A Nova Era e a Revolução Cultural: Capítulo II

Capítulo II

STO. ANTONIO GRAMSCI
E A SALVAÇÃO DO BRASIL

QUEM DESEJE reduzir a um quadro coerente o aglomerado caótico de elementos que se agitam na cena brasileira, tem de começar a desenhá-lo tomando como centro um personagem que nunca esteve aqui, do qual a maioria dos brasileiros nunca ouviu falar, e que ademais está morto há mais de meio século, mas que, desde o reino das sombras, dirige em segredo os acontecimentos nesta parte do mundo.

Refiro-me ao ideólogo italiano Antonio Gramsci. Tendo-se tornado praxe entre as esquerdas jamais pronunciar o nome de Gramsci sem acrescentar-lhe a menção de que se trata de um mártir, apresso-me a declarar que o referido passou onze anos numa prisão fascista, de onde remeteu ao mundo, mediante não sei que artifício, os trinta e três cadernos de notas que hoje constituem, para os fiéis remanescentes do comunismo brasileiro, a bíblia da estratégia revolucionária. Mas não está só nisso a razão da aura beatífica que envolve o personagem. Da estratégia, tal como vista por ele, constituía um capítulo importante a criação de um novo calendário dos santos, que pudesse desbancar, na imaginação popular, o prestígio do hagiológio católico ( uma vez que a Igreja, na visão dele, era o maior obstáculo ao avanço do comunismo ). O novo panteão seria inteiramente constituído de líderes comunistas célebres, e baseado no critério segundo o qual “Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht são maiores do que os maiores santos de Cristo” — palavras textuais de Gramsci. Os seguidores do novo culto, com inteira lógica, puseram ainda mais alto na escala celeste o instituidor do calendário, motivo pelo qual não se pode falar dele sem a correspondente unção. E eu, temeroso como o sou de todas as coisas do além, não poderia iniciar esta breve exposição do gramscismo brasileiro sem a preliminar invocação ao seu patrono, em quem se depositam, neste momento, muitas esperanças de salvação do Brasil. Digo, pois: Sancte Antonie Gramsci, ora pro nobis.

Atendida esta devota formalidade, retorno aos fatos. Gramsci ficou, dizia eu, meditando na cadeia. Mussolini, que o mandara prender, acreditava estar prestando um serviço ao mundo com o silêncio que impunha àquele cérebro que ele julgava temível. Aconteceu que no silêncio do cárcere o referido cérebro não parou de funcionar; apenas começou a germinar idéias que dificilmente lhe teriam ocorrido na agitação das ruas. Homens solitários voltam-se para dentro, tornam-se subjetivistas e profundos. Gramsci transformou a estratégia comunista, de um grosso amálgama de retórica e força bruta, numa delicada orquestração de influências sutis, penetrante como a Programação Neurolinguística e mais perigosa, a longo prazo, do que toda a artilharia do Exército Vermelho. Se Lênin foi o teórico do golpe de Estado, ele foi o estrategista da revolução psicológica que deve preceder e aplainar o caminho para o golpe de Estado.

Gramsci estava particularmente impressionado com a violência das guerras que o governo revolucionário da Rússia tivera de empreender para submeter ao comunismo as massas recalcitrantes, apegadas aos valores e praxes de uma velha cultura. A resistência de um povo arraigadamente religioso e conservador a um regime que se afirmava destinado a beneficiá-lo colocou em risco a estabilidade do governo soviético durante quase uma década, fazendo com que, em reação, a ditadura do proletariado — na intenção de Marx uma breve transição para o paraíso da democracia comunista — ameaçasse eternizar-se, barrando o caminho a toda evolução futura do comunismo, como de fato veio a acontecer.

Para contornar a dificuldade, Gramsci concebeu uma dessas idéias engenhosas, que só ocorrem aos homens de ação quando a impossibilidade de agir os compele a meditações profundas: amestrar o povo para o socialismo antes de fazer a revolução. Fazer com que todos pensassem, sentissem e agissem comomembros de um Estado comunista enquanto ainda vivendo num quadro externo capitalista. Assim, quando viesse o comunismo, as resistências possíveis já estariam neutralizadas de antemão e todo mundo aceitaria o novo regime com a maior naturalidade.

A estratégia de Gramsci virava de cabeça para baixo a fórmula leninista, na qual uma vanguarda organizadíssima e armada tomava o poder pela força, autonomeando-se representante do proletariado e somente depois tratando de persuadir os apatetados proletários de que eles, sem ter disto a menor suspeita, haviam sido os autores da revolução. A revolução gramsciana está para a revolução leninista assim como a sedução está para o estupro.

Para operar essa virada, Gramsci estabeleceu uma distinção, das mais importantes, entre “poder” ( ou, como ele prefere chamá-lo, “controle” ) e “hegemonia”. O poder é o domínio sobre o aparelho de Estado, sobre a administração, o exército e a polícia. A hegemonia é o domínio psicológico sobre a multidão. A revolução leninista tomava o poder para estabelecer a hegemonia. O gramscismo conquista a hegemonia para ser levado ao poder suavemente, imperceptivelmente. Não é preciso dizer que o poder, fundado numa hegemonia prévia, é poder absoluto e incontestável: domina ao mesmo tempo pela força bruta e pelo consentimento popular — aquela forma profunda e irrevogável de consentimento que se assenta na força do hábito, principalmente dos automatismos mentais adquiridos que uma longa repetição torna inconscientes e coloca fora do alcance da discussão e da crítica. O governo revolucionário leninista reprime pela violência as idéias adversas. O gramscismo espera chegar ao poder quando já não houver mais idéias adversas no repertório mental do povo.

Que esse negócio é tremendamente maquiavélico, o próprio Gramsci o reconhecia, mas fazendo disto um título de glória, já que Maquiavel era um dos seus gurus. Apenas, ele adaptou Maquiavel às demandas da ideologia socialista, coletivizando o “Príncipe”. Em lugar do condottiere individual que para chegar ao poder utiliza os expedientes mais repugnantes com a consciência tranquila de quem está salvando a pátria, Gramsci coloca uma entidade coletiva: a vanguarda revolucionária. O Partido, em suma, é o novo Príncipe. Como o sangue-frio dos homens fica mais frio na medida em que eles se sentem apoiados por uma coletividade, o Novo Príncipe tem uma consciência ainda mais tranquila que a do antigo. O condottiereda Renascença não tinha apoio senão de si mesmo, e nas noites frias do palácio tinha de suportar sozinho os conflitos entre consciência moral e ambição política, encontrando no patriotismo uma solução de compromisso. No Novo Príncipe, a produção de analgésicos da consciência é trabalho de equipe, e nas fileiras de militantes há sempre uma imensa reserva de talentos teóricos que podem ser convocados para produzir justificações do que quer que seja.

Os intelectuais desempenham por isso, na estratégia gramsciana, um papel de relevo. Mas isto não quer dizer que suas idéias sejam importantes em si mesmas, pois, para Gramsci, a única importância de uma idéia reside no reforço que ela dá, ou tira, à marcha da revolução. Gramsci divide os intelectuais em dois tipos: “orgânicos” e “inorgânicos” ( ou, como ele prefere chamá-los, “tradicionais” ). Estes últimos são uns esquisitões que, baseados em critérios e valores oriundos de outras épocas, e sem uma definida ideologia de classe, emitem idéias que, ignoradas pelas massas, não exercem qualquer influência no processo histórico: acabam indo parar na lata de lixo do esquecimento, a não ser que tenham a esperteza de aderir logo a uma das correntes “orgânicas”. Intelectuais orgânicos são aqueles que, com ou sem vinculação formal a movimentos políticos, estão conscientes de sua posição de classe e não gastam uma palavra sequer que não seja para elaborar, esclarecer e defender sua ideologia de classe. Naturalmente, há intelectuais orgânicos “burgueses” e “proletários”. Estes são a nata e o cérebro do Novo Príncipe, mas aqueles também têm alguma utilidade para a revolução, pois é através deles que os revolucionários vêm a conhecer a ideologia do inimigo. Gramsci mencionava como protótipos de intelectuais orgânicos burgueses Benedetto Croce e Giovanni Gentile: o liberal antifascista e o ministro de Mussolini.

O conceito gramsciano de intelectual funda-se exclusivamente na sociologia das profissões e, por isto, é bem elástico: há lugar nele para os contadores, os meirinhos, os funcionários dos Correios, os locutores esportivos e o pessoal do show business. Toda essa gente ajuda a elaborar e difundir a ideologia de classe, e, como elaborar e difundir a ideologia de classe é a única tarefa intelectual que existe, uma vedette que sacuda as banhas num espetáculo de protesto pode ser bem mais intelectual do que um filósofo, caso se trate de um “inorgânico” como por exemplo o autor destas linhas.

Os intelectuais no sentido elástico são o verdadeiro exército da revolução gramsciana, incumbido de realizar a primeira e mais decisiva etapa da estratégia, que é a conquista da hegemonia, um processo longo, complexo e sutil de mutações psicológicas graduais e crescentes, que a tomada do poder apenas coroa como uma espécie de orgasmo político.

A luta pela hegemonia não se resume apenas ao confronto formal das ideologias, mas penetra num terreno mais profundo, que é o daquilo que Gramsci denomina — dando ao termo uma acepção peculiar — “senso comum”. O senso comum é um aglomerado de hábitos e expectativas, inconscientes ou semiconscientes na maior parte, que governam o dia-a-dia das pessoas. Ele se expressa, por exemplo, em frases feitas, em giros verbais típicos, em gestos automáticos, em modos mais ou menos padronizados de reagir às situações. O conjunto dos conteúdos do senso comum identifica-se, para o seu portador humano, com a realidade mesma, embora não constitua de fato senão um recorte bastante parcial e frequentemente imaginoso. O senso comum não “apreende” a realidade, mas opera nela ao mesmo tempo uma filtragem e uma montagem, segundo padrões que, herdados de culturas ancestrais, permanecem ocultos e inconscientes.

Como o que interessa não é tanto a convicção política expressa, mas o fundo inconsciente do “senso comum”, Gramsci está menos interessado em persuasão racional do que em influência psicológica, em agir sobre a imaginação e o sentimento. Daí sua ênfase na educação primária. Seja para formar os futuros “intelectuais orgânicos”, seja simplesmente para predispor o povo aos sentimentos desejados, é muito importante que a influência comunista atinja sua clientela quando seus cérebros ainda estão tenros e incapazes de resistência crítica.

O senso comum não coincide com a ideologia de classe, e é precisamente aí que está o problema. Na maior parte das pessoas, o senso comum se compõe de uma sopa de elementos heteróclitos colhidos nas ideologias de várias classes. É por isto que, movido pelo senso comum, um homem pode agir de maneiras que, objetivamente, contrariam o seu interesse de classe, como por exemplo quando um proletário vai à missa. Nesta simples rotina dominical oculta-se uma mistura das mais surpreendentes, onde um valor típico da cultura feudal-aristocrática, reelaborado e posto a serviço da ideologia burguesa, aparece transfundido em hábito proletário, graças ao qual um pobre coitado, acreditando salvar a alma, comete, na realidade, apenas uma grossa sacanagem contra seus companheiros de classe e contra si mesmo.

Aí é que entra a missão providencial dos intelectuais. Sua função é precisamente por um fim a essa suruba ideológica, reformando o senso comum, organizando-o para que se torne coerente com o interesse de classe respectivo, esclarecendo-o e difundindo-o para que fique cada vez mais consciente, para que, cada vez mais, o proletário viva, sinta e pense de acordo com os interesses objetivos da classe proletária e o burguês com os da classe burguesa. A este estado de perfeita coincidência entre idéias e interesses de classe, quando realizado numa dada sociedade e cristalizado em leis que distribuem a cada classe seus direitos e deveres segundo uma clara delimitação dos respectivos campos ideológicos, Gramsci denomina Estado Ético. É a escalação final dos dois times, antes de começar o prélio decisivo que levará o Partido ao poder. O público brasileiro tem ouvido este termo, proferido num contexto de combate à corrupção e de restauração da moralidade. Mas ele é um termo técnico da estratégia gramsciana, que designa apenas uma determinada etapa na luta revolucionária — uma etapa, aliás, bastante avançada, na qual a radicalização do conflito de interesses de classe prepara o início da etapa orgástica: a conquista do poder. Que, no caótico senso comum brasileiro, o termo Estado Ético tenha ressonâncias moralizadoras inteiramente alheias ao seu verdadeiro intuito, mostra apenas que o público nacional ignora a inspiração diretamente gramsciana do Movimento pela Ética na Política e nem de longe suspeita que seu único objetivo é politizar a ética, canalizando as aspirações morais mais ou menos confusas da população de modo a que sirvam a objetivos que nada têm a ver com o que um cidadão comum entende por moral. O Estado Ético, na verdade, não apenas é compatível com a total imoralidade, como na verdade a requer, pois consolida e legitima duas morais antagônicas e inconciliáveis, onde a luta de classes é colocada acima do bem e do mal e se torna ela mesma o critério moral supremo. Daí por diante, a mentira, a fraude ou mesmo o homicídio podem se tornar louváveis, quando cometidos em defesa da “nossa” classe, ao passo que a decência, a honestidade, a compaixão podem ter algo de criminoso, caso favoreçam a classe adversária10. Que o tradicional discurso moralista da burguesia brasileira tenha podido ser assim usado como arma para desferir um golpe mortal na hegemonia burguesa, mostra menos a esperteza da esquerda gramsciana do que a estupidez paquidérmica da nossa classe dominante. Que, por outro lado, os próprios agentes do gramscismo finjam acreditar no caráter apolítico e puramente higiênico da campanha moralizante — apaziguando assim os temores daqueles que serão suas primeiras vítimas — é nada mais que uma expressão da linguagem dupla, inerente a uma estratégia na qual a camuflagem é tudo. São lições de Antonio Só-a-Cabecinha Gramsci.

É quase impossível que, a esta altura, a expressão “inversão de valores” não ocorra ao leitor. Essa inversão é, de fato, um dos objetivos prioritários da revolução gramsciana, na fase da luta pela hegemonia. Mas Gramsci é, neste ponto, bastante exigente: não basta derrotar a ideologia expressa da burguesia; é preciso extirpar, junto com ela, todos os valores e princípios herdados de civilizações anteriores, que ela de algum modo incorporou e que se encontram hoje no fundo do senso comum. Trata-se enfim de uma gigantesca operação de lavagem cerebral, que deve apagar da mentalidade popular, e sobretudo do fundo inconsciente do senso comum, toda a herança moral e cultural da humanidade, para substituí-la por princípios radicalmente novos, fundados no primado da revolução e no que Gramsci denomina “historicismo absoluto” ( mais adiante explico ).

Uma operação dessa envergadura transcende infinitamente o plano da mera pregação revolucionária, e abrange mutações psicológicas de imensa profundidade, que não poderiam ser realizadas de improviso nem à plena luz do dia. O combate pela hegemonia requer uma pluralidade de canais de atuação informais e aparentemente desligados de toda política, através dos quais se possa ir injetando imperceptivelmente na mentalidade popular toda uma gama de novos sentimentos, de novas reações, de novas palavras, de novos hábitos, que aos poucos vá mudando de direção o eixo da conduta.

