Abaixo a malícia: só quem confia vence
Entrevista com ALAIN PEYREFITTE
por OLAVO DE CARVALHO – Versão completa
NB – Esta entrevista saiu na revista Repúblicade julho de 1998, mas um tanto cortada para caber no espaço disponível. Por isto resolvi reproduzir aqui, por extenso, os ensinamentos que recebi, em Paris, de um dos homens mais inteligentes do mundo.
“Não existe mais que uma e uma só fórmula para fazer de um homem um homem autêntico: a fórmula que prescreve a ausência de toda fórmula. Nossos ancestrais tinham uma bela palavra, que resumia tudo: a confiança.” Franz ROSENZWEIG |
[Introdução]
A proverbial afeição dos franceses às revoluções e golpes de estado não impediu que, desse povo tão mal acomodado na ordem democrática nascessem, talvez em compensação, algumas das inteligências mais aptas a captar a essência da democracia e a diagnosticar os perigos que a ameaçam. O que não é de estranhar é que tais homens fossem tão pouco profetas em sua própria terra.
Dentre esses pregadores no deserto, o mais conhecido é Alexis de Tocqueville, o primeiro a observar, no seio da própria democracia americana nascente, a contradição até hoje irresolvida – e cada vez mais aguçada – entre igualdade e liberdade. Logo abaixo dele vem Frédéric Bastiat, pioneiro no diagnóstico da natureza voraz e tirânica do Estado moderno. Menos falado, porém altamente respeitado de quem o conhece, é Bertrand de Jouvenel, inteligência implacavelmente realista que destruiu o mito das liberdades crescentes, pondo em seu lugar a demonstração do crescimento ilimitado do poder, da distância cada vez maior entre governantes e governados.
Esses três pensadores têm em comum o pessimismo histórico, a apreensão de democratas sinceros que vêem a liberdade extinguir-se e, olhando em torno, não descobrem meios de defendê-la contra a marcha avassaladora do poder.
Mas este que vou lhes apresentar agora, se compartilha com eles o temor ante os perigos, destaca-se, surpreendentemente, pelo otimismo com que enxerga o futuro. Alain Peyrefitte não é, no entanto, nenhum sonhador. Basta ver os seus olhos para reparar que, por baixo do sorriso simpático, se esconde um observador temível, a quem só um tolo procuraria enganar.
O otimismo de Peyrefitte, além de bem contrabalançado por uma dose de ceticismo, é de um tipo diferente do habitual. Não se baseia somente na esperança, mas na simples constatação de um fato: a liberdade de decisão humana, que nenhum determinismo logrou jamais revogar, seja para instaurar em lugar dela a necessidade do mal, seja a fatalidade do bem crescente. Peyrefitte é otimista pela simples razão de que o pessimismo é uma ilusão deprimente baseada na presunção de já conhecermos o futuro. O futuro a Deus pertence, e Deus seria um verdadeiro idiota se criasse seres capazes de decisão sem deixar na mão deles ao menos uma parcela da responsabilidade por esse futuro. Peyrefitte é otimista porque entende que, ora mais, ora menos, é sempre possível agir. E quem vai provar que não?
Mas estou precipitando as conclusões. Devo dizer, primeiro, quem é Alain Peyrefitte. Membro da Academia Francesa, diplomata de carreira, estadista, historiador, cientista político, jornalista, foi colaborador, amigo e homem de confiança do general Charles de Gaulle por três décadas, deputado em todas as legislaturas da V República e várias vezes ministro: da Educação, da Justiça, do Interior, do Planejamento, da Cultura, da Pesquisa Científica. Preside hoje o conselho editorial do Figaro, ainda o mais poderoso diário francês. Seu pensamento social e político já foi objeto de muitas teses, artigos e congressos, inclusive no Institut de France, dos quais nenhuma notícia chegou a estas plagas.
