Olavo de Carvalho

O silêncio dos mortos como modelo dos vivos proibidos de falar.1

Em Olavo de Carvalho, O Futuro do Pensamento Brasileiro: Estudos sobre o nosso lugar no mundo, 2a. edição, Rio de Janeiro, Faculdade da Cidade Editora, 1997, pp. 82-111.

Devo começar por fazer recordar aos franceses aqui presentes uma citação do eminente médico brasileiro Vital Brasil, que, na ocasião de falar pela primeira vez a um público de língua francesa, disse: “Peço que me perdoeis pelos danos que eu venha a fazer à gramática, porque estou falando numa língua que não é a minha e que, como o percebereis em poucos instantes, talvez não seja tampouco a vossa.”

Meu único consolo que me traz a presente circunstância de um diálogo plurinacional é a de poder imaginar que talvez alguns dos africanos, asiáticos e americanos que me escutam terminarão por acreditar que vos falo em francês.

O assunto que pretendo sugerir às vossas meditações vos parecerá talvez estranho. Num colóquio dedicado aos sofrimentos dos homens, mulheres, crianças e velhos submetidos a injustas exclusões e discriminações, é dado por pressuposto que se fale sempre de minorias que protestam da justeza de sua causa, para fazer valer seus direitos. O grupo excluído do qual pretendo vos falar é, ao contrário, composto da vasta maioria da espécie humana. Pior ainda, ele se compõe apenas de pessoas que não protestam jamais, que não se exprimem nunca senão por um silêncio que com demasiada facilidade tomamos como sinal de indiferença ou aprovação. Pretendo falar-vos dos mortos, dos homens dos tempos passados. Embora sendo verdade que eles são as mais inermes de todas as criaturas, eles não teriam o que fazer neste colóquio se sua exclusão do diálogo humano não fosse, no meu entender e segundo vos pretendo mostrar se mo permitirdes, o modelo mesmo, o arquétipo de todas as formas modernas de exclusão e de discriminação.

Há muitos traços que delineiam nosso século com um perfil que o singulariza entre todos, mas o mais significativo é sem dúvida a mudança radical da atitude dos homens para com o passado. Essa mudança foi preparada desde o advento do historicismo, mas não atingiu a plenitude senão no século XX. O historicismo ensinou-nos a “relativizar” as idéias, referindo cada uma à sua “época”, de onde não poderiam sair senão na condição de testemunhas de estados de espírito que não voltariam jamais à vida. Ele nos ensinou a ver as idéias e as crenças dos homens de outrora como exemplares de espécies extintas. Ele nos ensinou a não nos esforçar mais para estar na verdade, mas para “ser do nosso tempo”.

Com Karl Marx, o historicismo já não é mais apenas um simples quadro de referência teórico e se torna uma força agente, que modela o mundo à sua imagem: a imagem de um fluxo temporal absolutizado, que desgasta a significação das idéias até fazer delas simples resíduos do fato consumado. As opiniões e as crenças dos homens de outrora, não devemos mais discuti-las, julgar de sua veracidade ou falsidade: devemos explicá-las em função de estados de coisas que nada têm a ver com o seu conteúdo, mas que se supõe havê-las “produzido” desde fora por uma espécie de “simpatia” mágica entre as estruturas maiores da sociedade, da história e do psiquismo, e aquilo que cada homem acredita pensar livremente. Explicamos os teoremas da geometria pela luta política, os metros da poesia pelos interesses de classe. Estamos longe do tempo em que Sto. Tomás podia ler os textos de Aristóteles tal como se fossem de edição recente, para separar neles o verdadeiro e o falso, o melhor e o pior. Não pousamos jamais nosso olhar sobre o assunto dos escritos antigos: miramos de esguelha, não visamos senão às causas que supomos havê-las produzido e a “explicação” que delas nos podem dar. Com o advento da psicanálise, esse desejo de olhar de viés vai mais longe ainda: ante um homem que tenta nos comunicar os conteúdos de sua consciência, não miramos senão os conteúdos de seu inconsciente, que freqüentemente nada têm a ver com aquilo que ele deseja nos fazer ver. Desde então, o progresso dos métodos e das teorias – das análises pejorativas de Nietzsche até o desconstrucionismo – não fez senão nos levar cada dia mais longe do ponto focal visado pelos homens cujas ações e palavras professamos estudar e compreender.

O desejo de enxergar as grandes estruturas e os ciclos maiores por trás dos fatos e dos homens singulares é, decerto, algo de legítimo, talvez de louvável. Mas com freqüência esse impulso nos leva a fazer, dos homens dos tempos passados, puros objetos de nossa pesquisa, o que nos faz esquecer que são homens, isto é, interlocutores legítimos que têm o direito de nos falar de iguais para iguais.

Não é o objetivo da presente comunicação descrever-vos esse longo processo de transformação de nossa imagem dos homens de outrora. Vós o conheceis, talvez, melhor do que eu. O que pretendo é mostrá-lo enquanto forma de exclusão – o feito de uma época que se crê suficientemente boa para saber, das outras, muito mais do que elas mesmas o sabiam, tal como o superior conhece o inferior melhor do que ele mesmo.

Para empreender esse esboço de nossa imagem dos tempos passados sub specie exclusionis, vou começar por um breve exame de uma constante das relações entre os seres da nossa espécie: a reciprocidade.