Daí que Gramsci dê relativamente pouca importância à pregação revolucionária aberta, mas enfatize muito o valor da penetração camuflada e sutil. Para a revolução gramsciana vale menos um orador, um agitador notório, do que um jornalista discreto que, sem tomar posição explícita, vá delicadamente mudando o teor do noticiário, ou do que um cineasta cujos filmes, sem qualquer mensagem política ostensiva, afeiçoem o público a um novo imaginário, gerador de um novo senso comum. Jornalistas, cineastas, músicos, psicólogos, pedagogos infantis e conselheiros familiares representam uma tropa de elite do exército gramsciano. Sua atuação informal penetra fundo nas consciências, sem nenhum intuito político declarado, e deixa nelas as marcas de novos sentimentos, de novas reações, de novas atitudes morais que, no momento propício, se integrarão harmoniosamente na hegemonia comunista11.

Milhões de pequenas alterações vão assim sendo introduzidas no senso comum, até que o efeito cumulativo se condense numa repentina mutação global ( uma aplicação da teoria marxista do “salto qualitativo” que sobrevem ao fim de uma acumulação de mudanças quantitativas ). Ao esforço sistemático de produzir esse efeito cumulativo Gramsci denomina, significativamente, “agressão molecular”: a ideologia burguesa não deve ser combatida no campo aberto dos confrontos ideológicos, mas no terreno discreto do senso comum; não pelo avanço maciço, mas pela penetração sutil, milímetro a milímetro, cérebro por cérebro, idéia por idéia, hábito por hábito, reflexo por reflexo.

É claro que a mutação almejada não abrange somente o terreno das convicções políticas, mas visa principalmente às reações espontâneas, aos sentimentos de base, às cadeias de reflexos que determinam inconscientemente a conduta. Condutas sedimentadas no inconsciente humano há séculos ou milênios devem ser desarraigadas, para ceder lugar a uma nova constelação de reações. É importante, por exemplo, varrer do imaginário popular figuras tradicionais de heróis e de santos que expressem determinados ideais, pois essas figuras estão imantadas de uma força motivadora que dirige a conduta dos homens num sentido hostil à proposta gramsciana. Elas devem ser substituídas por um novo panteão de ídolos, no qual, como se viu acima, Karl Liebknecht, Rosa Luxemburgo, Lênin, Stálin e obviamente o próprio Gramsci ocupam os lugares de S. Francisco de Assis, Santa Terezinha do Menino Jesus e tutti quanti. Gramsci copiou nisto uma idéia de Augusto Comte, de trocar o calendário dos santos da Igreja por um panteão de heróis revolucionários. Apenas, os ídolos de Comte eram os da Revolução Francesa: Gramsci atualizou a folhinha.

Uma lavagem cerebral de tão vasta escala não poderia, certamente, limitar-se a extirpar da cabeça humana crenças religiosas, imagens, mitos e sentimentos tradicionais: ela deveria também estender-se às grandes concepções filosóficas e científicas. A estas, Gramsci queria destruir pela base, todas de uma vez, para substituí-las por uma nova cosmovisão inspirada no marxismo, ou antes, numa caricatura hipertrófica de marxismo que o próprio Marx rejeitaria com desprezo. Pois Marx considerava-se, sobretudo, o herdeiro de grandes tradições filosóficas como o aristotelismo, e construiu sua filosofia no intuito de torná-la uma ciência, uma descrição objetivamente válida das bases do processo histórico. Para Gramsci, as tradições filosóficas devem ser todas varridas de uma vez, e junto com elas a distinção entre “verdade” e “falsidade”. Pois Gramsci não é um marxista puro-sangue. Através de seu mestre Antonio Labriola, ele recebeu uma poderosa influência do pragmatismo, escola para a qual o conceito tradicional da verdade como uma correspondência entre o conteúdo do pensamento e um estado de coisas deve ser abandonado em proveito de uma noção utilitária e meramente operacional. Nesta, “verdade” não é o que corresponde a um estado objetivo, mas o que pode ter aplicação útil e eficaz numa situação dada. Enxertando o pragmatismo no marxismo, Labriola e Gramsci propunham que se jogasse no lixo o conceito de verdade: na nova cosmovisão, toda atividade intelectual não deveria buscar mais o conhecimento objetivo, mas sim a mera “adequação” das idéias a um determinado estado da luta social. A isto Gramsci denominava “historicismo absoluto”. Nesta nova cosmovisão, não haveria lugar para a distinção — burguesa, segundo Gramsci — entre verdade e mentira. Uma teoria, por exemplo, não se aceitaria por ser verdadeira, nem se rejeitaria por falsa, mas dela só se exigiria uma única e decisiva coisa: que fosse “expressiva” do seu momento histórico, e principalmente das aspirações da massa revolucionária. Dito de modo mais claro: Gramsci exige que toda atividade cultural e científica se reduza à mera propaganda política, mais ou menos disfarçada.

A “filosofia” de Gramsci resolve-se assim num ceticismo teorético que completa a negação da inteligência pela sua submissão integral a um apelo de ação prática; ação que, realizada, resultará em varrer a inteligência da face da Terra, por supressão das condições que possibilitam o seu exercício: a autonomia da inteligência individual e a fé na busca da verdade. Substituída a primeira pela arregimentação de “intelectuais orgânicos” de carteirinha, e a segunda pela concentração de todas as energias intelectuais no nobre mister da propaganda revolucionária, quê sobrará da aptidão humana para discernir entre verdade e mentira?

Gramsci é, em suma, o profeta da imbecilidade, o guia de hordas de imbecis para quem a verdade é a mentira e a mentira a verdade. Somente um outro imbecil como Mussolini podia considerá-lo “uma inteligência perigosa”. O perigo que há nela é o da malícia que obscurece, não o da inteligência que clareia; e a malícia é a contrafação simiesca da inteligência. Mas a reação de Mussolini é significativa. Há nela a típica inveja mórbida do brutamontes de direita pelo intelectual esquerdista, sua sombra junguiana que ele não compreende e que por isto mesmo lhe parece, por suas habilidades vistosas, o protótipo mesmo da inteligência. A atração é mútua, como se vê pelo culto de Nelson Rodrigues entre os esquerdistas que ele achincalhou como ninguém. Entre a grossura direitista e a pseudo-intelectualidade esquerdista, a relação é o amor-ódio de um casamento sadomasoquista. Casamento entre le genti dolorose / C’hanno perduto il ben dello intelletto… Non ragioniam di lor, ma guarda e passa.

Para quem quer que pense com a própria cabeça, as teorias de Gramsci não apresentam o menor interesse, tanto quanto não o apresentam as velhas escolas céticas gregas, das quais o gramscismo é uma reedição mal atualizada. A refutação do ceticismo é, como se sabe, o primeiro teste do aprendiz de filósofo. Tal como se refuta o ceticismo — a negação de toda certeza — pela simples afirmação de que a negação também é incerta, o gramscismo igualmente não resiste a um confronto consigo mesmo: tendo negado a veracidade objetiva, ele se reduz a uma “expressão de aspirações”. Tendo reduzido toda a cultura à propaganda, ele próprio se desmascara como mera propaganda. Não tem sequer a pretensão de ser verdadeiro: nada pretende provar nem demonstrar; quer apenas seduzir, induzir, conduzir. O tipo de mentalidade que se interessa por pensamentos desse gênero é certamente imune a qualquer preocupação de veracidade, mas é movido por uma ambição insaciável que o faz revolver sem descanso as trevas, numa “ação” estéril, nervosa, destrutiva, da qual promete em vão fazer nascer um mundo. Por uma inevitável e trágica compensação, quanto menos um homem é apto a enxergar o mundo, mais assanhado fica de transformá-lo — de transformá-lo à imagem e semelhança da sua própria escuridão interior12.

Se nos perguntamos, agora, como foi possível que uma filosofia assim grosseira alcançasse no Brasil tão vasta audiência a ponto de inspirar o programa de um partido político, a resposta deve levar em consideração três aspectos: primeiro, a predisposição da intelectualidade brasileira; segundo, as condições do momento; terceiro, a natureza mesma dessa filosofia.

Ao longo da nossa história intelectual, somente três correntes de pensamento lograram exercer uma influência duradoura e profunda sobre as camadas intelectuais brasileiras: o positivismo de Augusto Comte, o neotomismo de Leão XIII, o marxismo. O que há de comum entre elas é que não são propriamente filosofias, mas programas de ação coletiva, destinados a moldar ou remoldar o mundo segundo as aspirações de suas épocas e de seus mentores. O positivismo parte da constatação de que a Revolução Francesa, derrubando as concepções cristãs, deixou sua obra pela metade, na medida em que não pôs no lugar delas uma nova religião; o positivismo constitui esta nova religião, com templo, calendário dos santos, ritual e tudo o mais; e as teorias filosóficas não são senão a sustentação do novo Estado teocrático que Comte pretende fundar. O neotomismo é a reação que, ao novo Estado teocrático, opõe um apelo ao retorno do antigo, devidamente revisto e atualizado. Finalmente, o marxismo é o programa de ação do movimento socialista. Nos três, as idéias, as teorias, não têm um valor intrínseco mas servem apenas como retaguardas psicológicas da ação prática. Os três não querem interpretar o mundo, mas transformá-lo. ( Cabe uma ressalva com relação ao neotomismo: não confundi-lo com o tomismo, se por esta palavra se entende a filosofia de Sto. Tomás de Aquino. O tomismo é filosofia no sentido pleno; o neotomismo é, ao contrário, um movimento cultural e político — ideológico, em suma — votado à difusão dessa filosofia, tomada como solução pronta de todos os problemas e, portanto, esvaziada de boa parte de sua substância filosófica. Afinal, tudo o que é neo-alguma-coisa é, por definição, apenas uma nova casca da qual essa coisa é o miolo. Observações semelhantes poderiam fazer-se, com reservas, também do positivismo e do marxismo: em ambos há na raiz algo de filosofia autêntica, sufocada pelo desenvolvimento hipertrófico de um programa de ação prática, dela deduzido aos trambolhões. )

Filosofias que recuam da especulação teorética para a proposição de ações práticas são filosofias da decadência; marcam as épocas em que os homens já não conseguem compreender o mundo e passam a agitar-se para escapar de um mundo incompreensível. A sofística nasce, na Grécia, do fracasso das primeiras especulações cosmológicas de Tales, Anaximandro, Anaximenes, Parmênides e Heráclito; incapaz de resolver as contradições entre as teorias, ela transfere o eixo das preocupações humanas para a vida prática imediata: para a política do dia. Os sofistas são professores de retórica, que ensinam aos jovens políticos os meios de agir sobre as consciências. À sofística opõe Sócrates a dialética e o ideal da demonstração apodíctica que orientará os esforços gregos em direção ao saber científico. Cinco séculos mais tarde, após o esquecimento das grandes sínteses teoréticas de Platão e Aristóteles, tornam-se novamente dominantes as escolas praticistas: os cínicos, os cirenaicos, os megáricos e, em parte, os estóicos. E assim prossegue a história do pensamento Ocidental, numa pulsação entre o empenho da compreensão teorética e a queda no ceticismo praticista. O fundo comum de onde emergem o positivismo, o marxismo e o neotomismo é a dissolução do racionalismo clássico, levado a um beco sem saída pela crítica kantiana e que tem no idealismo alemão o seu canto de cisne. Positivismo, marxismo e neotomismo são as filosofias de uma época que não tem filosofia nenhuma; de uma época que anseia por transformar o mundo na medida mesma em que é incapaz de desempenhar o esforço teorético necessário para compreendê-lo.

Num texto clássico — Crise da Filosofia Ocidental ( l874 ) —, o filósofo russo Vladimir Soloviev previu que a filosofia, como atividade intelectual essencialmente individual, oposta ao pensamento coletivo da religião e da ciência, estava em vias de acabar, para ceder lugar a algo de totalmente diferente. Ele esperava o advento de uma grande síntese, mas o que se viu foi o advento do “século das ideologias”. Ora, o Brasil entra no curso espiritual do mundo justamente no momento em que Soloviev faz esse diagnóstico: recebemos maciçamente o impacto das novas ideologias, antes de termos podido vivenciar a tradição filosófica que as antecedeu. Nosso contato com as fontes filosóficas da civilização do Ocidente continuou superficial, ao passo que nos entregávamos de corpo e alma às retóricas coletivistas. Passado mais de um século, ainda não temos uma boa tradução de Aristóteles, mas publicamos, já na década de 60, as obras completas de Antonio Gramsci.

De outro lado, toda tentativa nossa de penetrar mais fundamente no campo da filosofia mesma ficou limitada pela timidez, pela insegurança, que nos fazia apegar-nos como crianças à proteção de algum superego estrangeiro da moda. Cinco décadas de atividade filosofante na USP foram resumidas no título acachapante do livro recém-publicado de Paulo Arantes: Um Departamento Francês de Ultramar. Escritórios de importação, representantes autorizados, imitação, pedantismo, oscilação entre a falsa consciência e a consciência de culpa marcam todos os nossos esforços filosóficos universitários no sentido de um pensamento independente. No fim, o intelectual com pretensões filosóficas só encontra alívio quando desiste delas e recai no pensamento coletivo; quando, abdicando de interpretar o mundo, se alinha, contrito e obediente, numa das correntes que professam transformá-lo: as conversões ao catolicismo, ao comunismo e às ideologias cientificistas originadas do positivismo constituem — independentemente dos motivos pessoais em cada caso — um melancólico ritornello na história dos fracassos das nossas ambições filosóficas. A queda no pensamento coletivo é vivenciada como um retorno da ovelha desgarrada, como uma libertação das culpas, como um reencontro com a infância perdida. Ao reintegrar-se numa comunidade ideológica o ex-filósofo arrependido encontra ainda um alívio para o isolamento que cerca o intelectual no meio subdesenvolvido, e o ingresso no grupo solidário arremeda a descoberta de um “sentido da vida”.

A intelectualidade brasileira estava, por todos esses fatores, fundamente predisposta ao apelo gramsciano, onde a vida intelectual deixa de ser o esforço solitário de quem cherche en gémissant, para tornar-se a participação num “sentido da vida” amparado pela solidariedade coletiva. O Partido é às vezes chamado por Gramsci “intelectual coletivo”. É o abrigo dos fracos. Aí a ascensão ao estatuto de intelectual é barateada: já não custa a penosa aquisição de conhecimentos, a investigação pessoal, a luta direta com as incertezas. Obtém-se pelo contágio passivo de crenças, de um vocabulário comum, de cacoetes distintivos13. A sociedade em torno legitima a paródia: diante dessas marcas exteriores, o brutamontes de direita acredita piamente estar na presença de um intelectual. A mídia faz o resto.

O segundo fator, a situação do momento, pode-se descrever mais ou menos assim: desde a derrota da luta armada, a esquerda andava em busca de uma estratégia pela qual se orientar. Não sendo capaz de criar uma nova e não encontrando no repertório mundial uma outra à sua disposição, ela aderiu a Gramsci quase por automatismo, sonambulicamente, levada pela carência de opções.