O primeiro sinal de termos percebido a existência desse espírito extraordinário foi dado no ano passado pela Casa Jorge Editorial, que publicou O Império Imóvel ou O Choque dos Mundos, em tradução de Cylene Bittencourt. Mas, por fascinante que seja, esse relato da expedição de lorde McCartney à China em 1792, se tudo nos revela sobre o mal crônico de um Império paralisado pela suspeita de todos contra todos, não nos diz muito sobre sua própria ligação com as concepções mais gerais de seu autor sobre a natureza e o funcionamento da sociedade humana, das quais é a exemplificação fundada no estudo meticuloso de um caso particular. Por isso ou pela proverbial letargia que a acometeu desde há quatro décadas, a imprensa cultural nem sequer registrou a edição dessa obra-prima da ciência histórica, onde o rigor do método, em vez de ostentar-se na língua de chumbo do pedantismo universitário, se oculta elegantemente sob um estilo narrativo animado, pulsante e cinematográfico.
Coincidência ou não, o próprio autor não começou por expor suas concepções, mas por exemplificá-las num caso concreto, o do seu próprio país. Le Mal Français, publicado em 1976, tornou clássico o retrato da uma nação roída pela suspicácia, sempre em busca de um governo forte que a proteja de si mesma e de um líder golpista ou revolucionário que a proteja do governo forte. Les Chevaux du Lac Lagoda, em 1981, demonstrava as raízes ideológicas e culturais da criminalidade juvenil, que aqueles mesmos que as plantaram buscavam ocultar sob um discurso convencional contra o sistema econômico (já vimos esse filme, não vimos?). Nesses e em outros trabalhos, ora partindo do exemplo francês, ora do chinês (que conheceu de perto como chefe, em 1971, da primeira missão oficial do Ocidente ali admitida durante os anos da Revolução Cultural), Peyrefitte foi traçando o perfil histórico, sociológico, político e administrativo da “sociedade de desconfiança”, o Leviatã paralisado pela malícia e por dúvidas paranóicas a respeito de si mesmo.
Foi só em 1995 que a teoria subjacente a essas análises apareceu com todas as letras, primeiro numa explosiva série de conferências no Collège de France, Du “Miracle” en Économie, e logo em seguida na obra magna, La Societé de Confiance, publicada pelas Éditions Odile Jacob e imediatamente celebrada como acontecimento de primeira grandeza por Pierre Chaunu, Alain Touraine, Jacques Le Goff, Raymond Boudon e muitos outros. (Alertado pelo embaixador Meira Penna, li essa obra e convenci a Faculdade da Cidade a publicá-la em tradução – também de Cylene Bittencourt -, que estará nas livrarias numa das próximas semanas.)
A teoria começava por prosseguir as investigações célebres de Max Weber sobre capitalismo e protestantismo e por contestar seus resultados. O surto de progresso capitalista nos países protestantes, contemporaneamente freado nos católicos, não foi devido predominantemente a fatores religiosos, mas a fatores culturais mais amplos que determinaram a diferente atitude de católicos e protestantes ante a economia moderna. A diferença era radical: do lado católico, a desconfiança generalizada que clamava por mais controle, mais policiamento, mais burocracia, mais punições. Do outro, uma confiança pujante que estimulava a criatividade, a variedade, a iniciativa. Confiança, em primeiro lugar, dos homens uns nos outros: por que supor que o nosso próximo quer o nosso mal e não apenas, como todos nós, o seu próprio bem? Por que não acertarmos as coisas entre nós e ele, em vez de chamar um terceiro para nos policiar a todos? Eis a base de toda negociação, de todo contrato, de toda eficácia. De outro lado, confiança no poder que cada homem tem de decidir, de agir, de lutar por um destino melhor conforme seu próprio entendimento, livre de uma autoridade acachapante que imponha a todos a camisa-de-força de uma noção padronizada do “melhor”.