  1. Resposta e efeito

Donde vem a satisfação que sentimos quando uma flor que plantamos desabrocha, quando o cão que chamamos por um assobio vem se deitar aos nossos pés? Não se trata, por acaso, de simples reações normais e previsíveis ao simples desencadear de um mecanismo de causa e efeito? Por que então nos parecem mais significativas do que o ronco do motor quando damos partida a um automóvel, do que a mudança da tela do computador quando clicamos o mouse? É que nelas podemos entrever toda a distância que separa um efeito de uma resposta. Esta última pode sempre ser negada, pode vir diferente do que esperávamos, e é algo de mais precioso do que a manifestação de nosso simples poder de produzir efeitos. Em todos os casos em que responde à nossa expectativa, ela nos parece ser como que a retribuição de uma atenção amorosa. Percebemos que por trás dela existe algo como uma decisão, o exercício de alguma liberdade, um consentimento que manifesta uma harmonia e uma graciosa compreensão mútua entre nós e o mundo. Por esta mesma razão, temos mais paciência com o cão desobediente ou com a planta que demora a brotar do que com o carro que não pega ou com a tela de computador que “congela”. Isto provém da natureza mesma das informações que nos são trazidas pela sua recusa de nos obedecer: o automóvel, o computador que não funcionam só nos informam acerca de seu próprio estado. O cão que se furta ao nosso chamado expressa algo que é como sua opinião a nosso respeito. Ele nos julga, enquanto a máquina não julga senão a si mesma.

Uma reação se aproxima tanto mais de uma resposta e se distingue tanto mais de um simples efeito quanto maior a sua complexidade, portanto a imprevisibilidade do sujeito, sua liberdade de nos aceitar ou nos rejeitar, liberdade que no cão, e até certo ponto mesmo na planta, é normal e constitutiva, enquanto no carro ou no computador é somente defeito e anormalidade.

Dar ou negar respostas é próprio do ser vivo. Eis por que a capacidade de prever respostas é considerada uma habilidade superior, e mais próxima do ideal de sabedoria, do que o simples conhecimento de relações de causa e efeito.

Todo conhecimento do ser humano pelo ser humano implica sempre, em algum grau, a possibilidade ao menos de conjeturar suas respostas, mas também a impossibilidade de as calcular com uma exatidão tal que acabassem tendo para nós uma significação menor que a da obediência do cão ou a do funcionamento regular de um utensílio eletrônico. No ser humano, a imprevisibilidade absoluta coincidiria com a total ausência de conhecimento a seu respeito, a absoluta previsibilidade com a supressão de seu estatuto humano, com sua redução ao substrato biológico ou bioquímico ou talvez físico de sua hominidade.

É porque as respostas de um ser humano podem ser variadas que elas têm para nós uma significação. É porque essa significação não pode variar para fora da gama admitida pelo ato ou pela palavra que a suscitam que ela nos é compreensível, em princípio e de jure, e é o fato de ela dever ser compreensível que nos permite, quando não o é, julgá-la absurda.

Por todas essas razões, não se pode admitir como dotada de sentido nenhuma idéia ou crença a propósito do ser humano, que não implique, em certa medida ao menos, o interesse pela resposta que se supõe que ele teria a lhe oferecer. Se tenho uma opinião sobre um certo indivíduo, mas me é impossível prever o que ele pensaria dela, então ela não contém efetivamente nenhum conhecimento a respeito dele, ela deixa escapar totalmente seu objeto, ela não sai do círculo de imanência onde comparo, umas com as outras, minhas várias imagens de mim mesmo.

  1. Reciprocidade e bilateralidade atributiva

Existe portanto, no conhecimento do ser humano pelo seu próximo, sempre a admissão de um certo grau de reciprocidade, seja positiva, seja negativa. Conheço um homem na medida em que sei que o horizonte daquilo que ele sabe dele mesmo é igual, maior ou menor do que aquele em que o enxergo.

Em nenhum caso isso é mais evidente do que na radical discordância. Saber que não estou de acordo com alguém é saber que ele não está de acordo comigo. A impossibilidade de prever sua reação a minhas opiniões importaria em ignorar por completo se entre nós há acordo ou desacordo. Quando estudamos culturas estrangeiras, sabemos que alguns de seus costumes só nos parecem estranhos na medida mesma em que, como o diz a própria palavra costume, não parecem estranhos de maneira alguma àqueles que os seguem. Aos olhos destes, é nossa reação de surpresa que parece estranha.

Em toda relação pessoal, o conhecimento que julgamos ter de nossos próximos não é jamais pertinente se não traz dentro de si informações corretas concernentes ao que eles pensam de nós. A imagem do próximo é por assim dizer bidirecional, e é só a retrovisão que nos dá o centro de perspectiva dessa imagem. Sem este feedback, permaneceríamos semi-cegos e desorientados como uma flecha que, tendo esquecido seu alvo, voasse nas trevas. (É mais ou menos a situação em que me encontro, falando-vos numa língua que suponho ser o francês sem saber se ela o é também para os que me escutam.)

A mesma coisa se passa na política: não podemos compreender uma ideologia, um partido, um movimento qualquer, se não temos uma idéia do que nossas interpretações deles significam desde o seu ponto de vista.

Reduzindo o próximo à condição de um objeto inerme, destituindo-o de sua capacidade de nos julgar e de nos abalar, isto é, arrebatando-lhe sua força e seu potencial de periculosidade, já não lidamos mais senão com marionetes que se movem e falam a nosso belprazer.

Jamais, no conhecimento do homem pelo homem, a virtude de objetividade corresponde a um deslocamento do observador para alturas divinas onde esteja protegido de todo feedback, de toda possibilidade de uma resposta. Bem ao contrário, esse deslocamento não seria senão um sonho de onipotência infantil, a abdicação do senso das medidas, que é a garantia única da objetividade de nossos conhecimentos.

