguinho para crianças. É algo que qualquer pessoa aprende com a maior facilidade, é algo totalmente mecanizado, que é possível ensinar a um computador mediante um circuito em que você tem um jogo de 2 e 3 igualzinho.

Isto seria a Analítica. Aristóteles nunca usou a palavra “lógica”, que será mais tarde inventada pelos estóicos. Ele chama-a Analítica ou ciência demonstrativa. Esta é a ciência que, partindo de uma premissa admitida como certa, chegará a um resultado que terá de ser admitido como certo, queiram ou não queiram, exatamente como na aritmética elementar. Se você tem a premissa certa, chegar à conclusão certa é mera questão de ajeitar formalmente o raciocínio correto. Um computador faz isto. Dada a premissa, se você der a conclusão errada, ele corrige, porque é mero ajuste formal. Este é o raciocínio mais certo que existe, uma vez que você tenha a premissa certa. O problema é este: onde encontrar as premissas? Se tudo fosse uma questão de raciocinar logicamente, já estava tudo resolvido há muito tempo. Porém, é claro que a lógica não pode encontrar premissas, e sem premissas nada se pode fazer. Para encontrar a premissa certa, é preciso partir de um grande número delas – meramente prováveis, premissas hipotéticas. Portanto, a coisa decisiva passa a ser a dialética.

Aula IV – Parte II

 

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