De fato, o comunismo internacional só teve, ao longo de sua história, um número pequeno de propostas estratégicas. Marx não apresentou nenhuma. A primeira que fez sucesso foi a de Lênin. Consistia na formação de uma elite autonomeada, na tomada do poder por um golpe súbito, na posterior conversão forçada do proletariado a uma causa vencedora que se apresentava como sua. A proposta de Lênin veio a predominar sobre o socialismo evolucionário de Edward Bernstein, o que provocou o racha entre os partidos comunistas e a social-democracia, que pregava a tomada do poder por via pacífica, eleitoral e gradualista. Hoje em dia a social-democracia é a grande vencedora, dominando toda a Europa; mas, no tempo de Lênin, sua rejeição pelos comunistas parecia prenunciar o seu fracasso, o que a queda de governos social-democratas ante o avanço do nazismo aparentemente confirmou. A terceira grande estratégia foi a de Mao Tsé-tung. Nas condições da China, não havia um proletariado urbano suficiente sequer para dar apoio moral à guerra revolucionária, e como, por outro lado, o exército revolucionário, banido dos grandes centros, acabasse iniciando uma “grande marcha” pelos campos, o apoio das populações camponesas tornou-se fundamental, e Mao teorizou a coisa a posteriori, transformando a revolução proletária em “guerra revolucionária operário-camponesa” — o que teria provocado engulhos em Karl Marx, que via nos camponeses uma horda de reacionários incuráveis. Paralelamente, a submissão do movimento comunista internacional aos interesses da política exterior soviética deu nascimento a uma quarta estratégia, que encontrou sua mais clara expressão no Front Popular, e que consistia fundamentalmente numa aliança dos comunistas com os “elementos progressistas” de todas as outras correntes, direitistas inclusive. Aí, a pretexto de antifascismo, até Benedetto Croce ficou simpático. Finalmente, a quinta estratégia do movimento comunista surgiu da revolução cubana e da guerra do Vietnã. Sem um autor definido, resultando de enxertos e mixagens de várias proveniências, ela fundia, num vasto plano de guerrilhas, o combate rural e o urbano. Uma de suas versões foi a “teoria foquista” difundida por um doidão de nome Régis Débray, que obteve ampla audiência na América Latina e propunha, para fazer face ao poder maciço do imperialismo norte-americano, a formação de variados e simultâneos “focos” de guerrilhas. A teoria resumia-se no slogan então pixado nos muros de todas as universidades: “Um, dois, três, muitos Vietnãs”. Deu no que deu. Dentre as muitas mixagens, uma particularmente interessante foi a que fundiu a estratégia comunista — até aí fundamentalmente proletária e camponesa, ao menos no nome — com as heresias de Herbert Marcuse, segundo o qual proletários e camponeses tinham-se integrado ao “sistema” e a revolução não tinha outros representantes autorizados senão os estudantes e intelectuais, de um lado, e, de outro, a massa dos miseráveis e marginalizados, o vasto Lumpenproletariat, do qual o velho Karl Marx aconselhava que os militantes comunistas fugissem como se foge de um assaltante à mão armada. Um dos resultados locais deste enxerto foi que, após a derrota da luta armada, os militantes brasileiros presos passaram a alimentar uma vaga esperança no potencial revolucionário do Lumpen, e, para adiantar o expediente, trataram de ir ensinando táticas de guerrilha aos bandidos com quem conviviam no presídio da Ilha Grande. ( Mais tarde ainda, a fusão do gramscismo com resíduos do marcusismo transformaria num dos pratos de resistência do cardápio esquerdista a defesa da legitimidade do banditismo como “protesto social”, que, formando polaridade com a onda de combate moralista aos “colarinhos brancos”, estabeleceria uma dupla moral para o julgamento dos crimes: brando para com o Lumpen, mesmo quando este mata ou estupra, rigoroso para com os ricos e a classe-média, quando cometem delitos contra o patrimônio — a mais curiosa inversão já observada na história da moralidade. )

Nessa resenha das estratégias comunistas, onde entra o gramscismo? Não entra. Ele ficou de fora, restrito a círculos locais italianos, e só alcançou maior difusão, mesmo na Itália, após a década de 50, com a edição das obras completas de Gramsci por Einaudi. A partir de l964, a facção comunista brasileira ainda fiel à orientação moscovita de aliança com a burguesia acreditou ver em Gramsci um potencial renovador desta estratégia, com a qual ele coincide ao menos no que diz respeito ao caráter eminentemente não-sangrento da luta revolucionária e na cuidadosa exclusão de quaisquer radicalismos que pudessem estreitar a base das colaborações possíveis. Porta-voz dessa corrente, o editor Ênio Silveira empreendeu então a publicação ao menos das principais obras de Gramsci: A Concepção Dialética da HistóriaMaquiavel, a Política e o Estado ModernoOs Intelectuais e a Organização da CulturaLiteratura e Vida Nacional e Cartas do Cárcere.

Estas obras foram muito lidas, mas, numa atmosfera dominada pela obsessão da luta armada, não exerceram influência prática imediata. Seu potencial ficou retido até a derrota da luta armada, que provocou, como não poderia deixar de ser, um retorno generalizado às teses do combate pacífico e aliancista defendidas pelo PC pró-Moscou. O reatamento do romance entre a esquerda armada e a desarmada deu-se, naturalmente, sobre um fundo musical orquestrado pelo maestro Antonio Gramsci. Simplesmente não havia outro capaz de musicar esta cena. A esquerda tornou-se gramsciana meio às tontas, jogada pelo entrechoque dos acontecimentos, como bolas de bilhar que, impelindo umas às outras, vão dar todas enfim na caçapa.

Agora, a imprensa brasileira acaba de descobrir, com um atraso de dez anos, que o programa do PT é gramsciano. Mas, além de tardia, esta descoberta é inexata: não é só o PT que segue Gramsci: todos os homens de esquerda neste país o fazem há uma década, sem se dar conta. O gramscismo domina a atmosfera por simples ausência de outras propostas e também por uma razão especial: atuando menos no campo do combate ideológico expresso do que no da conquista do subconsciente, ele se propaga por mero contágio de modas e cacoetes mentais, de maneira que põe a seu serviço informal uma legião de pessoas que nunca ouviram falar em Antonio Gramsci. O gramscismo conta menos com a adesão formal de militantes do que com a propagação epidêmica de um novo “senso comum”. Sua facilidade de arregimentar colaboradores mais ou menos inconscientes é, por isto, simplesmente prodigiosa.

Eis ai o terceiro fator a que me referi. O gramscismo é menos uma filosofia do que uma estratégia de ação psicológica, destinada a predispor o fundo do “senso comum” a aceitar a nova tábua de critérios proposta pelos comunistas, abandonando, como “burgueses”, valores e princípios milenares.

Que essa “filosofia”, para se propagar, não conte tanto com a persuasão racional como com a eficácia da penetração sutil no inconsciente das massas, é o que se vê claramente pela sua ênfase na conquista das mentes infantis — um terreno onde o avanço da esquerda vem causando um dano incalculável a milhões de crianças brasileiras, usadas como cobaias de uma desastrosa experiência gramsciana. Que, enfim, essa corrente haja alcançado sucesso no Brasil, é algo que testemunha a miséria intelectual de um meio onde os letrados, incapazes de suportar o isolamento, buscam menos a verdade e o conhecimento do que uma carteirinha de intelectual orgânico, que lhes garanta o apoio psicológico de um vasto grupo solidário e os aureole de um ambíguo prestígio aos olhos dos brutamontes de direita, sua mal disfarçada paixão.

Isso não poderia acontecer senão aqui.

 

 

Adendos

 

1

O número dos adeptos conscientes e declarados do gramscismo é pequeno, mas isto não impede que ele seja dominante. O gramscismo não é um partido político, que necessite de militantes inscritos e eleitores fiéis. É um conjunto de atitudes mentais, que pode estar presente em quem jamais ouviu falar de Antonio Gramsci, e que coloca o indivíduo numa posição tal perante o mundo que ele passa a colaborar com a estratégia gramsciana mesmo sem ter disto a menor consciência. Ninguém entenderá o gramscismo se não perceber que o seu nível de atuação é muito mais profundo que o de qualquer estratégia esquerdista concorrente. Nas demais estratégias, há objetivos políticos determinados, a serviço dos quais se colocam vários instrumentos, entre eles a propaganda. A propaganda permanece, em todas elas, um meio perfeitamente distinto dos fins. Por isto mesmo a atuação do leninismo, ou do maoismo, é sempre delineada e visível, mesmo quando na clandestinidade. No gramscismo, ao contrário, a propaganda não é um meio de realizar uma política: ela é a política mesma, a essência da política, e, mais ainda, a essência de toda atividade mental humana. O gramscismo transforma em propaganda tudo o que toca, contamina de objetivos propagandísticos todas as atividades culturais, inclusive as mais inócuas em aparência. Nele, até simples giros de frase, estilos de vestir ou de gesticular podem ter valor propagandístico. É esta onipresença da propaganda que o singulariza e lhe dá uma força que seus adversários, acostumados a medir a envergadura dos movimentos políticos pelo número de adeptos formalmente comprometidos, nem de longe podem avaliar.

Um detalhe que assinala bem as diferenças é a atitude do gramscismo perante a arte engajada. Outras estratégias exigem do artista que ele imprima às suas obras um sentido político determinado, ou que, pelo menos, sua visão do mundo, expressa em cada obra, seja coerente com a interpretação marxista. A literatura engajada do leninismo, do stalinismo ou do maoismo, é portanto uma coleção de obras das quais cada uma, por si, é uma peça de propaganda, com valor autônomo. Já no gramscismo o que interessa é apenas o efeito de conjuntoda massa de obras literárias em circulação. Esse efeito de conjunto deve tender à mudança do senso comum desejada pelo Partido, pouco importando que cada obra, tomada isoladamente, nada tenha de marxista ou seja mesmo destituída de qualquer valor propagandístico.

Graças a isto, o julgamento gramsciano de cada obra é muito menos rígido e dogmático que o de outras correntes marxistas — o que muito contribuiu para elevar o seu prestígio entre intelectuais ansiosos por conciliar seus ideais marxistas com seu desejo pessoal de liberdade.

No gramscismo, qualquer obra literária pode contribuir para a propaganda marxista, dependendo apenas do contexto em que é divulgada — tal como num jornal o teor das notícias tomadas individualmente interessa menos do que sua localização na página, ao lado de outras notícias cujo efeito de conjunto imprime um novo sentido a cada uma delas.

O objetivo primeiro do gramscismo é muito amplo e geral em seu escopo: nada de política, nada de pregação revolucionária, apenas operar um giro de cento e oitenta graus na cosmovisão do senso comum, mudar os sentimentos morais, as reações de base e o senso das proporções, sem o confronto ideológico direto que só faria excitar prematuramente antagonismos indesejáveis.

As mudanças aí operadas podem ser, no entanto, muito mais profundas e decisivas do que a mera adesão consciente de um eleitorado às teses comunistas. Mudanças de critério moral, por exemplo, têm efeitos explosivos. Essas mudanças podem ser induzidas através da imprensa, sem qualquer ataque frontal e explícito aos critérios admitidos. Um caso que ilustra isto perfeitamente bem, e que demonstra o alcance da estratégia gramsciana no Brasil, é o do noticiário sobre corrupção. A campanha pela Ética na Política não surgiu com um intuito moralizador, mas como uma proposta política antiliberal. Numa entrevista ao Jornal do Brasil, um dos fundadores da campanha, Herbert de Souza, o Betinho, deixou isso perfeitamente claro. A campanha surgiu numa reunião de intelectuais de esquerda em busca de uma fórmula contra Collor, muito antes de que houvesse qualquer denúncia de corrupção no governo. Mais tarde, estas denúncias vieram a dar à campanha uma força inesperada, trazendo para ela a adesão de massas de classe-média moralista que, politicamente, teriam tudo para se opor a qualquer proposta explicitamente esquerdista. Ora, a campanha exerceu uma influência decisiva na direção do noticiário nos jornais e na TV. Essa influência foi tal que introduziu nos julgamentos morais uma mudança profunda. Impressionado pelo conteúdo escandaloso das notícias, o público nem de longe reparou que a edição delas subentendia essa mudança, que, conscientemente, ele não aprovaria. Ela consistiu em fazer com que os crimes contra o patrimônio público parecessem infinitamente mais graves e revoltantes do que os crimes contra a pessoa humana. P. C. Farias, um trêmulo estelionatário incapaz de dar um pontapé num cachorro, era apresentado como um Al Capone, ao mesmo tempo que se minimizava a gravidade do banditismo armado. Se de um lado jornalistas de esquerda promovem um ataque maciço aos criminosos de colarinho branco e de outro lado intelectuais de esquerda lutam para que os chefes de bandos de assassinos armados sejam reconhecidos como “lideranças populares” legítimas, o efeito conjugado dessas duas operações é bem nítido: atenuar a gravidade dos crimes contra a pessoa, quando cometidos pela classe baixa e aproveitáveis politicamente pelas esquerdas, e enfatizar a dos crimes contra o patrimônio, quando cometidos por membros da classe dominante. Eis aí a luta de classes transformada em supremo critério da moral, desbancando o preceito milenar, arraigado no senso comum, de que a vida é um bem mais sagrado do que o patrimônio.

Para que essas duas operações ocorram simultaneamente, produzindo um resultado unificado, não é preciso que emanem de um comando central organizado. Basta que os intelectuais envolvidos numa e noutra comunguem ainda que vagamente de um espírito revolucionário gramsciano, para que, numa espécie de cumplicidade implícita, cada qual realize sua tarefa e todos os resultados venham a convergir na direção dos fins gramscianos. Isto não exclui, é claro, a hipótese de um comando unificado, mas, para o sucesso da estratégia gramsciana, a unidade de comando, ao menos ostensiva, é bastante dispensável na fase da luta pela hegemonia.

É interessante saber que, na Constituição do Estado soviético, o homicídio doloso era punido com apenas dez anos de cadeia e os crimes contra a administração pública sujeitavam o culpado à pena de morte. Nem poderia ser de outro modo, dado o pouco valor que, na perspectiva marxista, tem a vida individual quando não posta a serviço da revolução. Ora, o noticiário sobre corrupção conseguiu introduzir na mente brasileira o hábito de julgar as coisas segundo uma escala moral soviética; e o fez com muito mais eficiência do que lograria em anos e anos de debates explícitos. Uma vez explicitada, essa mudança seria rejeitada com horror por um povo em que ainda são vivos, no fundo, os sentimentos cristãos. Introduzida por baixo, como critério subjacente, ela penetra às ocultas no senso comum e o perverte até a raiz, preparando-o para aceitar passivamente, no futuro, aberrações maiores ainda, que venham a ser impostas por um Estado socialista14.

A atuação espontânea, aparentemente inconexa, de milhares de intelectuais — no sentido gramsciano — em setores distintos da vida pública, pode ser facilmente dirigida para onde o deseja a revolução gramsciana, não sendo necessário para isto nem mesmo um oculto Comitê Central de super-cérebros a comandar o conjunto da operação. Basta que uma cumplicidade inicial se estabeleça entre certos grupos, para que, sobretudo na ausência de qualquer confronto crítico com outras correntes, o gramscismo avance como sobre trilhos azeitados, na estrada que leva à conquista da hegemonia. Ele já penetrou fundo, por esse caminho, na mentalidade brasileira. Quando um partido político assume publicamente sua identidade gramsciana, é que a fase do combate informal — a decisiva — já está para terminar, pois seus resultados foram atingidos. Vai começar a luta pelo poder. O que marca esta nova fase é que todos os adversários ideológicos já foram vencidos ou estão moribundos; nenhum outro discurso ideológico se opõe ao gramscismo, e os adversários políticos que restam lhe dão ainda maior reforço, na medida em que, não possuindo alternativa mental, pensam dentro dos quadros conceituais e valorativos demarcados por ele e só podem combatê-lo em nome dele mesmo. Isto é hegemonia.

