Sérgio da Costa Franco
Procurador de Justiça aposentado e Historiado
29 de outubro de 2001
…”Lembramos especialmente todos os proprietários de residências praianas, residências que ficam desocupadas e sem utilidade desde março a dezembro. Se invadidos tais prédios pelos “sem teto”, o magistrado relutaria em conceder reintegração de posse aos respectivos possuidores”…
….”Diante desse extremismo que derroga e revoga o direito de propriedade, tremam todos quantos possuam residências muito espaçosas, excesso de dormitórios, de banheiros ou de garagens. Ai do cidadão que apenas cuidar de seus interesses e dos de sua família! Todos nós teremos que ser apóstolos da igualdade, distribuindo os frutos de nosso trabalho a todos quantos nos rondarem a porta empunhando bandeiras vermelhas e gritando pregões revolucionários”…
Ao numeroso elenco dos desprotegidos sociais — os “sem terra”, os “sem casa”, os “sem vaga hospitalar” e os sem emprego –, somam-se agora os “sem justiça”. É óbvia a referência a esse titular de posse mansa e pacífica (e de domínio) que, em batendo às portas do Judiciário para obter a restituição de sua gleba, usurpada por invasores, recebeu como despacho a exigência de comprovar que sua propriedade é produtiva. Pela primeira vez na história do Direito possessório, a posse obtida pela força prevalece sobre a mansa e pacífica, além do mais amparada em títulos de domínio.
A proteção da posse pelo Código Civil vai ao ponto de permitir o desforço físico incontinenti, para enfrentar e expulsar o esbulhador (art. 502). Entretanto, para evitar o desforço, de imprevisíveis conseqüências, a lei concede o remédio da reintegração liminar. Mas eis que surgem juízes que se permitem premiar o esbulhador e sujeitar o esbulhado às dilações probatórias e à morosidade da ação ordinária. Em nome de quê? Em nome da função social da propriedade e da produtividade rural, matéria que só interessa rigorosamente ao governo, como preliminar de suas ações de desapropriação. Descumprem-se regras explícitas da lei e princípios universais de Direito, fazendo-se ao possuidor exigências jamais previstas para a legitimação do seu direito de agir.
Cabe lembrar que a proteção da posse não diz respeito apenas ao proprietário. Possuidores podem ser o arrendatário, o usufrutuário, o cessionário de direitos, entre outros. Posse é fato. É o exercício de algum dos poderes inerentes ao domínio. E não se trata de nenhum privilégio concedido a latifundiários. É justamente a proteção possessória que vai em socorro do agricultor pobre, arrendatário ou parceiro, quando ameaçado de expulsão sumária pelo titular do domínio. A possessória tutela as situações de fato, protegendo os produtores, o trabalho, a morada habitual, contra todos quantos pretendam turbar as situações licitamente adquiridas. Por outro lado, é bem clara a lei de que não autorizam a aquisição da posse os atos violentos ou clandestinos?. E a posse velha prevalece sobre a nova, a titulada sobre a desprovida de título. Todos os capítulos que tratam da posse, no Código Civil de 1916, são de uma limpidez incontestável, não dando lugar à previsão de grandes mudanças legislativas. Mesmo sem conhecer o texto do novo código, já sancionado, é de se duvidar que, em matéria de disciplina da posse, tenham ocorrido alterações maiores.
A baixa produtividade de uma gleba pode ser fundamento para a desapropriação por utilidade social, mediante prévia e justa indenização. Não se considere, entretanto, a produtividade como requisito para a proteção judicial contra esbulhadores criminosos. E a negativa de reintegração, sob o argumento de que não foi comprovada a produtividade, vem até a caracterizar desapropriação indireta, sujeitando o Estado a indenizar o proprietário usurpado, com todos os acessórios da “restitutio in integrum”.
A tese acolhida pelo magistrado de Passo Fundo deixa sumamente inseguros não só os proprietários rurais, os homens do campo e da lavoura, cuja capacidade de produzir pode oscilar em função da falta de crédito, das epizootias e dos eventos da natureza. Lembramos especialmente todos os proprietários de residências praianas, residências que ficam desocupadas e sem utilidade desde março a dezembro. Se invadidos tais prédios pelos “sem teto”, o magistrado relutaria em conceder reintegração de posse aos respectivos possuidores. Ou só lhes concederia no início do verão. A solução parece aberrante e injusta, mas está exatamente em coerência com a linha de pensamento daquele julgador, que escreveu em seu despacho, segundo se lê em Zero Hora de 23 de outubro: “Para alguém exigir a tutela judicial da proteção a sua posse ou propriedade, precisa fazer prova adequada de que esteja usando ou gozando desse bem “secundum beneficium societatis”, ou seja, de acordo com os interesses da sociedade e não apenas seus próprios interesses ou de sua família”. Diante desse extremismo que derroga e revoga o direito de propriedade, tremam todos quantos possuam residências muito espaçosas, excesso de dormitórios, de banheiros ou de garagens. Ai do cidadão que apenas cuidar de seus interesses e dos de sua família! Todos nós teremos que ser apóstolos da igualdade, distribuindo os frutos de nosso trabalho a todos quantos nos rondarem a porta empunhando bandeiras vermelhas e gritando pregões revolucionários.
Sempre nutrimos respeito pelas decisões da Justiça, quando amparadas na lei e nos princípios gerais de Direito. Porém entendemos que são passíveis de discussão e de crítica, dentro e fora dos processos, as decisões que atropelam a lei e a ordem pública. Em nome de um construtivismo jurídico que desrespeita a independência dos poderes e que sobrepõe ao império da norma a vontade e as idéias do magistrado, tem surgido toda uma corrente de juízes ditos “alternativos”, que seguramente não concorrem para a consolidação do Estado de Direito. Quando a linguagem dos tribunais resvala para o discurso demagógico dos comícios e quando o julgador se arvora despoticamente em legislador, sem voto e sem mandato, o Estado de Direito está realmente em perigo.