Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 2 de agosto de 2007

A experiência me ensinou que, quando uma situação se torna confusa e incompreensível ao ponto de ter algo de sinistro, não se deve ir logo jogando a culpa no diabo antes de averiguar se não houve alguma mentira humana na origem da mixórdia toda. Como é da natureza da mentira ocultar-se a si própria, depois ocultar a ocultação e por fim apagar da memória todos os rastros da sua origem, não existe mentira isolada: há uma progressão geométrica de falsificações e aquilo que parecia uma toca de coelho acaba por se tornar uma cratera imensa, um abismo insondável.

Não que o diabo não tenha participação nenhuma na coisa, mas às vezes todo o seu trabalho consiste em inspirar a mentirinha inicial, deixando o resto da arquitetura abissal por conta da estupidez humana.

No caso brasileiro, a mentira começou com o silêncio da mídia em torno da existência do Foro de São Paulo. Quando dezenas de governantes, ministros de Estado, líderes guerrilheiros e chefes de gangues de narcotraficantes se reúnem em lugares anunciados de antemão e milhares de repórteres usualmente orgulhosos de seus dons investigativos não têm a mínima curiosidade de saber do que eles estão falando, a hipótese da mera coincidência de omissões preguiçosas deve ser afastada in limine como violação da lei das probabilidades. É claro, é patente, é insofismável que a classe jornalística e os donos de empresas de mídia, assim como todos os políticos de esquerda, são cúmplices conscientes do segredo. Mas, quando o segredo se desenvolve em proteção ostensiva dada pelas autoridades aos técnicos de guerrilha que treinam e dirigem quadrilhas de delinqüentes para a matança anual de cinqüenta mil pessoas, a manutenção da mentira e sua transformação em dogma se tornam necessidades absolutas para todos os envolvidos. Se os farsantes decidirem voltar atrás e revelar o que ocultavam, terão de assumir sua parcela de culpa em crimes inumeráveis. A culpa está aí, latente, e é preciso enterrá-la ainda mais fundo do que o fato inicial que lhe deu origem. Para isso é preciso falsificar toda a vida nacional, induzir a população inteira a viver uma situação hipotética, construída postiçamente como cenário real da sua vida. Não é de espantar que, nessas circunstâncias, o medo, a raiva e as suspeitas espouquem por toda parte, num festival de recriminações anárquicas que voam em todas as direções sem jamais acertar o alvo.

O fato é que não há praticamente, entre as lideranças nacionais – políticas, militares, empresariais, culturais e jornalísticas –, uma única que não carregue alguma dose de culpa por esse estado de psicose nacional. As exceções se tornam tanto mais honrosas quanto mais isoladas e, por isso mesmo, ineficazes no conjunto. Mesmo a voz possante da Associação Comercial de São Paulo acaba sendo abafada pela mais portentosa orquestra de falsificações e desconversas que já estreou no palco da loucura nacional. Nunca, na história do mundo, uma rede tão coesa de mentiras e omissões se manteve imune por tanto tempo às investidas da verdade, persistindo na obediência a um pacto diabólico a despeito das conseqüências catastróficas que ele dissemina. Nunca o apego à mentira foi tão geral e obstinado, nunca a persistência na farsa foi tão longe na sua disposição de encobrir seus próprios crimes com o sangue dos inocentes.

As elites falantes deste país, na sua quase totalidade, são criminosas até à medula. Não há castigo que não mereçam. O sofrimento brasileiro está apenas começando.

 

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