 

2

Gramsci jura que é leninista, mas como ele atribui a Lênin algumas idéias de sua própria invenção das quais Lênin nunca ouviu falar, as relações entre gramscismo e leninismo são um abacaxi que os estudiosos buscam descascar revirando os textos com uma paciência de exegetas católicos. Uma dessas idéias é a de “hegemonia”, central no gramscismo. Gramsci diz que ela foi a “maior contribuição de Lênin” à estratégia marxista, mas o conceito de hegemonia não aparece em parte alguma dos escritos de Lênin. Alguns exegetas procuraram resolver o enigma identificando a hegemonia com a ditadura do proletariado, mas isto não dá muito certo porque Gramsci diz que uma classe só implanta uma ditadura quando não tem a hegemonia. As relações entre Gramsci e Marx também são embrulhadas, como se vê no uso do termo “sociedade civil”: para Marx, sociedade civil é o termo oposto e complementar do “Estado”, e, logo, se identifica com o reino das relações econômicas, ou infra-estrutura. Em Gramsci, a sociedade civil, somada à sociedade política ou Estado, compõe a superestrutura que se assenta sobre a base econômica.

Essas e outras dificuldades de interpretação do pensamento de Gramsci decorrem, em parte, do caráter fragmentário e disperso dos seus escritos. Talvez elas possam ser resolvidas, mas o que é realmente espantoso é que, alguns anos após revelada ao mundo a maçaroca dos textos gramscianos, e antes mesmo que algum sério exame produzisse uma interpretação aceitável do seu sentido, ela já fosse adotada como norma diretiva por várias organizações, começando a produzir efeitos práticos sobre os quais ninguém, nessas condições, poderia ter o mínimo controle. Essa adesão apressada a uma idéia que mal se compreendeu assinala uma tremenda irresponsabilidade política, um desejo ávido de atuar sobre a sociedade humana sem medir as consequências. É claro que ninguém adere a Gramsci com outro propósito que não o de implantar o comunismo em alguma parte do mundo. Mas, sendo o gramscismo um pensamento obscuro e às vezes incompreensível, não há nenhum motivo para crer que sua aplicação deva produzir nem mesmo esse resultado, lamentável o quanto seja. Pode acontecer, por exemplo, que a estratégia gramsciana não gere outro efeito além de tornar os burgueses ateus, retirando os freios que a religião impunha à sua cobiça e ao seu maquiavelismo. Algo muito parecido aconteceu na própria terra de Gramsci: é impossível não haver conexão entre a decadência da fé católica e a transformação da Itália numa Sodoma capitalista. A nova cultura materialista e gramsciana que dominou a atmosfera intelectual italiana desde a década de 60 muito contribuiu para esse resultado; apenas, não se vê que vantagem os comunistas puderam tirar disso. Os esquerdistas brasileiros deveriam pensar na experiência italiana antes de atirar-se a aventuras gramscianas que, na educação como na política, podem levar a resultados tão confusos quanto as idéias que as inspiram.

 

3

O termo “Estado ético” é ele mesmo um dos primores de ambiguidade que se encontram na mixórdia gramsciana. Ora ele designa o Estado comunista, ora o Estado capitalista avançado, ora qualquer Estado. De modo mais geral, Gramsci denomina “ético” todo Estado que procure elevar a psique e a moral de seus cidadãos ao nível atingido pelo “desenvolvimento das forças produtivas”, subentendendo-se que o Estado comunista faz isto melhor do que ninguém. A idéia é intrinsecamente imoral: consiste em submeter a moral às exigências da economia. Se, por exemplo, um determinado estágio do “desenvolvimento das forças produtivas” requer que todos os habitantes de uma região sejam removidos para o outro extremo do país, como aconteceu muitas vezes na União Soviética, torna-se “ética” a conduta de um garoto que denuncie o pai às autoridades por tentar fugir para uma cidade próxima. A asquerosa admiração que os brasileiros vêm demonstrando nos últimos tempos pelos irmãos que delatam irmãos, pelas esposas que delatam maridos, é índice de uma nova moralidade, inspirada em valores gramscianos. Não há dúvida de que o novo critério é “ético” no sentido gramsciano, isto é, economicamente útil, já que a delação generalizada de pais, irmãos, maridos e amantes pode ressarcir alguns prejuízos sofridos pelo Estado. Mas isto não atenua sua imoralidade intrínseca.

 

415

Em cursos e conferências, venho falando do gramscismo petista desde 1987 pelo menos, para platéias em que não faltaram jornalistas. Mas a imprensa brasileira, refratária a tudo quanto seja novo, só em 1994 informou ao público a inspiração gramsciana do petismo, quando ela não era mais uma tendência latente e já se havia externalizado no programa oficial do partido. O primeiro a dar o alarma foi Gilberto Dimenstein, na Folha de S. Paulo, logo após a publicação deste livro que aliás nem sei se ele leu; mas limitava-se a mencionar o nome do ideólogo italiano, sem nada dizer do conteúdo de suas idéias. Não teve a menor repercussão. Mais tarde li duas ou três frases alusivas a Gramsci, em outros jornais e em Veja. Tudo muito sumário, num tom de quem contasse com a compreensão de uma platéia versadíssima em gramscismo. É o velho jogo-de-cena do histrionismo brasileiro: dar por pressuposto que o ouvinte sabe do que estamos falando é um modo de induzi-lo a crer que sabemos do que falamos. Na verdade, fora dos círculos do petismo letrado, só sabem de Gramsci uns quantos acadêmicos, entre os quais Oliveiros da Silva Ferreira, que defendeu uma tese sobre o assunto numa USP carregada de odores gramscianos, na década de 60. Gramsci continua esotérico, lido só em família, a salvo de qualquer crítica exceto amigável — uma crítica dos meios, conivente com os fins, numa atmosfera de culto e devoção que raia a pura e simples babaquice. Mas pelo mundo civilizado circulam críticas devastadoras, que provavelmente jamais chegarão ao conhecimento do público brasileiro. Assinalo as de Roger Scruton16 e Alfredo Sáenz17, que tomam o assunto por lados bem diferentes daquele que abordo neste livro, mas chegam a conclusões não menos reprobatórias.

Devo apontar como exceção notável, ainda que tardia, um artigo de Márcio Moreira Alves18. Ele resgata parcialmente a honra da imprensa brasileira, mostrando que há nela pelo menos um cérebro capaz de saber de Gramsci algo mais do que o nome e pelo menos um repórter que não foge da notícia. Ele explica em linhas gerais a estratégia gramsciana e o estado presente de sua aplicação pela liderança petista, levando à conclusão de que, em vez de criar uma democracia como o partido promete, ela vai produzir aqui a ditadura de uma capelinha de intelectuais. É lamentável, apenas, que no reduzido espaço de sua coluna o sempre surpreendente Moreira Alves não pudesse abranger assunto tão vasto senão em abreviatura pesadamente técnica, de difícil assimilação pelo público. O Globo deveria dar-lhe duas páginas inteiras para trocar em miúdos os ensinamentos ali contidos, talvez os mais importantes e urgentes que a imprensa brasileira transmitiu ao público nos últimos anos.

Particularmente oportuna é ali a observação de que o programa mesmo do PT reconhece — oficialmente, por assim dizer — a hegemonia da esquerda, principalmente no campo cultural mas também na política, na medida em que proclama o ingresso atual do Brasil num novo “bloco histórico” ( sistema cerrado de relações entre a economia e a superestrutura cultural, moral e jurídica ). É digna da maior atenção, no programa do PT, a parte referente à “revolução passiva”. A passagem ao novo “bloco histórico” será feita pela elite ativista com base no “consenso passivo” da população. Isto quer dizer, sumariamente, que o povo não precisará manifestar seu apoio ao programa do PT para que este se sinta autorizado a promover a transformação revolucionária da sociedade. A simples ausência de reação hostil, para não dizer de rebelião, será interpretada como aprovação popular: quem cala consente, em suma. A proposta é de um cinismo descarado. Ela investe o PT do direito divino de agir em nome do povo sem precisar ouvi-lo, já que o silêncio se tornará aplauso. Durante sete décadas o silêncio de um povo oprimido foi interpretado como “aprovação passiva” pelo governo da URSS. Em linguagem técnica mas incisiva, Márcio Moreira Alves mostra que por esse caminho não se pode chegar a uma democracia. Discordo dele só num ponto: ele acha que a estratégia petista é uma traição aos ideais de Gramsci, e eu estou seguro de que ela é a mais pura encarnação do gramscismo universal19.

O mais lamentável em toda essa história é que a massa dos militantes do PT não tem a menor condição intelectual de compreender as sutilezas da estratégia gramsciana, e vai se deixando conduzir sonambulicamente pelos guias iluminados, sem fazer perguntas quanto à verdadeira meta da jornada.

 

NOTAS

  1. Para Karl Marx, aqueles que captam o sentido do movimento da História e representam as “forças progressistas” ficam ipso factoliberados de qualquer dever com a “moral abstrata” da burguesia; seu único dever é acelerar o devir histórico em direção ao socialismo, pouco importando os meios. Baseado nesse princípio, Lênin codificou a moral partidária, onde o único dever é servir ao partido. Esta moral, por sua vez, deu origem ao Direito soviético, que colocava acima dos direitos humanos elementares os deveres para com o Estado revolucionário. A delação de corruptos ou traidores, por exemplo, era na União Soviética uma obrigação básica do cidadão. Mas não é só na teoria que o comunismo é imoral. No Estado socialista, todos são funcionários públicos, e basta isto para que a corrupção se torne institucional. Na União Soviética ninguém conseguia tirar um documento ou consertar uma linha telefônica sem soltar propinas: ao socializar a economia, socializa-se a corrupção. A desonestidade desce das camadas dominantes para corromper todo o povo. O mesmo aconteceu na China, país que ademais se notabilizou por ser o maior distribuidor de tóxicos deste planeta. A justificativa, na época, era que os tóxicos enfraqueceriam a “juventude burguesa” e facilitariam o avanço do socialismo, sendo, portanto, benéficos ao progresso humano. As drogas só se tornaram um problema de escala mundial graças ao comunismo chinês, que, com isto, se tornou culpado de um crime de genocídio pelo qual, até hoje, ninguém teve coragem de acusá-lo.Ainda segundo a moral comunista, as pessoas profundamente apegadas aos ideais burgueses são doentes incorrigíveis, devendo por isto ser isoladas ou exterminadas. Sessenta milhões de pessoas foram mortas, na União Soviética, em nome da reedificação da cultura e da personalidade. No Camboja, o genocídio foi adotado como procedimento normal e legítimo.Foram os comunistas que, com base nas descobertas de Pavlov, desenvolveram o sistema de lavagem cerebral, para despersonalizar os prisioneiros e levá-los a confessar crimes que não haviam cometido.

    Foi também o comunismo que instituiu o sistema de romper sem aviso prévio acordos internacionais, tratados de paz e compromissos comerciais, institucionalizando no mundo o do gangsterismo como norma de conduta diplomática, depois copiado por Hitler. Campos de concentração e de extermínio são também uma invenção comunista imitada pelo nazismo.

    O governo comunista da URSS criou o maior sistema de espionagem interna de que se teve notícia na história humana, a KGB, e por meio dela tornou-se o primeiro governo essencialmente policial do mundo.

    O comunismo foi ainda o primeiro regime a instituir em escala continental a mentira sistemática como padrão de ensino público, e a falsificação da ciência como meio de controle da opinião.

    Que tudo isso possa ser um enorme tecido de coincidências, que não haja nenhuma conexão intrínseca entre todos esses horrores e a ideologia socialista, é somente mais uma mentira propagada por intelectuais ativistas cuja formação marxista os tornou para sempre cínicos, hipócritas e incapazes de qualquer sentimento moral.

    A participação intensa de intelectuais marxistas na campanha pela “Ética na Política” é um sinal seguro de que essa campanha não moralizará a política, mas apenas politizará a ética, tornando-a uma serva de objetivos intrinsecamente imorais. Quem viver, verá. [ N. da 2ª ed.. ]

  2. Exemplo característico da mutação da escala moral é a campanha contra a Aids. É mais do que evidente que a liberação sexual favorece a disseminação dessa doença. No entanto, jornalistas e agitadores culturais do mundo todo estão levando as pessoas a crer que o conservadorismo moral, particularmente católico, é o culpado pela difusão da Aids, na medida em que se opõe à distribuição de camisinhas. Fazer de um efeito desastroso da liberação sexual um argumento contra a moral conservadora é um truque sofístico que só ocorreria a mentalidades inteiramente perversas. Os liberacionistas dão com isso um exemplo horrendo de insensibilidade moral, de hipocrisia cínica. Ocultar suas próprias culpas por trás da acusação lançada a um inocente é um dos comportamentos mais baixos que se podem conceber. Por outro lado, do ponto de vista meramente prático, a esperança no poder das camisinhas é uma insensatez, para dizer o mínimo. Junto com ela vem a recusa de enxergar a parcela de razão que têm os religiosos nessa questão. Qual a taxa de Aids entre católicos praticantes, evangélicos, monges budistas, judeus ortodoxos, mussulmanos devotos? É praticamente nula. Uma bela campanha moralista, por desagradável que fosse ( e para mim também o seria, pois pessoalmente sou mais pela liberação ), faria mais para conter o avanço da Aids do que a distribuição de trilhões de camisinhas. Neste momento da história, qualquer campanha moralista, por boboca que nos pareça, é um empreendimento digno de louvor, uma contribuição à salvação da espécie humana. Se amanhã ou depois a população do Brasil aderir em peso aos Pentecostais, ao Bispo Macedo ou à Renovação Carismática, a Aids estará vencida entre nós. Isto é uma obviedade que só os intelectuais não enxergam. [ N. da 2ª ed. ]
  3. Querem um retrato moral de Antonio Gramsci? Podem encontrá-lo numa das fábulas que, da prisão, ele remetia para que fossem lidas à sua filha:”Enquanto um menino dormia, um rato bebeu o leite que a mãe lhe havia preparado. Quando o menino acordou, pôs-se a chorar porque não encontrou o leite; a mãe, por seu lado, também chora. O rato tem remorsos, bate a cabeça contra a parede, mas finalmente percebe que aquilo de nada serve. Então, corre à cabra para conseguir mais leite. Mas a cabra diz ao rato que só lhe dará leite se tiver capim para comer. Então, o rato vai até o campo, mas o campo é árido e não pode dar capim se não for molhado antes. O rato vai à fonte, mas esta foi destruída pela guerra e a água se perde; é preciso que o pedreiro conserte a fonte. O pedreiro precisa das pedras, que o rato vai buscar numa montanha, mas a montanha está toda desmatada pelos especuladores. O rato conta toda a história e promete que o menino, quando crescer, plantará novas árvores na montanha. E assim a montanha dará as pedras, o pedreiro refará a fonte, a fonte dará a água, o campo dará o capim, a cabra fornecerá o leite e, finalmente, o menino poderá comer e não chorará mais.” ( Laurana Lajolo, Antonio Gramsci. Uma Vida, trad. Carlos Nelson Coutinho, São Paulo, Brasiliense, 1982. )As fábulas sempre foram, ao longo dos tempos, um depósito de símbolos portadores de um ensinamento espiritual. Por meio delas, a criança tinha o acesso ao conhecimento das possibilidades humanas mais elevadas, e este conhecimento, tanto mais potente porque cristalizado numa linguagem mágica e alusiva, bastava para defender sua alma da total imersão na banalidade esterilizante do meio adulto. Elas representavam, assim, o fio de continuidade do núcleo mais puro da alma humana no meio da agitação alienante da “História”.