É mesmo espantoso que esse sonho de onipotência tenha sido consagrado como o ideal da objetividade científica, que a impossibilidade de separar o observador das coisas observadas tenha sido deplorado como um sério obstáculo ao conhecimento, quando ela é precisamente a garantia da realidade de todo conhecimento, a garantia de um liame indissolúvel de sujeito e objeto.

Com tanto mais razão, em nenhum caso o reconhecimento da necessidade do feedback depende de que o próximo esteja conosco numa relação de proximidade física. Se um modesto jornal de uma cidade do interior do Brasil publica críticas ao Sr. Lionel Jospin as quais o Sr. Jospin não lerá jamais, ainda neste caso é preciso que o articulista tome por modelo de sua argumentação a inversão imaginária das reações possíveis do Sr. Jospin ao seu artigo.

Em todo conhecimento que buscamos sobre o ser humano, a expectativa da reciprocidade é uma necessidade tão premente, que podemos dá-la por pressuposta. É só quando ela falta que ela nos atrai a atenção. Nesses momentos, a impressão de incongruência será tanto mais forte quanto mais inconsciente tenha sido a expectativa de reciprocidade.

Tão fundamental é essa expectativa, que a norma jurídica das relações humanas tem como critério essencial o que o jurista brasileiro Miguel Reale chamou bilateralidade atributiva.

“Existe bilateralidade atributiva – escreve Reale – quando duas ou mais pessoas estão numa relação segundo uma proporção objetiva que as autoriza a pretender ou a fazer garantidamente alguma coisa. Quando um fato social apresenta esse gênero de relação, dizemos que é jurídico.” 2

Segundo Reale, a diferença entre os fenômenos jurídicos e os não jurídicos – econômicos, psicológicos, etc. – é que nestes a bilateralidade não é atributiva, isto é, a correspondência não está assegurada, não obedece a um padrão uniforme ou obrigatório.

Portanto, é precisamente nessas esferas que o esforço de conjeturar e prever a resposta se torna ainda mais importante, e este esforço é repetido com tanta freqüência que acaba por se integrar no conjunto dos automatismos da vida cotidiana e nas rotinas do conhecimento científico sem necessitar de uma teorização especial.

  1. feedback, condição de todo conhecimento do homem, da natureza e de Deus

Por isso, mesmo ante os objetos da natureza – e me ocorre agora que Eugen Rosenstock-Huessy definia a natureza como “o mundo menos a fala” –, nossa confiança no sucesso de nossas idéias se baseia inteiramente na certeza de que os seres naturais reagirão a nossos atos de uma maneira determinada, e não indeterminada: sei que um cão é feroz porque conheço o feedback que ele me daria caso eu me aproximasse dele fundado na hipótese de que não o é.

Em todas as circunstâncias, é essencial ter o conhecimento da resposta possível. A total ausência desse conhecimento equivale ao estupor ante um enigma incompreensível. Toda a dificuldade que temos para conhecer Deus reside precisamente na impossibilidade de prever a resposta que Ele daria a nossos atos ou opiniões. A falta de uma resposta controlável leva ao desespero o homem que se dedica à busca do conhecimento de Deus.

Seja no estudo do homem, da natureza ou de Deus, a resposta dá o centro de perspectiva e a medida do quadro de nossa visão das coisas.

Uma das diferenças maiores que assinalam a passagem do mecanicismo clássico à ciência contemporânea é que os homens de ciência abandonaram o projeto de nos dar uma “imagem” do mundo como puro objeto, para lhe substituir a figura movente de uma interação e de uma constituição mútua do observador e da coisa observada. A interação tomada como modelo prestou relevantes serviços nas pesquisas ecológicas e se constituiu finalmente num dos pilares do “novo paradigma” científico.

  1. A História como espetáculo

Por todas essas razões, é muito estranho que em geral a necessidade de levar em conta a reciprocidade tenha sido tão menosprezada pelos estudos históricos e pela visão geral que nossa cultura tem do passado humano. A extensão desse menosprezo pode ser avaliada pela reação de estranheza com que o historiador contemporâneo respondería se lhe perguntássemos o que ele imagina que Aristóteles ou Lao-Tsé ou Napoleão Bonaparte ou Luís XIV pensariam do que ele escreve a respeito deles.

No entanto, bem examinadas as coisas, essa reação é que é estranha. Não é espantoso que os únicos objetos que acreditamos poder conhecer sem nenhum feedback sejam precisamente seres humanos, ou seja, entes capazes de ter uma opinião? Poderia eu orientar-me no mundo antigo sem outro guiamento senão as opiniões de meus contemporâneos, que o conhecem tão de longe quanto eu? Mesmo que o tivessem conhecido de perto, restaria perguntar: em qual tribunal do mundo o depoimento das testemunhas vale alguma coisa, se desprovido de qualquer confronto com o do réu?

Por mais perfeita, científica ou realista que se pretenda a nossa reconstituição do passado, ela não chega jamais senão a fazer dele um espetáculo, algo que vemos e que não nos vê. Os mortos estão para sempre excluídos do diálogo, são os excluídos por excelência. Ele têm olhos mas não vêem, têm ouvidos mas não ouvem. Nós os espiamos pelo buraco da fechadura que denominamos “História”. Eles são os objetos inermes de nossa paixão de ver sem sermos vistos, que em última instância é a paixão de julgar sem ser julgado. Esta paixão recebe em nossos tratados e teses universitárias o nome dignificante de objetividade. É talvez a maior mentira desde o começo do mundo.

