Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 21 de Junho de 2001

Uma classe empresarial que, incapaz de criar a militância de massas adequada à defesa de seus interesses e projetos, se alia no último momento a um partido revolucionário na esperança de que este a proteja é, evidentemente, uma classe possuída pelo desejo de morrer. As racionalizações que seus mentores possam conceber para legitimar essa aposta suicida só comprovam o estado de completa alienação a que chegaram. Dessas racionalizações, a mais deplorável é aquela que os leva a imaginar que, se agora o suspeitíssimo aliado necessita da sua ajuda financeira para conquistar o Estado, continuará a necessitar dela após tê-lo conquistado; a imaginar que, se hoje podem negociar com ele como detentores do poder econômico, poderão manipulá-lo amanhã mediante o uso do mesmo instrumento. Mostram, nisso, uma total incompreensão da natureza do próprio poder econômico. Sobretudo, uma fatal ignorância de suas fraquezas e limitações congênitas.

A forma mais elementar e mais essencial do poder é o poder da violência, o poder de agredir, de matar, de intimidar fisicamente. Só esta, uma vez possuída em plenitude, age autonomamente e se impõe por seus próprios meios, não apenas dispensando o concurso de quaisquer outros, mas forçando-os a servi-la se necessário. Todas as demais formas de poder, o econômico sobretudo, nada são e nada podem sem a mediação do poder armado que os garante.

Que é, afinal, “possuir” uma riqueza? Não é deter fisicamente e pessoalmente o domínio sobre objetos materiais. É exercer o domínio legal sobre o uso de determinados bens e valores. “Legal”, aí, quer dizer: reconhecido e protegido por um poder armado, capaz de remover os obstáculos ao exercício do direito de possuir. O poder econômico é, pois, um poder indireto e de segundo grau, um poder que jamais é “fundamentum sui”, um poder que visceralmente depende de outro para se exercer e subsistir. É, de certo modo, um poder simbólico e evanescente, que sem a proteção do poder armado se dissipa, de repente, como um sonho.

Um caso bem triste ilustrará o que digo. Um dos mais prósperos empresários rurais de Cuba, nos anos 50, era amigo de infância de Fidel Castro e inimigo figadal de Fulgêncio Batista – um ditador que, convém jamais esquecer, chegara ao poder com o apoio do Partido Comunista. Desde os primeiros momentos da revolução, esse homem estendeu seu generoso apoio aos barbudos de Sierra Maestra. Chegou a montar em sua fazenda um hospital clandestino para socorrer os combatentes fidelistas feridos em batalha. Vitoriosa a revolução, retirada a máscara democrática do novo regime e assumida em público a identidade comunista de Fidel Castro, ainda assim o rico cidadão continuou a apoiar o velho companheiro. Sua confiança nele só foi um pouco abalada quando o comitê revolucionário começou a fuzilar indiscriminadamente os oficiais das Forças Armadas, muitos deles limpos de qualquer compromisso com o governo caído. Um dia, quando chegaram à fazenda notícias do fuzilamento iminente de certos coronéis que eram amigos comuns de Fidel e do nosso personagem, a esposa do fazendeiro achou que podia interceder junto ao governante em favor dos condenados, em nome dos velhos tempos. A resposta de Fidel foi mais ou menos a seguinte:

– Em nome da gratidão e da amizade, concederemos a vocês o direito de sair para Miami amanhã, num avião militar. Cada um poderá levar US$ 20 e a roupa do corpo.

O homem terminou seus dias como garçom em Miami. Seu filho, que entrou para o Exército norte-americano e chegou a oficial, contou esta história ao advogado José Carlos Graça Wagner, que a contou a mim. Posso ter errado em detalhes, mas, em essência, a reprodução do relato é fiel.

O poder econômico, por nada ser sem a proteção do poder armado, necessita da ordem jurídica, da paz e da tranqüilidade como do ar que respira. No Estado de Direito, a força de agressão física, monopólio do Estado, não pode se exercer sem uma série de mediações jurídicas, políticas, morais e consuetudinárias que, atenuando sua crueza, a tornam permeável ao diálogo, às negociações, aos acordos e às transigências. É só então que o poder econômico avulta em importância e, mediante o uso inteligente de seus meios de barganha, pode chegar a influenciar e até a determinar o rumo das coisas na sociedade.

Abalada a ordem por uma precipitação revolucionária, o poder econômico reduz-se ao poder de o rico desarmado pedir misericórdia ao sargentão armado, ao comissário-do-povo armado, ao SS armado ou a qualquer das outras versões em que a brutalidade militante possa ter-se encarnado no cenário macabro da recorrente alucinação messiânica em que se transformou a história dos tempos modernos.

O poder econômico, portanto, só tem força de barganha com o revolucionário enquanto este não chega ao poder. Depois, bem, o depois já foi narrado milhares de vezes por uma multidão de exilados que um dia foram ricos em Havana antes da chegada de Fidel, em Berlim antes da chegada de Hitler, em Petrogrado antes da chegada de Lenin ou em Pequim antes da chegada de Mao.

É difícil os ricos entrarem no reino dos céus. Mas mais difícil ainda é saírem vivos do paraíso socialista.

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