    Gramsci consegue aqui inverter a função da fábula, transformando-a num meio de ensinar à criança, com realismo literal, o processo de produção capitalista – da matéria-prima à comercialização – e para lhe inocular, de um só golpe, o ódio aos malditos especuladores e a esperança na futura utopia socialista, onde “tudo será mais belo”.

    O que Gramsci fez com sua própria filha, por que não o faria com os filhos dos outros? É preciso que a pregação comunista atinja os cérebros enquanto ainda estão tenros e indefesos, e, fechando-lhes o acesso a toda concepção de ordem espiritual, os encerre para sempre no círculo de ferro da mundanidade “histórica” ( v. adiante, Cap. III ).

    Gramsci revela aqui toda a mesquinhez da sua concepção do mundo, onde a economia é não só o motor da História, mas o limite final do horizonte humano.

    Que um tipo desses possa ser objeto de culto sentimentalista entre os militantes, isto mostra que a ideologia comunista traz em seu bojo uma perversão dos sentimentos, uma mutilação da alma humana. É preciso muito agitproppara fazer de Gramsci um personagem digno de admiração. Mas entre militantes esquerdistas já vi sujeitos capazes de proferir toda sorte de blasfêmias contra a religião alheia terem tremeliques de emoção religiosa ante o santo nome de Antônio Gramsci. Essa sentimentalidade pseudo-religiosa não é um excesso de zelo: é a essência mesma do gramscismo, que beatifica o mundano para abafar e perverter o impulso religioso e transformá-lo em devoção partidária. Querem ver no que dá? Narrando a morte de Gramsci, a hagiógrafa Laurana Lajolo ( op. cit., p. 148 ) termina falando dos cadernos “nos quais Antônio Gramsci havia depositado, em sentido laico e historicista, a imortalidade da sua alma, a possibilidade de sobrevivência intelectual na história”. Só um gramsciano roxo é incapaz de enxergar o ridículo que há em teologizar a esse ponto a fama literária. Se a idéia valesse, os imortais da Academia já não seriam imortais figuradamente, mas literalmente – e nossas preces pela vida eterna não deveriam dirigir-se a Jesus Cristo, e sim à pessoa do sr. Josué Montello. [ N. da 2ª ed. ]

  4. O fenômeno da pseudo-intelectualidade é um dos traços mais marcantes do chamado Terceiro Mundo, e é ela, não o proletariado ou as massas famintas, a base social dos movimentos revolucionários. Eric Hoffer, que examinou o assunto com mais seriedade do que ninguém, explica esse fenômeno pelas condições peculiares em que, nessa parte do globo, se deu, com a reforma modernizadora empreendida pelas potências Ocidentais, a quebra do modo de vida comunitário-patriarcal. Escrevendo no começo da década de 50, e mencionando nomeadamente a Ásia, ele fala em termos que se aplicam com precisão ao Brasil de hoje: “Em toda a Ásia, antes do advento da influência Ocidental, o indivíduo estava integrado num grupo mais ou menos compacto – a família patriarcal, o clã ou a tribo. Do nascimento à morte, sentia-se parte de um todo eterno e contínuo. Jamais se sentia sozinho, jamais se sentia perdido, jamais se via como um pedaço de vida flutuando numa eternidade de nada. A influência Ocidental […] destruiu e corroeu a maneira tradicional de vida. O resultado não foi a emancipação, e sim o isolamento e o desamparo. Um indivíduo imaturo foi arrancado do calor e segurança de uma existência coletiva e deixado órfão num mundo frio.”O indivíduo recém-surgido pode atingir algum grau de estabilidade […] somente quanto lhe oferecem abundantes oportunidades de auto-afirmação ou auto-realização. Somente assim ele poderá adquirir a autoconfiança e auto-estima […]. Quando a autoconfiança e a auto-estima parecem inatingíveis, o indivíduo em formação torna-se uma entidade altamente explosiva. Tenta obter uma impressão de confiança e de valor abraçando alguma verdade absoluta e identificando-se com os atos espetaculares de um líder ou de algum corpo coletivo – seja uma nação, uma congregação, um partido ou um movimento de massa.”É necessário uma rara constelação de circunstâncias para que a transição de uma existência comunitária para a individual siga o seu curso sem ser desviada ou invertida por complicações catastróficas. […] O indivíduo em surgimento na Europa, no fim da Idade Média, enxergou panoramas deslumbrantes de novos continentes, de novas rotas de comércio, de novos conhecimentos. O ar estava carregado de novas expectativas e havia a sensação de que o indivíduo por si só era capaz de qualquer empreendimento. A mudança […] produziu uma explosão de vitalidade […].

    “Essa excepcional combinação de circunstâncias não estava presente na Ásia. Ali, ao invés de ser estimulado por perspectivas deslumbrantes e oportunidades jamais sonhadas, [ o indivíduo ] se viu enfrentando uma vida estagnada, debilitada, e extraordinariamente pobre. É um mundo onde a vida humana é a coisa mais abundante e barata. É, além disso, um mundo analfabeto. […]

    “A minoria letrada é, assim, impedida de adquirir um senso de utilidade e de valor tomando parte no mundo do trabalho, e é condenada a uma vida de pseudo-intelectuais tagarelas e cheios de pose.

    “O extremista da Ásia é hoje geralmente um homem de certa instrução que tem horror ao trabalho manual e um ódio mortal pela ordem social que lhe nega uma posição de comando. Todo estudante, todo escriturário e funcionário menos graduado se sente como um escolhido. É essa gente palavrosa e fútil que dá o tom na Ásia. Vivendo vidas estéreis e inúteis, não possuem autoconfiança e auto-respeito, e anseiam pela ilusão de peso e importância.

    “É principalmente a esses pseudo-intelectuais que a Rússia comunista dirige seu apelo. Traz-lhes a promessa de tornarem-se membros de uma elite governante, a perspectiva de terem ação no processo histórico e, com seu falatório doutrinário, proporciona-lhes uma sensação de peso e profundidade.” ( Eric Hoffer, The Ordeal of Change, London, Sidgwick & Jackson, 1952; trad. brasileira de Sylvia Jatobá, O Intelectual e as Massas, Rio, Lidador, 1969, pp. 16 ss..) É a descrição exata da liderança petista. [ N. da 2a. ed.. ]

  5. A proposta do PT, de dar prêmios aos cidadãos que delatem casos de corrupção, seria repelida com horror se apresentada uns anos atrás, quando a corrupção não era menor mas os sentimentos morais da população brasileira conservavam uns vestígios de normalidade porque ainda não tinham sido corrompidos pela “campanha da Ética”. Hoje, é aceita com aplausos dos que não percebem nela aquilo que ela verdadeiramente é: a instauração do Estado policial em nome da moralidade, a corrupção de todas as relações humanas pela universalização da suspeita, o incentivo à espionagem de todos contra todos. Para que o Estado não perca dinheiro, será preciso que todos os brasileiros percam a dignidade e o respeito próprio, transformando-se em alcagüetes premiados. [ N. da 2ª ed. ]
  6. Escrito para a 2a. edição.
  7. Roger Scruton, Thinkers of the New Left, Harlow ( Essex ), Longman, 1985. [ N. da 2a. ed. ]
  8. Alfredo Sáenz, s. J., “La estratégia ateísta de Antonio Gramsci”, em Ateísmo y Vigencia del Pensamiento Católico. Actas del Cuarto Congreso Catolico Argentino de Filosofía, Córdoba, Asociación Católica Interamericana de Filosofía, 1988, pp. 355-366. [ N. da 2a. ed.. ]
  9. “A revolução passiva”, O Globo, 28 de junho de 1994.
  10. Há pensadores de quem a gente diverge com o maior respeito. Entre os marxistas, esse é para mim o caso de um Adorno, de um Horkheimer, de um Marcuse, ou mesmo de um Lukács. Mas por Gramsci, como o leitor já deve ter percebido, não consigo sentir o menor respeito, porque ele não respeita nada e se porta ante dois milênios de civilização com a petulância dos ignorantes. Acho uma babaquice ter ante um escritor qualquer uma reverência maior do que a que ele tem ante Moisés, Jesus Cristo ou a Virgem Maria. Mas a atmosfera de culto em torno do nome de Antonio Gramsci é tão carregada de zelo, que acaba inibindo por contágio inconsciente até os melhores cérebros, impedindo-os de chegar a uma visão objetiva e crítica do pensamento de Gramsci. [ N. da 2a. ed. ]

Capítulo III

A Nova Era e a Revolução Cultural: Capítulo I

Capítulo I

LANA CAPRINA,
OU: A SABEDORIA DO SR. CAPRA

NO COMEÇO de novembro7 estará chegando ao Brasil o sr. Fritjof Capra, chamado pela Universidade Holística de Brasília para falar sobre a Nova Era que ele anuncia no seu livro O Ponto de Mutação.

A voz do sr. Capra não clamará no deserto. A Universidade Holística já reuniu uma congregação de intelectuais locais para dizer-lhe amém. Entre os acólitos contam-se Frei Betto e o ex-reitor da UnB, Christovam Buarque. O sr. Capra, já se vê, não é um escritor como os outros: é um líder, uma autoridade espiritual e, admitamos logo, um profeta.

O conteúdo de suas profecias é bastante conhecido: O Ponto de Mutação anda até nas mãos das crianças, que o debatem nas escolas. Mas, segundo a Universidade Holística, isso não basta. O sr. Capra tem de ser ouvido por todos os amigos da espécie humana. Pois, embora homônimo de um cineasta que se celebrizou pelas fitas de happy end, ele não garante nenhum final feliz para o nosso século a não ser que a humanidade siga os seus conselhos. Passemos portanto a examiná-los, com a urgência requerida pelo caso.

Segundo o sr. Capra, a história do mundo chegou a um turning point, e deve mudar o seu curso. As três principais mudanças em pauta são as seguintes: primeira, a humanidade deixará de consumir combustíveis fósseis ( petróleo ); segunda, o patriarcado vai acabar; terceira, o paradigma científico vigente será substituído por um outro, de base holística. Estas três coisas já estão acontecendo, mas, assegura o sr. Capra, urge apressar a sua consumação, que marcará o advento da Nova Era.

Ao falar do primeiro item, o sr. Capra é muito breve, como convém aos profetas. Em vez das longas análises que concede aos dois outros temas, ele emite apenas esta profecia: “Esta década será marcada pela transição da era do combustível fóssil para uma nova era solar, acionada por energia renovável oriunda do Sol.” Tendo o livro sido publicado em 1981, a década a que o sr. Capra se refere terminou em 1990. Bem, nem todos os profetas dão sorte. Mas, se a mencionada profecia vier a cumprir-se com quatro, cinco ou nove décadas de atraso, o sr. Capra sempre poderá alegar que S. João Evangelista também não foi muito preciso quanto à data do Apocalipse.

Como muitos outros profetas, o sr. Capra pode queixar-se de ser um incompreendido. Eu, por exemplo, não compreendo como é que o mundo poderia ter saltado direto da era dos combustíveis fósseis para a da energia solar, sem passar pela era atômica, na qual já estávamos na data de emissão da profecia e na qual continuamos a estar após a data do seu vencimento. Mas talvez a intuição profética do sr. Capra opere à velocidade da luz, saltando etapas. Eis aí aliás um bom motivo para saltarmos logo para o item seguinte, já que o primeiro capítulo da mutação não teve um happy end.

O patriarcado consiste, segundo o sr. Capra, num complexo de três elementos: primeiro, o domínio do homem sobre a mulher; segundo, o domínio da espécie humana sobre a natureza; terceiro, o predomínio da razão ( faculdade masculina ) sobre a intuição ( feminina ). São três lados de um fenômeno único, que o sr. Capra resume como a supremacia do yang sobre o yin.

É, como se vê, um tipo especial de patriarcado, bem diferente daquele que podemos encontrar nos livros de história e sociologia. Pois estes nos dizem que o aumento do poderio técnico sobre a natureza abalou o regime de propriedade rural no qual se esteava o patriarcado; e que o advento do Império da Razão, trazido no bojo da Revolução Francesa, promoveu logo em seguida a igualdade de direitos para homens e mulheres, desferindo o golpe de misericórdia na autoridade do pater familias. Em suma, que das três coisas que o sr. Capra reúne sob o rótulo comum de “patriarcado”, duas são precisamente o contrário. Mas os profetas não ligam para as ciências profanas. Non enim cogitationes meae cogitationes vestrae, já nos tinha advertido a Bíblia. O sr. Capra, com efeito, não pensa como nós.

Mas há algo nele que pelo menos alguns de nós podem compreender perfeitamente bem. Sendo a lógica, no seu entender, uma expressão do abominável patriarcado cujo fim ele deseja, ele não poderia mesmo obedecê-la sem tornar-se, ipso facto, ilógico. É então por uma simples questão de lógica que ele opta por ser ilógico. Qualquer bebê de colo pode compreender isto. O difícil é compreendê-lo quando já não se é um bebê de colo. Para ser admitido nos céus da Nova Era, o leitor deve portanto tornar-se como os pequeninos.

Eis aqui um caso típico. Para livrar-se do odioso patriarcado, diz o nosso profeta, a humanidade deveria inspirar-se no exemplo da civilização chinesa, cuja concepção da natureza humana, expressa sobretudo no I Ching, “está em flagrante contraste com a da nossa cultura patriarcal”. Buscando agora munição antipatriarcal nas páginas do I Ching, o leitor encontrará, no hexagrama 37, as seguintes recomendações: “A esposa deve ser sempre guiada pela vontade do senhor da casa, isto é, pelo pai, pelo marido ou pelo filho adulto. O lugar dela é dentro de casa.” A vida que Betty Friedan pediu a Deus. Aliás, segundo informa Marcel Granet no clássico La Civilisation Chinoise8, o feudalismo chinês, período no qual se redigiu o grosso dos comentários do I Ching, “repousa sobre o reconhecimento do predomínio masculino”. A China a que o sr. Capra se refere não deve portanto ser a mesma que os geógrafos profanos conhecem por esse nome.

O que o sr. Capra não pode mesmo é ser acusado de facciosismo sinófilo. Pois, se ele rejeita a lógica ocidental, nem por isto se curva às exigências da oriental. Segundo ele, o yangrepresenta a razão analítica, que divide, e o yin a intuição, que unifica. Os chineses, nada entendendo destas sutilezas, representaram o divisivo yang por um traço contínuo, e o unificante yin por um traço dividido ao meio. Na Nova Era, as edições do I Ching virão devidamente retificadas.