  1. A supressão da presença humana

Antigas tradições tiveram sempre consciência de um dever para com os mortos. Ele não tinha nada a ver com as nossas homenagens preguiçosas ou com o nosso ambíguo reconhecimento de uma “importância histórica” que nos dê o direito de mal interpretá-los ao sabor de nossas conveniências. As velhas tradições não tinham a pretensão de saber sobre os mortos mais do que eles mesmos sabiam; menos ainda a de julgá-los do alto de uma plenitude dos tempos, de explicá-los em função de tal ou qual teoria da História, de tal ou qual método sociológico. Para elas, não se tratava jamais de vasculhar pelas costas deles as suas motivações secretas, de reduzi-los a fantoches movidos por forças inconscientes, de fazer deles, em suma, objetos. Elas os respeitavam, escutavam seus conselhos, obedeciam-nos, às vezes, longo tempo após eles terem se retirado deste mundo. Eles eram presenças humanas, eles tinham direito de cidade entre os vivos e faziam escutar suas vozes nas assembléias. Eles eram compreendidos, em suma, tal como se compreendiam a si mesmos. E não é esta, por acaso, a mais elevada compreensão que podemos ter do nosso próximo? A confiança cega que depositamos nos progressos da ciência histórica não estará nos afastando cada vez mais do conhecimento da identidade concreta de nossos antepassados, na medida em que a ampliação exagerada do cenário torna impossível um diálogo com seres reduzidos artificiosamente às dimensões de grãos de areia?

A maneira mesma pela qual procuramos dar às ações e palavras dos tempos passados um “sentido presente”, na ilusão de os “revivificar” generosamente, consiste quase sempre em lhes atribuir intenções muito distantes das de seus protagonistas e autores. Dizemos, por exemplo, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo, que “Descartes inaugurou o subjetivismo moderno”. É atribuir a Descartes o que outros fizeram dele sem consultá-lo. O próprio Descartes não se reconheceria nesse retrato, todo feito da inserção de sua pessoa, de sua vida e de seus pensamentos no quadro maior de ciclos históricos que no tempo de sua vida não se tinham cerrado senão pela metade, na melhor das hipóteses, e que talvez lhe fossem perfeitamente estranhos.

As ciências históricas estariam condenadas a não compreender os homens do passado sem fazer de sujeitos humanos simples objetos, sem dissolver sua fisionomia na de seus descendentes quase sempre infiéis?

Não me sinto de maneira alguma qualificado para dar a essa pergunta uma resposta geral. Mas um só exemplo, tomado ao campo especializado que me é mais acessível, isto é, à história da filosofia, pode ilustrar a direção na qual se deve, segundo creio, buscar a resposta.

Quem quer que aborde os estudos sobre o pensamento grego se surpreende de ver os conflitos entre interpretações mutuamente excludentes da filosofia de Platão, ou de Aristóteles, atravessarem os séculos e os milênios sem se aproximar, no mínimo que seja, de uma solução. Ao contrário, são as questões e as dúvidas e os pontos de vista que se multiplicam, tomando com freqüência formas novas e imprevistas. É só do ponto de vista estritamente quantitativo que isso pode ser dito um progresso. Bem feitas as contas, o resultado de todas essas controvérsias não é, na maioria dos casos, senão a fragmentação do objeto de pesquisa numa poeira rodopiante de imagens, cada uma delas assegurando ser “o verdadeiro Platão” ou “o verdadeiro Aristóteles”.

Ao longo desse trajeto, podemos perceber o retorno cíclico de gigantescos ensaios de reconstrução, que periodicamente restauram a unidade do objeto e oferecem aos séculos seguintes um campo unificado onde as pesquisas não são mais uma confrontação cega de hipóteses inconciliáveis, mas uma colaboração organizada e profícua.

No que diz respeito a Aristóteles, esses momentos foram apenas dois, se nos limitarmos ao campo Ocidental: o século XIII e nosso próprio século. No primeiro, a síntese de aristotelismo e cristianismo inaugurada por Sto. Alberto Magno e Sto. Tomás de Aquino abriu o campo a um prodigioso florescimento dos estudos aristotélicos, que se prolongou até Leibniz. No nosso século, a redescoberta de alguns temas aristotélicos no seio da física e da biologia modernas, assim como o retorno do tema das relações entre ética e política, nos dá a promessa de extraordinários aprofundamentos na nossa compreensão da filosofia do Estagirita.

O que há de comum entre essas duas notáveis séries de acontecimentos intelectuais separados por sete séculos são duas coisas:

  1. Nem uma nem a outra foram obras de historiadores.
  2. Em cada uma delas não se tratava de aprofundar o conhecimento da filosofia de Aristóteles, de obter uma descrição mais completa ou uma interpretação mais rigorosa dela, mas de estudar as questões do dia à luz de Aristóteles. Não se tratava de interpretar Aristóteles, mas de se deixar interpretar por ele.

Hoje em dia está bem claro que o resultado e a verdadeira novidade dos esforços de Sto. Tomás não foi o de cristianizar Aristóteles, o que era aliás perfeitamente dispensável uma vez que Tomás se persuadira do acordo essencial entre aristotelismo e cristianismo, mas, bem ao contrário, o de aristotelizar o cristianismo, dando à expressão do dogma a forma de um sistema dedutivo, o que nada na evolução do cristianismo até então deixava prever, e que iria produzir na história subseqüente da Igreja as mais prodigiosas conseqüências.

Quanto ao renascimento aristotélico que presenciamos hoje em dia, não é surpreendente que ele seja em grande parte obra de físicos e de biólogos, que não abordam os textos do mestre em busca de uma visão histórica do pensamento antigo, mas de uma visão aristotélica de sua própria ciência.