Enquanto essas edições não aparecem, o sr. Capra já vai tratando, por conta, de introduzir no pensamento chinês umas modificações mais sérias. Ele diz, por exemplo, que na civilização chinesa o homem não procura dominar a natureza, mas integrar-se nela. Novamente, a sabedoria chinesa do sr. Capra pegou a China desprevenida: um chinês nem mesmo entenderia essa frase, pela razão de que na sua língua não há uma palavra que signifique “natureza” no sentido ocidental, isto é, ao mesmo tempo o mundo visível e a ordem invisível que o governa ( ambiguidade que as línguas modernas herdaram do grego physis ). O chinês é nisto, com o perdão da palavra, mais “analítico”: tem um termo para designar o mundo visível ( khien ), e um outro ( khouen ) para a ordem invisível. Para compensar, o mundo visível ou khien abrange, “sinteticamente”, tanto a natureza terrestre quanto a sociedade humana. O sr. Capra não diz a qual das duas “naturezas” o homem deveria integrar-se, mas é claro que ninguém poderia integrar-se em ambas simultaneamente e de um mesmo modo. Os antigos chineses já haviam advertido isto, e resolveram a contradição propondo uma dualidade de atitudes para fazer face a esse duplo aspecto da natureza: o sábio, diz o I Ching, deve buscar ativamente integrar-se na ordem invisível ou khouen ( chamada por isto “perfeição ativa” ) e contornar suavemente as exigências da natureza terrestre ( khien ou “perfeição passiva” ). Dito de outro modo: integrar-se na ordem celeste, integrando em si e superando dialeticamente a ordem terrestre ( e portanto absorvendo-a, por sua vez, na ordem celeste ). O “celeste” e o “terrestre”, nesse sentido, identificam-se respectivamente ao dharma e ao kharma da tradição hindu. O homem não se “integra” no kharma, porém “absorve-o” na medida em que se integra no dharma: livra-se do peso da terra na medida em que atende ao apelo celeste. Exatamente no mesmo sentido diz o cristianismo que o homem vence a necessidade natural na medida em que segue as vias da Providência. Não é bem o que diz o sr. Capra.

O ideograma Wang ( “o Imperador” ) esclarece isso melhor. Ele constitui, por si, um compêndio de cosmologia chinesa. Compõe-se de três traços horizontais — o Céu em cima, a Terra em baixo, o Homem no meio, formando a tríade Tien-Ti-Jen, “Céu-Terra-Homem” — cortados por um traço vertical, o Tao, que se traduz um tanto convencionalmente por Lei ou Harmonia. A Harmonia consiste em que cada coisa fique no lugar que lhe cabe, de modo que, por trás de todas as mudanças por que passa o mundo, a ordem suprema não seja violada ( embora neste mundo de aparências ela o seja necessariamente, pois, como dizia o Evangelho, “é necessário que haja escândalo”; mas no fim todas as desordens parciais são reintegradas na ordem total ).

Na Tríade chinesa, o homem é chamado “filho do Céu e da Terra”. Sendo o Céu o pai, já se vê, pelo hexagrama 37, quem é que manda. O homem governa portanto o mundo visível, mas não o faz por arbítrio próprio, e sim em nome de uma ordem transcendente. Tien não significa o “céu” no sentido material, mas a “perfeição celeste” ou mais propriamente a “vontade do Céu”; em inglês, que o sr. Capra compreende melhor, não o sky, mas o heaven, morada do Espírito Santo. O sábio ou imperador apreende no invisível a vontade do Céu e a põe em execução na Terra. Na sala central do seu palácio, ele cumpre diariamente ritos de um complexo simbolismo geométrico e numerológico ( similar ao do pitagorismo ), mediante os quais os arquétipos celestes “descem” ( exatamente como na missa “desce” o Espírito Santo ) para trazer à Terra a ordem e a harmonia. Se o imperador pára de fazer os ritos, a Terra — sociedade e natureza ao mesmo tempo — entra em convulsão, espalham-se por toda parte a ignorância, o medo, a violência, a fome, a peste.

Não era só a interrupção dos ritos que podia trazer a catástrofe. “O imperador — escreve Max Weber em A Religião da China — tinha de se conduzir segundo os imperativos éticos das escrituras clássicas. O monarca chinês permanecia basicamente um pontífice. Ele tinha de provar que era mesmo ‘filho do Céu’, o regente aprovado pelos Céus, para que o povo, sob o seu governo, vivesse bem. Se os rios arrebentavam os diques ou a chuva não caía apesar de todos os ritos, isto era prova — acreditava-se expressamente — de que o imperador não tinha as qualidades carismáticas requeridas pelo Céu.”

O homem governa a Terra, mas em nome do Céu. Governa como pontifex, “construtor de pontes”, que liga a Terra ao Céu através do Reto Caminho, o Tao. Caso se afaste do Reto Caminho, ele perde de vista a Vontade do Céu e já não pode governar senão em nome próprio, como tirano e usurpador. Aí, num choque de retorno, ele perde seu poder e cai sob o domínio das potências terrestres que antes comandava. Como a Terra designa ao mesmo tempo a natureza física e a sociedade humana, o choque pode significar tanto uma revolução civil ou golpe militar, quanto uma tempestade ou terremoto. O monarca que cai representa, por analogia, qualquer homem que, rompendo com a ordem celeste, perca de vista o seu destino ideal e caia presa das paixões abissais. É a situação descrita no hexagrama 36, O Obscurecimento da Luz: “Primeiro ele subiu ao Céu, depois mergulhou nas profundezas da Terra.” O comentário tradicional, resumido por Richard Wilhelm, é o seguinte: “O poder da treva subiu a um posto tão alto que pode trazer dano a quantos estejam do lado do bem e da luz. Mas no fim o poder das trevas perece por sua própria obscuridade.”

Já se vê que o conselho do sr. Capra, afetado pela ambiguidade da palavra “natureza”, pode ter dois significados opostos: com “integrar-se”, pretende ele que obedeçamos à Vontade do Céu ou que mergulhemos nas profundezas da Terra? As falas dos profetas, quando obscuras, merecem interpretação. Interpretemos.

Na versão do sr. Capra, o Céu não é mencionado. A tríade fica reduzida a uma dualidade: de um lado o homem, de outro a natureza visível. O macho e a fêmea. O yang e o yin. A cada um só resta a alternativa de subjugar o outro ou “integrar-se” nele. O homem da civilização industrial optou pela primeira hipótese. O sr. Capra advoga a segunda.

É verdade o que diz o sr. Capra, que a civilização ocidental optou por dominar a natureza. Mas é verdade também que, desde o Renascimento ao menos, ela apagou ( exatamente como o sr. Capra ) toda referência a uma ordem transcendente ( Tien ) e deixou o homem sozinho, face a face com a natureza material. Desde então a história das idéias ocidentais tem sido marcada por uma oscilação pendular entre as ideologias da dominação e as ideologias da submissão: classicismo e romantismo, revolução e reação, historicismo e naturalismo, cientificismo e misticismo, ativismo prometéico e evasionismo quietista, marxismo e existencialismo e, last not least, revolução cultural socialista versus ideologia da “Nova Era”.

É neste último par de opostos que reside a chave para a compreensão do nosso profeta. O sr. Capra acerta na mosca ( nenhum profeta pode realizar o prodígio de errar sempre ) ao dizer que sua visão da história cultural é uma alternativa ao marxismo. Para Marx e seus epígonos, a natureza nada mais é que o cenário da história humana. Está aí não como um ser, uma substância ontológica que o homem deva contemplar e respeitar em sua constituição objetiva, mas como matéria-prima a ser apropriada e transformada livremente segundo o arbítrio humano. A natureza, em Marx, é ancilla industriae. O marxismo prossegue a tradição de prometeanismo revolucionário do Renascimento, potencializando-a mediante a submissão completa e explícita da natureza à história. A isto é que se opõe a ideologia da Nova Era.

Mas ela não se opõe somente ao marxismo em geral, e sim a uma forma específica de marxismo, que também, como ela, quis operar uma “mutação”, um giro de cento e oitenta graus na orientação do pensamento humano. O fundador desta corrente marxista foi o ideólogo italiano Antonio Gramsci ( 1891-1937 ). O gramscismo propõe uma revolução cultural que subverta todos os critérios admitidos do conhecimento, instaurando em seu lugar um “historicismo absoluto”, no qual a função da inteligência e da cultura já não seja captar a verdade objetiva, mas apenas “expressar” a crença coletiva, colocada assim fora e acima da distinção entre verdadeiro e falso. É a total submissão do “objeto” ( natureza ) ao “sujeito” ( humanidade histórica ). Neste novo paradigma, a ênfase da atividade científica já não cai no conhecimento objetivo da natureza ( descrição exata da sua aparência visível e investigação dos princípios invisíveis que a governam ), mas sim na sua transformação pela técnica e pela indústria, a isto correspondendo, na esfera das idéias, uma espécie de “revolução permanente” de todas as categorias de pensamento a suceder-se numa aceleração vertiginosa do devir histórico.

Contra isto levantou-se a ideologia da Nova Era. Ao prometeanismo revolucionário, ela opõe a “integração na natureza”; à aceleração da história, o equilíbrio “ecológico” da Nova Ordem Mundial; e, ao historicismo absoluto, o “fim da História”. Capra é inconcebível sem Fukuyama. Capra é a casca da qual Fukuyama é o miolo. Todo o vistoso “esoterismo” da Nova Era, com suas iniciações secretas, seus gurus, seus magos e seus ritos, não constitui senão o exoterismo, o aparato religioso externo e social, cujo interior, cujo “sentido esotérico” é na verdade uma ciência bem moderna, racional e profana: o planejamento estratégico. Fukuyama está para Capra exatamente como o esoterismo está para o exoterismo, como a Igreja de João está para a Igreja de Pedro. Mas ambas, cada qual no seu plano e pelos meios que lhe são próprios, combatem um mesmo adversário.

O gramscismo fez muito sucesso nos anos 60, inspirando a febre passageira do eurocomunismo e revigorando algumas esperanças comunistas. No Brasil, conquistou praticamente a esquerda inteira, e o PT é um partido essencialmente gramsciano, admita-o ou não explicitamente. Mas o intento de renovação foi fraco e tardio: o comunismo acabou sendo derrotado pela ascensão mundial da ideologia da Nova Era. Afinal, a mistura de física quântica e simbolismos orientais, experiências psíquicas e sexo livre, promessas de paz e miragens de auto-realização, que essa ideologia oferece, é infinitamente mais sedutora do que qualquer “historicismo absoluto”. O Brasil, sempre atrasado, é um dos poucos lugares do mundo onde o combate ainda prossegue, com um feroz núcleo de remanescentes gramscianos oferecendo uma quixotesca resistência local aos exércitos triunfantes da Nova Era.

Mas, se o prometeanismo revolucionário representou o máximo da hybris, da avidez dominadora do homem sobre a natureza, a ideologia da Nova Era não é outra coisa senão o choque de retorno anunciado pelo I Ching.

A Nova Era venceu a revolução gramsciana. Mas foi uma teratomaquia: um combate de monstros. Diriam os chineses que foi um combate suicida: que, sem a obediência comum a Tien, a luta entre Ti Jen só pode terminar pelo “Obscurecimento da Luz”. A vitória da Nova Era prenuncia, portanto, o próximo passo do ciclo das mutações: a humanidade vai cair da autoglorificação prometéica na passividade inerme; vai integrar-se, “ecologicamente”, no equilíbrio da Nova Ordem Mundial, onde o conformismo coletivo será assegurado mediante a justa repartição dos meios de satisfazer as paixões mais baixas e mediante um arremedo de religiosidade externa que dará a essas paixões uma aura lisonjeira de “profundidade” e “autoconhecimento”.

Pode-se interpretar isso psicanaliticamente. Gérard Mendel, no seu livro La Révolte contre le Père, uma das mais importantes contribuições das últimas décadas à psicanálise freudiana, diz que, ao longo da história, o impulso do homem para superar o pai tem sido, como pretendia Freud, um dos mais potentes motores do progresso. Mas este impulso, prossegue ele, pode tomar duas direções: ou o homem supera e vence o pai carnalintegrando-se na ordem racional representada pelo pai ideal, ou manda logo às urtigas a ordem ideal para, livre de toda trava moral, matar o pai carnal e tomar posse da mãe. Esta última alternativa é a revolta prometéica, a que se segue, num choque de retorno, a queda no irracional, a regressão uterina, a “integração” do homem nas trevas. Daí, segundo Mendel, a importância antropológica, e também psicoterapêutica, das palavras da mais célebre oração cristã: a “revolta contra o pai” só é saudável e frutífera quando empreendida “em nome do Pai”. Trocando em miúdos chineses: o pai carnal é, para o homem adulto ( Jen ), nada mais que um aspecto de Ti, a Terra. É preciso submetê-lo à ordem celeste, Tien ou pai ideal, para aí então poder assumir, sem usurpação nem violência, o governo justo e harmônico da Terra. Sempre achei que o dr. Freud tinha algo de chinês.

Nos termos de Mendel, a revolução gramsciana é a revolta destrutiva contra o pai, e a ideologia da Nova Era, com seus apelos à fusão das consciências individuais numa sopa de miragens holísticas, é a regressão uterina que se lhe segue. Todas as regressões uterinas anunciam-se pela exacerbação da fantasia, pelo chamamento hipnótico das esperanças insensatas, pela antevisão mediúnica de delícias sem fim. Todas terminam na escravidão abjeta, na passividade inerme ante a agressão das forças abissais, no obscurecimento da luz.

É inevitável que haja escândalo. A Nova Era venceu o prometeanismo gramsciano, e sai de baixo: lá vem o hexagrama 36. There’s coming a shitstorm e Fritjof Capra é o seu profeta. Mas, no fim, que por certo não se anuncia breve, o poder das trevas sucumbirá por força da sua própria obscuridade.

Findo o período das trevas, assegura o Apocalipse, a loucura dos novos profetas que arrastaram a humanidade ao erro será exibida à plena luz do dia, e todos a verão.

Como a Nova Era ainda mal começou, não está na hora de fazer o show completo. Por enquanto, tudo o que se pode fazer é dar umas amostras preliminares, que atestem, para as gerações vindouras, a realidade de um passado que lhes parecerá inverossímil. Como disse o sábio Richard Hooker ante o avanço do besteirol puritano no séc. XVI, quando tudo isto tiver passado “a posteridade poderá saber que não deixamos, pelo silêncio negligente, as coisas se passarem como num sonho”.

De amostras está cheio o livro do sr. Capra. Porém manda a justiça que as selecionemos segundo a gradação de importância que lhes dá o próprio autor. Devemos portanto agora examinar o terceiro “ponto de mutação”: a revolução do paradigma científico.

Neste terreno o sr. Capra não parece estar em desvantagem como no mundo chinês, que só conheceu por fontes de terceira mão. Doutor em física pela Universidade de Viena, ele não pode ignorar a história da ciência ocidental como ignora a civilização chinesa. Mas quem disse que não pode? Aos profetas tudo é possível.

Segundo o sr. Capra, “o paradigma ora em transformaçãodominou a nossa cultura por muitas centenas de anos“; ele “compreende certo número de idéias” que “incluem a crença de que o método científico é a única abordagem válida do conhecimento; a concepção do universo como um sistema mecânico composto de unidades materiais elementares; a concepção da vida em sociedade como uma luta competitiva pela existência”. Essas concepções têm os nomes respectivos de: cientificismo, mecanicismo e social-darwinismo ou darwinismo social. Repito: segundo o sr. Capra, elas dominam a nossa cultura há muitas centenas de anos. Isto sugere duas perguntas. Primeira: Que é “dominar uma cultura?” Segunda: Quanto é “muitas centenas”?

Dizemos que uma certa idéia domina uma cultura quando: primeiro, ela é acreditada pelos intelectuais mais importantes de todos os setores; segundo, as idéias concorrentes ou já não são férteis, quer dizer, já não se expressam em obras poderosas e significativas, ou então desapareceram completamente de cena. Assim, por exemplo, o cristianismo dominou a Idade Média porque, de um lado, todos os filósofos e os homens cultos em geral eram cristãos e, de outro lado, as correntes de pensamento não-cristãs, ainda que persistindo vivas pelo menos no subconsciente coletivo, não produziram nesse período nenhuma obra digna de atenção. Dizemos que o marxismo dominou a cultura soviética até a década de 60 porque nesse período nenhum intelectual eminente que residisse na URSS produziu nenhuma idéia que saísse dos quadros conceptuais do marxismo e porque as subcorrentes não-marxistas ( exceto no exílio e em línguas ocidentais ) nada criaram de significativo.

Nesse sentido estrito, nenhuma das três idéias que compõem o “paradigma dominante” jamais foi dominante em parte alguma do Ocidente. Desde que surgiram, as três foram incessantemente contestadas, combatidas, refutadas, rejeitadas no todo ou em parte por intelectuais importantes. De outro lado, correntes abertamente hostis a essas idéias continuaram férteis o bastante para produzir algumas das obras mais significativas de seus respectivos campos.

Vejamos o mecanicismo. Como pode ser “dominante” uma corrente que, desde seu nascimento, é rejeitada por gigantes como Leibniz, Schelling, Vico, Schopenhauer, Driesch, Fechner, Boutroux, Nietzsche, Weber, Kierkegaard e muitos outros, até ser derrubada no século XX pela teoria de Planck?

A rigor, o mecanicismo só foi dominante, e mesmo assim com reservas, numa certa parte do mundo, que para o sr. Capra é “o” mundo: os círculos universitários anglo-saxônicos. Que esse mundinho tradicionalmente presunçoso e seguro de si se abra hoje para novas idéias, que se disponha até a ouvir os orientais sem a tradicional incompreensão colonialista, é sem dúvida uma novidade auspiciosa. Mas uma novidade local. Não há meio mais seguro de tornar provinciano um povo do que persuadi-lo de que ele é o centro do mundo. Desde esse momento ele declara inexistente ou irrelevante tudo o que saia do seu campo de visão, e quando finalmente descobre algo que todo o resto do mundo já sabia dá a esta descoberta uns ares de revolução mundial.

Quanto ao cientificismo, tanto se escreveu contra ele, que é perfeitamente errado considerá-lo dominante mesmo num sentido atenuado do termo. Para isto seria preciso excluir do primeiro plano da cultura o marxismo, a psicanálise, a fenomenologia, o neotomismo e o existencialismo, pelo menos. Aqui, novamente, o sr. Capra toma como mundialmente dominante a opinião de um grupo restrito.

O darwinismo social, por sua vez, só chegou a ser dominante, como crença pública, num único país do mundo: nos Estados Unidos. Nunca entrou, por exemplo, nos países comunistas e no mundo islâmico, que, somados, completam quase dois terços da humanidade. Nos países católicos, foi recebido desde logo como perversa anomalia, suscitando reações de escândalo de que dão testemunho as encíclicas sociais dos papas desde pelo menos Leão XIII.

Mas, além de afirmar que essas três crenças “dominam o mundo”, o sr. Capra ainda assegura que o fazem “há muitas centenas de anos”. Contemos a história.

A mais velha das três é o mecanicismo. Prenunciado por Descartes, foi formulado plenamente por Isaac Newton ( Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, 1687 ), mas só se tornou conhecido da intelectualidade européia em geral a partir de 1738, quando Voltaire divulgou em linguagem compreensível aos leigos os Elementos da Filosofia de Newton.

Não foi só fazendo divulgação científica que Voltaire promoveu a vitória de Newton. Ele tanto difamou com ironias grosseiras o principal opositor de Newton, G.-W. von Leibniz, que os contemporâneos cessaram de prestar atenção ao que este dizia. Leibniz caiu em quase descrédito até o século XX, quando a redescoberta de suas idéias ocasionou avanços prodigiosos nas matemáticas, na lógica e nas ciências da natureza. A nova física de Planck e Heisenberg veio a dar razão a Leibniz contra Newton, substituindo o mecanicismo pelo probabilismo. Esta substituição poderia ter ocorrido dois séculos antes, se Voltaire, imperador da opinião pública no século XVIII, não tivesse tecido em torno de Leibniz uma teia de preconceitos duradouros. Por ironia, Voltaire entrou para a História como o inimigo de todo atraso e de todo preconceito.

Mas, de qualquer modo, a opinião de Voltaire não se propagou com a velocidade do raio. Demorou duas ou três décadas, pelo menos, para tornar-se crença dominante na Europa inteira. Por volta de l780, o mecanicismo gozava de um prestígio invejável, e pode ser dito, desde então, dominante, se dominante não quer dizer unanimemente aceito, ou aceito sem reservas. Não se pode esquecer a oposição que lhe moveram o vitalismo de Goethe e Driesch, o contingencialismo de Boutroux e muitas outras correntes, até o golpe de misericórdia desferido por Planck e Heisenberg.

No momento em que o sr. Capra redigia O Ponto de Mutação, o mecanicismo estava completando portanto dois séculos de glória incessantemente contestada e de periclitante reinado sobre as facções majoritárias do mundo acadêmico. Isto é bem diferente de um domínio de muitos séculos sobre todo o mundo.

Quanto ao darwinismo social, é um filhote do darwinismo biológico e não poderia ter nascido antes do pai. O princípio da “subsistência do mais apto” surgiu como uma teoria biológica e só depois, aos poucos, foi se transformando num argumento ideológico para a legitimação retroativa da concorrência capitalista.

A Origem das Espécies é de 1859. Herbert Spencer, nos seus Primeiros Princípios, publicados em l862, amplia o alcance das idéias evolucionistas, fazendo delas um princípio sociológico. Paralelamente, ocultistas como Allan Kardec e Madame Blavatski pegam no ar o termo “evolução” e lhe dão um sentido místico, ou misticóide: já não são somente os anfíbios que evoluem em répteis, e estes em mamíferos; são as almas desencarnadas que, no outro mundo, evoluem em “seres de luz”, subindo na escala cósmica enquanto os macacos descem das árvores. Revestida de mil e um sentidos, a palavra “evolução” se dissemina, e surgem os debates públicos, que atraem a atenção dos intelectuais para o potencial político-ideológico do evolucionismo. Os debates alcançam um auge de sucesso com a conferência de Thomas Henry Huxley, “Evolução e ética”, em 1892. Aí está aberto o caminho para a legitimação do capitalismo liberal pela “sobrevivência do mais apto”. O resto vem com os livros de Gustav Ratzenhofer ( Natureza e Finalidade da Política, 1893 ) e William G. Sumner ( Folkways, 1906 ), que fundamentam explicitamente a noção de “evolução social”, dando aos ideólogos capitalistas o precioso slogan de que necessitavam. O darwinismo social tem, portanto, pouco mais ou pouco menos do que um século. Tinha menos no momento em que o sr. Capra redigia o seu livro.

Finalmente, o cientificismo. A rejeição formal e completa, em nome da ciência, de qualquer explicação filosófica ou teológica da realidade, foi proposta, pela primeira vez, por Augusto Comte ( Discurso sobre o Espírito Positivo, l844 ). Mas Comte ainda reservava para a filosofia a tarefa de síntese e ordenação do conhecimento científico, e Comte só foi aceito sem contestação num único lugar deste planeta: no Brasil! ( Em 1914, o positivista Alain atribuía a guerra mundial ao fato de nenhum outro país do globo haver seguido o exemplo do Brasil, que adotara na bandeira republicana o positivismo como doutrina oficial do Estado: Ordem e Progresso é, com efeito, o resumo da filosofia comtiana. ) Uma declaração formal e taxativa de cientificismo, com a completa demissão de todas as demais formas de conhecimento como vazias ou insignificantes, só veio mesmo em 1934, com Rudolf Carnap, em Sintaxe Lógica da Linguagem. Mas Carnap não era nenhum Voltaire, para contar com a imediata aprovação de um vasto público. A maioria dos filósofos do século XX rejeitou categoricamente o cientificismo, que só exerceu domínio sobre grupos determinados, principalmente no mundo anglo-saxão. Contemporaneamente à declaração de Carnap, o matemático e filósofo Edmund Husserl, fundador da fenomenologia — escola que iria gerar Heidegger, Scheler, Hartmann, Sartre e Merleau-Ponty, entre outros —, fazia na Universidade de Praga as célebres conferências depois reunidas no livro A Crise das Ciências Européias, em que negava o cientificismo pela base e desde dentro: as ciências físicas, dizia ele, haviam perdido o seu essencial fundamento científico e já não serviam como modelo de conhecimento da realidade. Husserl era e é pelo menos tão influente quanto Carnap, embora não tanto no mundo anglo-saxônico que é o limite do horizonte mental do sr. Capra.

Em suma, o cientificismo, que “domina a nossa cultura desde há séculos”, está completando sessenta primaveras neste ano de 1994. Mas, para cúmulo, sua primeira manifestação ostensiva já foi posterior, de três décadas, à publicação dos primeiros trabalhos de Max Planck, cujo indeterminismo viria a ser uma das bases do “novo paradigma” cujo advento o sr. Capra veio agora nos anunciar. O novo paradigma é um tanto anterior ao velho.

O sr. Capra, como se vê, pouco entende dos assuntos em que exerce, para um público multitudinário, uma autoridade profética. Ele prima pela carência de informação elementar sobre a cosmologia chinesa, na qual diz basear sua visão da história cultural, bem como sobre a história cultural mesma, que ele procura, mediante generalizações grosseiras, e escandalosas alterações da cronologia, encaixar à força num modelo preconcebido.

Não questiono, aqui, a validade da proposta holística em geral. Reservo-me o direito de fazê-lo num outro trabalho. Apenas creio que ela deve ter defensores um pouco mais qualificados do que o sr. Capra.

Meu propósito foi dar um testemunho sobre um fato de relevância mundial, que acontece bem diante das nossas barbas, e de cuja realidade as gerações vindouras terão o direito de duvidar. Pois, para a razão e o bom-senso, não é verossímilque milhares de intelectuais de prestígio, em seu juízo perfeito, possam aceitar e aplaudir como um marco da história do pensamento uma obra como O Ponto de Mutação, que não atende sequer aos requisitos mínimos de informação fidedigna, de autenticidade das fontes e de rigor conceptual que se exigem de uma tese de mestrado. Dentre tantos outros defeitos que um livro pode ter, este padece do único que não se pode tolerar em hipótese alguma: a ignoratio elenchi, a ignorância completa do assunto. O sr. Capra define o seu livro, pretensiosamente, comoum novo modelo de história cultural baseado nas concepções chinesas do homem e do universo. Mas ele não estudou o suficiente nem a história cultural nem as concepções chinesas para que sua opinião a respeito possa ter qualquer importância objetiva, fora do seu círculo de convivência pessoal. O conteúdo de sua propalada sabedoria do assunto é pura lana caprina.

O sucesso deste livro só pode ser explicado por um único fator, inteiramente alheio ao seu valor intrínseco: sua oportunidade. Ele diz o que as pessoas desejam ouvir, no momento em que o desejam. Ele oferece uma perspectiva sedutora a um público que pede para ser seduzido.

Que esse público não inclua somente populares incultos, mas intelectuais de projeção, e que estes se prontifiquem a aceitar as promessas do autor sem pedir-lhe sequer as credenciais científicas que se exigem de um estudante de faculdade, é realmente um acontecimento inverossímil.

Mas, dizia Aristóteles, não é mesmo verossímil que tudo sempre se passe de maneira verossímil. O inverossímil aconteceu. Ele atesta que, após séculos de fúria iconoclástica voltada contra todas as crenças do passado e os valores de outras civilizações, a opinião letrada do Ocidente enfim se cansou de ser arrogante; mas, em vez de um arrependimento sincero, está encenando diante de nós um arremedo de conversão, que deixa à mostra todas as marcas do fingimento histeriforme. Estonteada pela visão súbita de suas próprias culpas, ela abjurou de toda precaução crítica como quem repele um vício do passado; e entregou-se, inerme e crédula, ao culto do primeiro ídolo que lhe ofereceu uma promessa de alívio. Ela pensa ou finge pensar que esse ídolo é o seu salvador. Na verdade é a sua Nêmesis.

Mas não é só ela que está enganada. O profeta do engano também se engana: ele imagina trazer ao mundo a sabedoria, quando traz o obscurecimento e a confusão. Imagina trazer uma nova profecia, quando traz o cumprimento de uma velha maldição.

Mas não posso encerrar estas considerações sobre o profeta da Nova Era sem fazer, também eu, uma profecia: nos séculos vindouros, quando puderem encarar o nosso tempo com alguma objetividade, o fenômeno da Nova Era será considerado um escândalo que depõe contra a inteligência humana.

É forçoso que venha o escândalo. Nada se pode fazer para evitá-lo. Nem mesmo vou sugerir, como Jesus, que se amarre ao seu portador uma pesada pedra, para jogá-lo ao fundo do mar. Pois, como diria o hexagrama 36, ele já está no fundo. Tudo o que posso fazer é deixar à posteridade, se vier a ter notícia destas páginas, um testemunho pessoal destes tempos obscuros: Nem todos, nem todos acreditaram no falso profeta9.

 

Adendo

Há no livro do sr. Capra uma infinidade de erros e contra-sensos, além dos mencionados. Apontá-los e corrigi-los todos requereria um volumoso comentário: uma lei constitutiva da mente humana concede ao erro o privilégio de poder ser mais breve do que a sua retificação.

Mas vale a pena dar mais algumas amostras, para que o leitor veja quanto um erro nas premissas pode ser fértil em consequências:

  1. O sr. Capra combate o uso da energia nuclear, mesmo para fins pacíficos, mas, ao mesmo tempo, faz da física moderna um dos fundamentos do “novo paradigma” que propõe. Ele separa a física enquanto modalidade de conhecimento teórico e a natureza das suas aplicações práticas, como se uma não decorresse da outra necessariamente.

O sr. Capra é, nisto, perfeitamente inconsequente com o método holístico que advoga. Para o holismo, toda separação estanque entre uma idéia e suas manifestações práticas é nada mais que um abstratismo. Holisticamente falando, o efeito benéfico ou destrutivo dos engenhos nucleares tem de estar arraigado no próprio modus cognoscendi que os produziu. Se o sr. Capra enxerga ligações até mesmo entre o mecanicismo e a estrutura da família patriarcal, como pode ser cego para as relações, muito mais próximas, entre o conteúdo teorético de uma ciência e suas aplicações práticas?

  1. Em nossa sociedade, afirma o sr. Capra, o trabalho entrópico ( trabalho repetitivo que não deixa efeitos duradouros, como por exemplo cozinhar um jantar que será consumido imediatamente ) é desvalorizado, e por isto é atribuído às mulheres e aos grupos minoritários. Esta desvalorização, diz ele, é típica da sociedade industrial.