Mas, enquanto essas coisas acontecem diante dos nossos olhos, que se passa com Aristóteles no campo dos estudos de história da filosofia propriamente dita? Durante quase todo o século, historiadores se bateram em vão em torno das hipóteses genéticas e das questões de método levantadas em 1928 por Werner Jaeger, sem encontrar um ponto de acordo. Hoje como em 1928, os dois partidos, o “genético” e o “sistemático”, têm combatentes de valor que se desdobram em esforços dialéticos de uma grande elegância que não chegam jamais a persuadir o partido contrário3.

Por que isso acontece? A resposta é de uma evidência quase escandalosa: os historiadores buscam a imagem de um Aristóteles grego, de um Aristóteles do seu tempo, de um Aristóteles descritível e mais ou menos fechado, de um Aristóteles tornado coisa, enquanto os biólogos e os físicos buscam um interlocutor vivente, capaz de vir em sua ajuda, portanto de julgá-los e de julgar o estado de sua ciência.

Invertendo os termos – mas não o sentido – de uma sentença célebre do Profeta árabe, devemos tirar desses fatos uma conclusão inexorável: Só quem pode nos prejudicar pode nos ajudar. Aquele que não nos oferece o menor perigo não pode nos servir senão com fins decorativos.

Peço que não me interpreteis às avessas. Não censuro de maneira alguma os esforços dos historiadores, que estão perfeitamente no seu lugar. O que digo é que a imagem geral que nossa cultura atual faz do passado busca sua inspiração, de maneira quase exclusiva, no modelo dos “historiadores do aristotelismo”, nunca no da “biologia aristotelizada”.

Seja na educação, seja na imprensa, seja nos debates ideológicos, seja na linguagem cotidiana, não nos referimos ao passado da humanidade senão como a algo do qual se deve fugir o mais rápido possível, como a algo que deve ser abandonado e fechado para sempre no seu quadro temporal imutável e mudo como num esquife cronológico, para evitar a todo preço que volte à vida e, de pé diante de nós, nos julgue e nos condene.

Não é uma coincidência que a primeira e talvez a mais célebre reação contra os abusos do historicismo com relação à Grécia tenha sido obra de um pensador que em seguida se tornaria a vítima do germe de historicismo que, sem saber, trazia em si. Refiro-me ao próprio Werner Jaeger. Tentando restaurar a comunicação com o passado da nossa cultura, ele procurou fazer do ideal pedagógico dos gregos um modelo de valor permanente, subtraído aos desgastes do tempo. Mas isso exigia também, no seu entender, que ele fornecesse alguma prova da unidade da cultura Ocidental, e lhe pareceu que podia encontrá-la por intermédio da teoria aristotélica (mas também goetheana) da “forma interna”. O ideal do homem da filosofia de Platão seria, segundo Jaeger, a “forma interna” subjacente a todo o desenvolvimento histórico da nossa cultura. Eis um remédio que logo em seguida se revela mais perigoso do que a doença mesma. Aplicar às culturas o conceito de “forma interna” é dar-lhes uma unidade biológica, substancial, o que teria muito surpreendido ao próprio Aristóteles; é dar ao seu desenvolvimento um modelo similar ao do curso linear do crescimento e envelhecimento dos organismos animais, onde não existe jamais um retorno ao passado. Essa contradição do ideal pedagógico de Jaeger nos mostra até que ponto a absolutização do histórico se tornou um mal profundo da nossa cultura.

  1. A retroprojeção histórica

A partir dessas considerações, busquei formular há alguns anos um método de investigação que me pareceu pertinente chamar retroprojeção histórica. Ele consiste em fazer do presente o objeto do julgamento dos homens do passado, em enfocar portanto o passado não enquanto objeto, mas enquanto agente consciente que nos vê e nos compreende pelo menos tanto quanto nós mesmos o vemos e compreendemos.

Pode-se perguntar, é claro, se meu apelo a uma mudança de atitude do historiador em face do passado não se baseia na hipótese absurda de uma ressurreição ou de um diálogo quimérico com os mortos, como numa sessão de espiritismo.

Mas é evidente que, com uma grande margem de sucesso, e sem emprego de meios divinos ou paranormais, podemos facilmente confrontar nossa interpretação do passado com o julgamento possível que dela teriam feito os viventes desse passado, e fazê-lo por três meios:

  1. O prolongamento lógico das conseqüências de suas opiniões, até que possam ser aplicadas ao caso específico da nossa interpretação delas.
  2. A sondagem das expectativas de futuro implícitas nos atos e palavras dos homens do passado.
  3. A investigação da potência de autoconsciência que podemos desenvolver, agora, a partir das idéias e dos valores dos tempos passados.
  4. Os quatro discursos de Aristóteles

O que me levou mais diretamente a esse empreendimento foi a necessidade de uma nova estratégia para a investigação que eu estava fazendo a propósito de Aristóteles, daquilo que denomino sua “teoria dos quatro discursos”.

No meu livro Aristóteles em Nova Perspectiva, levantei a hipótese de uma unidade teórica implícita que desse sustentação à emergência das quatro ciências aristotélicas do discurso humano. A Poética, a Retórica, a Dialética e Analítica proviriam de uma mesma fonte unitária: uma doutrina geral da credibilidade e da prova, que está subentendida em todo o sistema aristotélico. Essa doutrina, por sua vez, teria uma rigorosa homologia estrutural com a gnoseologia e a psicologia de Aristóteles. Uma vez explicitada, tal doutrina lançaria as bases de toda uma nova filosofia da cultura, portanto de uma nova teoria (e técnica) geral da interdisciplinaridade.