Nesse caso, deveríamos considerar sociedades industriais as tribos do Alto Xingu, as cidades-Estado da antiga Grécia, a sociedade européia da Idade Média. Não existiu jamais uma sociedade em que os serviços entrópicos fossem mais valorizados que os outros.

Mas, segundo o sr. Capra, existiu. Ele dá como exemplos os mosteiros de monges budistas e cristãos, onde cozinhar é uma honra e limpar as privadas um mérito invejável. Será preciso explicar ao sr. Capra que uma ordem monástica não constitui uma “sociedade”, mas uma comunidade minoritária que pressupõe em torno a existência de uma sociedade a cujos valores possa se opor? Se, dentro de um mosteiro, o trabalho entrópico tem valor, é justamente porque não o tem na sociedade maior em torno. Os trabalhos humildes adquirem ali dentro um valor espiritual e disciplinar justamente na medida em que no “mundo” têm pouco prestígio social ou valor econômico. A desvalorização social do trabalho entrópico não é característica da sociedade industrial, mas da sociedade humana em geral; inversamente, a sua valorização espiritual é um traço distintivo das minorias espiritualizadas envolvidas em alguma forma de rejeição religiosa do “mundo”.

  1. “Tradições como o vedanta, a ioga, o budismo e o taoismo assemelham-se muito mais a psicoterapias do que a filosofias ou religiões”, diz o sr. Capra. Bem, se há um traço característico do Ocidente moderno, que o distingue radicalmente das tradições orientais, é justamente o desenvolvimento, nele, de uma psicologia como ciência independente de qualquer referência mística ou religiosa; e, em decorrência, o esforço para dar uma explicação “psicológica” de todos os fenômenos espirituais. Ao englobar as tradições espirituais do Oriente no conceito de “psicoterapia”, o sr. Capra mostra a típica incapacidade do cientificista moderno para apreender tudo quanto há nelas de puramente metafísicoe não-psicológico.

Dizer, ademais, que essas tradições “se baseiam no conhecimento empírico e, assim, apresentam mais afinidades com a ciência moderna” é pretender enquadrar à força as idéias orientais numa moldura ocidental e moderna, para torná-las aceitáveis ao provincianismo acadêmico. Acontece que, nessa operação, tudo que há nelas de essencialmente oriental se perde por completo. O vedanta, por exemplo, afirma categoricamente que a experiência não pode trazer conhecimento espiritual de espécie alguma, e esta afirmação é mesmo um dos pontos basilares da doutrina, que o sr. Capra parece desconhecer completamente: toda experiência é ação, e a ação, não sendo o contrário da ignorância, não pode destruí-la ( cf. Brihadaranyaka Upanishad, livro 10 ).

Por esse exemplo, vê-se que o sr. Capra está muito mais preso a esquemas mentais de acadêmico ocidental médio do que desejaria deixar transparecer. Alguém mais próximo da perspectiva oriental jamais procuraria explicar as doutrinas sapienciais da Índia ou da China à luz da moderna psicologia ocidental, mas, ao contrário, emitiria sobre esta, em nome delas, um julgamento bastante severo ( v., por exemplo, Wolfgang Smith, Cosmos and Transcendence, New York, l970, ou Titus Burckhardt, Scienza Moderna e Sagezza Tradizionale, Torino, l968 ).

  1. Após realçar o sentido holístico das concepções fisiológicas de Hipócrates, o sr. Capra insinua que esse sentido desapareceu completamente da medicina ocidental e agora temos de ir buscá-lo na tradição chinesa: “A noção chinesa do corpo como um sistema indivisível de componentes inter-relacionados está muito mais próxima da moderna abordagem sistêmica do que do modelo cartesiano clássico.” Se o sr. Capra não seguisse o hábito ocidental moderno de saltar direto do pensamento grego para o Renascimento, teria reparado que a mesma concepção holística domina todo o pensamento médico e biológico do Ocidente medieval, com destaque para Sto. Alberto Magno e Roger Bacon. Na verdade, as concepções chinesas são muito mais parecidas com as da Idade Média que com a “moderna abordagem sistêmica”.
  2. Ao explicar a psicoterapia de Arthur Janov, o sr. Capra diz que, segundo este eminente psiquiatra, as neuroses são tipos simbólicos de comportamento que “representam as defesas da pessoa contra a excessiva dor associada a traumas de infância”. Quem quer que tenha lido Janov sabe que, na teoria deste, a etiologia das neuroses não é de ordem traumática, mas reside na frustração constante e habitual de necessidades básicas, frustração que às vezes não é sequer percebida no nível consciente. Um trauma, na psicopatologia de Janov, nada mais é que um fator superveniente. A minimização da importância etiológica dos traumas é justamente o que singulariza o sistema de Janov. Embora conhecendo o assunto de orelhada, o sr. Capra não se inibe de opinar a respeito com ar professoral: “O sistema conceitual de Janov não é suficientemente amplo para explicar experiências transpessoais…” O que certamente não é amplo é o conhecimento que o sr. Capra tem do sistema de Janov.

 

Sugestões de Leitura

Além das obras citadas no texto, o leitor poderá consultar com proveito as seguintes:

  1. Quem aprecie o holismo e deseje ter uma informação séria a respeito, sem aberrações caprinas e com mais ensinamento valioso, leia o livro de Joël de Rosnay, Le Macroscope. Vers une Vision Globale ( Paris, Le Seuil, l975 ). O prof. de Rosnay ensinou no MIT e trabalha no Instituto Pasteur de Paris. É interessante ler também as obras de Edgar Morin, que foi aliás quem lançou a expressão “novo paradigma”. V. especialmenteLa Méthode, em dois tomos ( I, La Nature de la Nature, Paris, Le Seuil, l977; II, La Vie de la Vie, id., 1980 ).
  2. I Ching tem três traduções ocidentais famosas: a de James Legge ( versão brasileira de E. Peixoto de Souza e Maria Judith Martins, São Paulo, Hemus, l972 ), a de Richard Wilhelm ( versão inglesa de Cary F. Baynes, London, Routledge and Kegan Paul, l95l, várias reedições; versão brasileira de Lya Luft e Alayde Mutzembecher, São Paulo, Nova Acrópole ), e a de P.-L. F. Philastre: Le Yi:King. Livre des Changements de la Dynastie des Tsheou. Annales du Musée Guimet, t. huitième, 2 vols. ( Paris, Adrien Maisonneuve, l975 ). Um estudo sério do assunto requer o exame das três. A de Wilhelm é mais didática e fácil de consultar. Legge enfatiza muito as ligações estruturais entre as partes e abre para um estudo mais aprofundado. Das três a de Philastre é de longe a mais interessante, pois é a única que transcreve integralmente e pela ordem as glosas das dez “gerações” de comentaristas chineses.
  3. Sobre os símbolos da tradição chinesa, v. o livro clássico de René Guénon, La Grande Triade( Paris, Gallimard, 1957 ). Convém recorrer ainda, quanto aos ideogramas, à obra monumental do Pe. L. Wieger, Chinese Characters. Their Origin, Etimology, History, Classification and Signification. A Thorough Study from Chinese Documents, transl. by L. Davrout, s. j. ( New York, Dover, 1965; a primeira edição é de 1915 ).
  4. Sobre o pensamento chinês é ainda indispensável, a quem deseje aprofundar o assunto, estudar: quanto às concepções cosmológicas, Marcel Granet, La Pensée Chinoise ( Paris, Albin Michel, l968 ) e La Réligion des Chinois ( Paris, Payot, 1980 ). Quanto às instituições e ao governo, Granet, La Civilisation Chinoise ( Paris, La Renaissance du Livre, 1929 ). Sobre a moral, o direito e as classes sociais, Max Weber, The Religion of China, transl. by H. H. Gerth and C. Wright Mills ( New York, The Free Press, 195l ).
  5. Um “novo modelo de história cultural” baseado em concepções orientais é algo que já estava realizado pelo menos desde l945, em Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps, de René Guénon ( Paris, Gallimard ). Um monumento de sabedoria.
  6. Sobre a disputa Leibniz-Newton pode-se ler: José Ortega y Gasset, La Idea de Principio en Leibniz y la Evolución de la Teoría Deductiva ( em Obras Completas, t. 8, Madrid, Alianza, 1983 ); Paul Hazard, La Crise de la Conscience Européenne 1660-1715( Paris, Gallimard, 1961 ); Edwin A. Burtt, As Bases Metafísicas da Ciência Moderna, trad. José Viegas Filho e Orlando Araújo Henriques ( Brasília, UnB, 1983 ).

 

NOTAS

  1. Escrito em setembro de 1993.
  2. Livro I, Cap. III.
  3. Tendo enviado a Frei Betto uma cópia deste capítulo antes de sua publicação em livro, recebi dele uma resposta em duas linhas, que é um singular documento psicológico. Ela diz: “Apesar das suas reservas, o evento [ NB: recepção ao sr. Capra ] foi bom para quem lá esteve.” Deve ter sido mesmo um barato, imagino eu. Mas o ilustre frade não me compreendeu. Longe de mim depreciar o evento em si — a organização do programa, o serviço de som ou o tempero dos salgadinhos. O que eu disse que não presta é a filosofia do sr. Capra, subentendendo que celebrá-la num congresso de intelectuais é jogar dinheiro fora; e quanto melhor o evento, mais lamentável o desperdício. Caso, porém, o missivista tenha pretendido alegar a qualidade do evento como um argumento em favor do sr. Capra, isto seria o mesmo que dizer que o preço da vela prova a qualidade do defunto. Além disso, que opinião se poderia ter de um pensador que argumentasse em favor de uma filosofia mediante a alegação de que ela lhe dá a oportunidade de freqüentar lugares agradáveis? [ N. da 2ª ed. ]

Capítulo II

 

A Nova Era e a Revolução Cultural: Observações finais

A Nova Era e a Revolução Cultural

Fritjoj Capra & Antonio Gramsci

3a edição, revista e aumentada.

Observações finais

Expondo em conferências as idéias que depois viria a registrar neste livro, muitas vezes recebi dos ouvintes a exigência de uma “definição política”. Sentiam-se desconfortáveis ante um interlocutor sem filiação identificável, algo assim como um UFO ideológico, e desejavam saber com quem estavam falando.

Minha resposta, invariavelmente, tem sido a seguinte:

O pressuposto dessa exigência é que não se pode criticar uma ideologia senão em nome de uma outra ideologia, dentre as reconhecidas no catálogo do momento. Esse pressuposto, por sua vez, funda-se num preconceito meio historicista, meio sociologista, segundo o qual todo pensamento individual é apenas “expressão” de algum anseio coletivo, e deve a este sua validade. Em oposição a este preconceito e àquele pressuposto, estou profundamente convicto de que somente o pensamento do indivíduo como tal pode ter validade objetiva, pois não há verdade senão para a consciência reflexiva, que só existe no indivíduo. As correntes de pensamento coletivas apenas manifestam desejos, anseios, temores, e jamais se levantam ao nível de autoconsciência crítica no qual a distinção entre verdade e falsidade pode ter algum sentido. Somente a autoconsciência do indivíduo pode captar essa distinção, ascender à esfera dos juízos universalmente válidos e da veracidade objetiva. Logo, é ela quem é juiz do pensamento coletivo.

A monstruosa inversão que submete o juízo da consciência individual ao critério das ideologias coletivas provém de uma mutilação da mente moderna, incapaz de atinar com alguma “universalidade” que não seja meramente quantitativa, reduzida portanto à “generalidade” e, em última análise, à validação puramente estatística. Como, de outro lado, toda prova estatística pressupõe a validade universal das leis da aritmética elementar, cujo fundamento é a evidência apodíctica somente acessível à consciência individual, o primado do pensamento coletivo repousa numa autocontradição pela qual nega sua própria validade.

Para piorar ainda mais as coisas, o pensamento coletivista, não tendo acesso à esfera da validade objetiva, logo perde toda referência ao “objeto” como tal e se fecha num subjetivismo coletivo: da estatística dos “fatos” caímos para a estatística das “opiniões”, e a contagem dos votos se torna o supremo critério da veracidade. Este processo, que se inicia na esfera da política, termina por contaminar a ciência mesma, onde hoje em dia ouvimos apelos generalizados em favor da aceitação de critérios puramente retóricos de argumentação como fundamentos legítimos da credibilidade cientítica. O marketing, em suma, é elevado a ciência suprema, modelo e juiz de todas as outras ciências.

Ou aceitamos esse resultado, ou devemos negar pela raiz o primado do pensamento coletivo, restaurando a consciência individual no posto de dignidade que lhe cabe. E, neste caso, deveremos admitir que o indivíduo humano possa elevar-se acima das ideologias e julgá-las, contanto que não o faça em nome de um protesto pessoal e subjetivo, mas em nome da veracidade universal e apodíctica, da qual ele, com todas as suas fraquezas, com todos os seus condicionamentos limitantes, continua, afinal, o único representante sobre a Terra.

No século XX, a consciência individual sofreu, das pseudociências emergentes, os mais violentos ataques, que pretenderam negá-la, reduzi-la a um epifenômeno dos papéis sociais introjetados, a uma projeção do instinto de sobrevivência, a uma ficção gramatical, a mil e uma formas do falso e do ilusório. De outro lado, no campo das técnicas psicológicas, nunca se investiu tanto na busca de meios para subjugar a consciência individual, quebrar sua autonomia, forçá-la a repetir mecanicamente o discurso coletivo. Se o nosso é o século do marxismo, da psicanálise, do estruturalismo, é também o da hipnose, o das técnicas de influência subliminar, o da lavagem cerebral, o da “modificação de comportamento” e o da Programação Neurolinguística. Se, por um lado, tudo se faz para demonstrar teoricamente a inanidade da consciência individual, de outro lado não se poupam esforços para reprimi-la e subjugá-la. Ora, estas duas séries de fatos, quando confrontadas, sugerem uma pergunta: para que tanto empenho em derrotar na prática algo que, em teoria, não existe? Se o cavalo está morto, para que açoitá-lo com tanta fúria?

Este é alíás o tema de um livro que estou preparando, A Alienação da Consciência. É uma resenha dos ataques teóricos e práticos dirigidos pelas doutrinas pseudocientíficas, em aliança com os governos totalitários ou com o establishmenttecnocrático, contra a autonomia da consciência individual. Foi este estudo, precisamente, que me levou à rejeição completa e taxativa de todo pensamento ideológico. Não me perguntem, portanto, em nome de que ideologia combato esta ou aquela ideologia. Combato-a desde um plano que não é acessível ao pensamento ideológico, e que só existe para a autoconsciência individual, quando firmemente decidida a não abdicar de seu direito — e de seu dever — à verdade e à universalidade. Em consequência, também não me dirijo a ouvintes e leitores enquanto representantes desta ou daquela facção ou grupo, mas enquanto portadores de uma inteligência universalmente válida, capaz de sobrepor-se ao discurso de facções e grupos e julgá-lo objetivamente. Não converso com fantoches coletivos, mas com seres humanos, investidos da dignidade suprema da autoconsciência, que os torna imagens de Deus. Se, enquanto apegada à identidade biológica e sujeita portanto à ilusão passional, a consciência do indivíduo é pura Maya, por outro lado é somente o indivíduo, e não o aglomerado estatístico das coletividades, que pode ascender ao plano da universalidade onde é lícito dizer: Eu sou Brahman.

Rio, março de 1994.