Não cheguei a essas conclusões através de uma “releitura” dos textos do mestre de Estagira, à luz dos conhecimentos e métodos histórico-filológicos atuais. Ao contrário, tentei imaginar o que teriam podido ser as respostas do próprio Aristóteles a certas questões precisas da atualidade, concernentes, no caso, a esse ideal típico dos nossos tempos ao qual denominamos interdisciplinaridade. Como teria Aristóteles enfrentado, digamos, o problema colocado pelo dualismo bachelardiano que afirma a coexistência de um universo das imagens poéticas e de outro das leis racionais? A obra de Scott Buchanan, Poetry and Mathematics, lhe teria parecido mais próxima da verdade ao afirmar a identidade essencial do poético e do matemático? A mim me pareceu que para Aristóteles nem o dualismo bachelardiano nem a fusão operada por Buchanan teriam parecido suficientes. Sua visão não teria podido ser senão a de uma conversão progressiva da Poética em Analítica através da mediação inevitável da Retórica e da Dialética, tal conversão estando na natureza mesma do processo cognitivo tal como concebido por ele, o qual pressupõe a transformação das percepções em esquemas plásticos e destes em esquemas eidéticos, bases dos conceitos. Para ele, a aparente dualidade teria se resolvido numa quaternidade.

Em seguida eu iria ter a alegria inesperada de ver minhas conclusões confirmadas, por métodos muito diversos, nos estudos, ambos igualmente notáveis, de Deborah L. Black e Salim Kemal sobre o “silogismo imaginativo” no aristotelismo árabe4.

Então se tornou para mim evidente a fecundidade do método que eu me havia audaciosamente permitido empregar. A inversão do olhar, que eu propunha, surgia como um utensílio delicado mas poderoso, ao mesmo tempo, para o historiador e o filólogo. Já não se trataria apenas de ver o passado no espelho da história das idéias segundo a imagem que fazíamos delas e de nós mesmos, mas sim também, e sobretudo, de supor por trás desse espelho a existência de um outro olhar, vivente e ativo, capaz de nos dar, caso necessário, uma resposta diferente daquela que decorria necessariamente da idéia que tínhamos de nós e do passado.

Um “passado vivente”, por justa e precisa que pudesse ser sua imagem segundo o historiador mais agudo e escrupuloso, não seria no entanto propriamente vivente na simples leitura que dele fizéssemos; para ser vivente de fato e de direito, ele teria de fazer sua própria leitura de nós – sua leitura de nossas leituras dele. O caráter vivente do passado se encontra menos no realismo de sua imagem, por mais completa e fiel, do que na sua capacidade de ver – e de nos fazer ver – a nossa imagem. Onde os melhores historiadores conseguiram fazer o passado vir a nós, restaria a tarefa de nos levar até ele, de nos submeter ao seu exame. Sabemos muito desse passado. Resta-nos conhecer o que ele sabia de nós, o que ele sabe de nós.

Em suma, se nossa preocupação de objetividade é algo mais que um simples desejo de reificação do passado, não se trata só de saber o que pensamos de Platão ou de Descartes, mas também o que Platão e Descartes teriam pensado de nós. O historiador deve tornar-se objeto, o historiado sujeito. Esse método funda-se no pressuposto de que todo pensamento ou ato humano não tem sentido senão no quadro de um futuro projetado, desejado ou temido, e de que por isto é sempre possível julgar o presente ante um tribunal dos tempos passados, tal como um adulto se põe em julgamento ante o tribunal de seus sonhos de infância e de seus projetos de juventude, e por eles mede quase que infalivelmente seu fracasso ou sucesso. Trata-se, com isso, de corrigir os excessos e as distorções inerentes a uma confrontação onde um dos antagonistas se encontra protegido sob a carapaça de uma confortável invisibilidade. Sem nos submeter a um tal julgamento, sem nos expor aos olhos dos mortos tanto quanto eles estão expostos aos nossos, nossa pretensa objetividade histórica não será jamais senão uma ilusão lisonjeira.

Muito tempo e muito esforço foram despendidos para que a ciência e a cultura modernas se libertassem de um etnocentrismo ingênuo – ou talvez malicioso, mas de malícia ingênua – que tomava por absolutos e incondicionados certos valores que a evolução dos fatos históricos não tinha produzido senão como adaptações do homem ocidental a situações transitórias. No entanto, a neutralidade axiológica a que as ciências humanas se habituaram desde Max Weber, e o relativismo metodológico que se tornou o primeiro mandamento da pesquisa antropológica desde Margaret Mead, produziram, a longo termo, a queda num relativismo doutrinal, paradoxalmente dogmático e absolutista, o qual, fazendo de si mesmo a única visão aceitável do mundo, não resulta senão em restaurar retroativamente o mesmo etnocentrismo, sob pretextos inversos, uma vez que só o Ocidente moderno tem por crença oficial o relativismo e que todas as culturas, quando se revoltam contra ele e defendem a absolutidade de seus valores e de suas verdades, são imediatamente condenadas como “atrasadas”, “radicais”, “fanáticas”, “fundamentalistas”. Não lhes resta, ante a autoridade absoluta do relativismo, senão o protesto absolutamente impotente do dominado ante o dominador.

Por outro lado, o relativismo dos antropólogos e dos sociólogos não tomou sob a proteção de seu comedimento axiológico senão alguma comunidades privilegiadas existentes ainda hoje – os índios, por exemplo –, recusando similar benefício às comunidades extintas, às épocas passadas de nossa própria cultura e às comunidades “fundamentalistas” de nosso próprio tempo – isto é, aos mortos de morte física e aos mortos de morte metafórica, todos condenados juntos a permanecer mudos e inermes ante a voz onipotente e onipresente do relativismo erigido em verdade absoluta. A revogação do etnocentrismo deixou intacto o cronocentrismo, que é o germe do qual ele renasce perpetuamente. E não é por acaso que em geral as comunidades excluídas do diálogo sob pretexto de fundamentalismo são justamente aquelas que conservam o sentido de um diálogo com o passado, por exemplo os muçulmanos, os judeus ortodoxos, os católicos tradicionalistas – pessoas para as quais a revelação corânica, o encontro de Moisés com Yaveh no Monte Sinai, o sacrifício do Calvário não são relíquias de uma época extinta, mas atualidades viventes à luz das quais se julgam os atos do dia. Eis como o relativismo moderno, que professava derrubar os muros do preconceito e da discriminação, termina por se constituir ele mesmo como a fortaleza da exclusão. E se é verdade que cada uma dessas comunidades tem hoje em dia o dever de buscar uma via de conciliação entre seu amor das tradições e seu desejo de ocupar um lugar num mundo pluralista, não o é menos que este mundo tem o dever de fazer de seu relativismo alguma coisa de melhor que um dogmatismo modernista hipócrita e intolerante.

Mas é claro que o único proveito que se pode obter do relativismo, quero dizer, de um relativismo sério que se atenha aos limites da metodologia sem pretensões a uma autoridade dogmática, seria precisamente o de nos libertar de todo provincianismo, tanto espacial quanto temporal, o de alargar nossos horizontes e nos fazer subir a uma visão mais exata do quadro das relações onde nosso olhar se insere como um ator na cena, jamais como um puro espectador. O destino ideal de todo relativismo é o de ser provisório, é o de se transcender, de se transformar em outra coisa, de morrer como dúvida para renascer como certeza mais nuançada e verdadeira. Tão logo o relativismo deixa de ser um simples ponto de partida e se afirma como ponto de chegada, tão logo ele deixa de ser um método e se afirma como doutrina, ele se torna o mais opressivo e tirânico dos dogmatismos, o mais injusto dos juízes, um magistrado invisível e onipresente que julga e condena sob o pretexto de se abster de julgar, e que portanto não é jamais responsabilizado por seus temíveis veredictos5.

  1. Conseqüências éticas e políticas da exclusão dos mortos

A recusa de um diálogo de igual para igual com os viventes de outrora é o resíduo de um historicismo perempto em teoria mas investido de uma força nova enquanto ideologia e pressuposto inconsciente da imagem do mundo dominante neste fim de século. As conquistas políticas e sociais, a constituição de um mercado global com todas as mudanças psíquicas e sociais que o acompanham, tudo isto é de natureza a nos encerrar cada vez mais no presente, a estreitar nossa consciência histórica, a fazer-nos ver o passado humano como um cemitério do irrelevante, portanto a nos colocar, por assim dizer, fora do tempo, isto é, fora de nós mesmos, num estado de delírio hipnótico.

Mas, à medida que o passado se afasta de nós, vai ficando cada vez mais difícil tomá-lo como termo de comparação, e uma época que não pode ser comparada senão consigo mesma está reduzida a um estado de autismo. Eis a origem dos abismos de inconsciência que sulcam o espaço de nossos debates públicos. Para não dar senão um exemplo, que me parece pertinente ao tema deste colóquio:

Nossos contemporâneos, imbuídos de ilusão igualitária, crêem que o mundo caminha para o nivelamento dos direitos, sem se perguntarem se esse objetivo pode ser realizado por outros meios senão a concentração de poder. Essa ilusão torna-os cegos para as realidades mais patentes, entre as quais a da elitização, sem precedentes, dos meios de poder. O imaginário moderno concebe, por exemplo, o senhor feudal como a epítome do poder pessoal discricionário, e não se dá conta de que o senhor feudal estava limitado por toda sorte de laços e compromissos de lealdade mútua com seus servos, e que ademais não tinha outros meios de violência senão uns quantos cavaleiros armados de espada, lança, arco e flecha; homem entre homens, era visto por todos no campo e na aldeia, caminhava ou cavalgava ao lado de seu servo, às vezes trazendo-o na garupa, de volta da taberna onde ambos se haviam embriagado, e podia portanto, em caso de grave ofensa, ser atingido, inerme, nas campinas imensas onde o grito se perde na distância, por uma lâmina vingadora. Pela foice do camponês. Por uma faca de cozinha.

Em comparação com ele, o homem poderoso de hoje está colocado a uma tal distância dos dominados, que sua posição mais se assemelha à de um deus ante os mortais. Em primeiro lugar, os poderosos estão isolados de nós geograficamente: moram em condomínios fechados, cercados de portões eletrônicos, alarmes, guardas armados, matilhas de cães ferozes. Não entramos lá. Em segundo lugar, seu tempo vale dinheiro, mais dinheiro do que nós temos; falar com um deles é uma aventura que demanda a travessia de barreiras burocráticas sem fim, meses de espera e a possibilidade de sermos recebidos por um assessor dotado de desculpas infalíveis. Em terceiro, os ocupantes nominais dos altos cargos nem sempre são os verdadeiros detentores do poder: há fortunas ocultas, potestades ocultas, causas ocultas, e nossos pedidos, nossas imprecações e mesmo nossos tiros arriscam acertar uma fachada inócua, deixando a salvo o verdadeiro destinatário que desconhecemos. Perdemo-nos na trama demasiado complicada das hierarquias sociais modernas, e temos razões para invejar o servo-da-gleba, que ao menos tinha o direito de saber quem mandava nele. Após dois séculos de democracia, igualitarismo, direitos humanos, Estado assistencial, socialismo e progressismo, eis a parte que nos cabe deste latifúndio: os poderosos pairam acima de nós na nuvem áurea de uma inatingibilidade divina.

O servo-da-gleba também tinha o direito de ir e vir, sem passaportes ou vistos e sem ser revistado na alfândega (o primeiro senhor de terras que resolveu taxar a travessia de suas propriedades desencadeou uma rebelião camponesa e pereceu num banho de sangue; o episódio deu tema a uma novela de Heinrich von Kleist: Michel Kolhaas). Tinha ainda o direito de mudar de território, caso lhe desagradasse o seu senhor, e instalar-se nas terras do senhor vizinho, que era obrigado a recebê-lo em troca de uma promessa de lealdade. E, por fim, se caísse na mais negra miséria, tinha as terras da Igreja, onde todos eram livres para plantar e colher, por um direito milenar; a Revolução encampou essas terras e as rateou a preço vil, enriquecendo formidavelmente os burgueses que podiam comprá-las em grande quantidade, e criando a horda dos sem-terra que foram para as cidades formar o proletariado moderno e trabalhar dezesseis horas por dia, sem outra esperança senão a de uma futura revolução socialista (que os reverteria a uma condição similar à de escravos romanos). E, se através de lutas e esforços sobre-humanos o movimento sindicalista obtém finalmente para essa horda a jornada de trabalho de oito horas e a semana de cinco dias, ela ainda está abaixo da condição do camponês medieval, que não trabalhava, em média, senão uns seis meses por ano. Eis como o progresso dos direitos nominais não se acompanha necessariamente de um aumento das possibilidades reais. 6

A distância que separa, nos nossos debates correntes, os conceitos e os fatos, dá às vezes à vida intelectual contemporânea o ar de um diálogo de loucos. A causa mais profunda disto é a absolutização do tempo, que causa a perda da perspectiva histórica e a incapacidade de nos medirmos. Após haver calado os homens de outros tempos, nossa época, prisioneira de sua singularidade absoluta, termina por se tornar invisível e incompreensível a si mesma, uma vez que, como o dizia o aristotelismo medieval, individuum est ineffabile.

Reencontrar o diálogo com o passado é reconquistar o sentido da unidade da espécie humana, e seria loucura pretender reintegrar na humanidade este ou aquele grupo que estejam hoje entre os excluídos e os discriminados, sem antes revogar a discriminação de toda a humanidade que nos precedeu.

O homem que, não podendo falar nem tendo quem fale por ele, não está à altura de por em questão o que dizemos dele, está para nós como os mortos estão para os vivos. Mas tão logo nos damos conta de que esta analogia é algo mais que analogia, que ela traduz a relação real e efetiva que temos com os mortos, é justo perguntar se a exclusão que reduz metaforicamente os excluídos à condição de mortos não se funda numa prévia exclusão, literal e efetiva, dos mortos da assembléia dos falantes. Se não fôssemos surdos às vozes dos mortos, dificilmente o seríamos às vozes daqueles que reduzimos a uma condição similar à dos mortos. Se o afastamento físico total e definitivo não fosse suficiente para sufocar o grito dos homens, também não o seriam as barreiras de raça, de sexo, de crença, de nação.

Que importam no fim das contas, a discriminação e a exclusão de tal ou qual grupo, se o cronocentrismo de nossa cultura exclui e discrimina quase toda a humanidade? Não seria talvez excessivo perguntar se as discriminações parciais que este colóquio discute não são porventura expressões menores e localizadas de uma geral discriminação do homem mudo pelo homem falante. Dos ausentes pelos presentes. Dos mortos pelos vivos.

O primado do momento que passa sobre toda a história humana não é somente um erro de perspectiva, uma falta de realismo; ele é também o primado do eu sobre o outro, dos interesses imediatos sobre as exigências da razão e do amor ao próximo. De um próximo que um artifício cronocêntrico torna distante. Se em nossa vida pessoal o imediatismo está intimamente associado ao egoísmo e à repressão da consciência moral, porque não o estaria também no plano maior da história e dos milênios? Com tanto mais razão, as exclusões e discriminações não sendo senão outros nomes de uma espécie de egoísmo social, não é razoável pretender mover-lhes combate e ao mesmo tempo preservar ao abrigo de todo ataque esse egoísmo temporal que é o cronocentrismo.

NOTAS:

  1. “Lesplus exclus des exclus: Le Silence des morts comme modèle des vivants defendus de parler”, conferência no simpósio internacional Forms and Dynamics of Exclusion, UNESCO, Paris, 22-26 de junho de 1997. Tradução de Carla Vital.
  2. Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, 23a. ed., São Paulo, Saraiva, 1996, p. 51.
  3. Enrico Berti, Aristóteles no Século XX, trad. Dion Davi Macedo, São Paulo, Loyola, 1997.
  4. Deborah Black, “Le ‘syllogisme imaginatif’ dans la philosophie arabe: contribution médiévale à l’étude philosophique de la métaphore”, em M. A. Sinaceur (org.), Penser avec Aristote, Toulouse, Ères-UNESCO, 1991; Salim Kemal, “Aristotle’s Poetics in Avicenna’s Commentary”, Oxford Studies in Ancient Philosophy, VIII: 1990, 173-210.
  5. “O Antropólogo Antropófago: Considerações sobre o Relativismo”, conferência pronunciada na Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, a ser publicada proximamente pela Faculdade da Cidade Editora.
  6. Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições, 2a. edição, V, IX, §32: pp. 267-269. São Paulo, É Realizações, 2000. ISBN 85-88062-01-1. (Nota original, referente à 1a. edição: O Jardim das Aflições, IV, IX, §32: pp. 350-351.)

 

Comments

comments