Essa diferença surge, primeiro, nas idéias, na fantasia, na cultura. Depois consolida-se em leis e costumes. Por fim, dá frutos na economia: riqueza, progresso, desenvolvimento.
O protestantismo contribuiu, sim, para esse resultado, mas menos por suas concepções teológicas e morais explícitas enfatizadas por Weber – predestinacionismo, ética da poupança – do que pelo simples fato de estimular a liberdade e a variedade, livre do peso excessivo de uma velha burocracia controladora. E se enquanto isso o catolicismo atrasava o desenvolvimento econômico em outras partes do mundo, também não foi por causa do conteúdo de sua fé, em si mesmo neutro economicamente, mas simplesmente porque a hierarquia, assustada, em vez de superar criativamente as oposições, se enrijeceu numa atitude paranoicamente defensiva que só pensava em mais controle, mais centralismo, mais burocracia. Em certos países o desenvolvimento econômico foi favorecido pela ausência de controles. Em outros, não foi apenas desfavorecido: foi detido, foi proibido, foi estrangulado no berço por autoridades que o confundiram, tragicamente, com os demônios que o cercavam. Na Espanha, em Portugal, na Itália e parcialmente na França, o desenvolvimento não foi nunca um inimigo da Igreja: foi o bode expiatório das culpas católicas e anticatólicas. Ao condená-lo, o catolicismo fez um tremendo mal a si mesmo, do qual procura agora redimir-se. Mas exagerando na expiação, cai no extremo oposto, a adesão aos progressismos de esquerda, que, como sempre acontece com os opostos, o leva de volta ao erro originário: o culto do centralismo inibidor, agora em versão socialista.
A tese é tão patente, tão óbvia, que o ouvinte não resiste a se perguntar: “Por que não pensei nisso antes?”
A própria tese responde: não pensamos nisso porque estávamos infectados de materialismo histórico, que nos punha na pista falsa. Buscávamos as causas econômicas primeiro e nos recusávamos obstinadamente a investigar outras hipóteses, mesmo quando a perseverança no dogma nos obrigava a apelar a explicações mutuamente contraditórias: a Inglaterra desenvolveu-se porque tinha carvão; o Japão, porque não tinha carvão. Como enfeitiçados, projetávamos em causas externas a responsabilidade de nossas ações, e não víamos em parte alguma a causa mais óbvia de tudo o que nos acontece: as decisões humanas, fundadas em crenças e valores.
O presente que a obra de Peyrefitte faz à humanidade é múltiplo e de uma riqueza incalculável: ensina-lhe as condições do desenvolvimento econômico, reúne os materiais históricos que as demonstram, desvela-lhe o único obstáculo real, que reside em sua própria alma, mostra-lhe os meios de superá-lo, alivia os antagonismos religiosos que a paralisam e, de quebra, liberta-a da mais opressiva e esclerosante de todas as obsessões: o materialismo histórico, o determinismo econômico.
Não há, nos meios intelectuais europeus, quem não tenha, mesmo a contragosto, alguma gratidão a esse desbravador da floresta das idéias. Só alguns americanos ainda se fazem um pouco de desdenhosos, inconformados talvez de que um latino tenha compreendido o capitalismo melhor que eles.
Se o Brasil for esperto, não há de empinar o narizinho, fazendo-se de superior, em vez de sentar e ouvir com humildade uma lição que é para o bem de todos e a felicidade geral das nações.
[Texto completo da entrevista]
CONFIANÇA: É UMA BELA PALAVRA,
TALVEZ A MAIS BELA, JUSTAMENTE PORQUE
NÃO É SOMENTE UMA PALAVRA
– Um de seus primeiros ensaios já trazia o título O Sentimento de Confiança. Foi publicado em 1947. Você teve experiências pessoais, de infância ou de juventude, que despertassem sua atenção para a importância decisiva da confiança nas relações humanas?
A idéia de que a confiança é a condição primeira de todo desenvolvimento humano não é uma hipótese escolar. Portanto ela não saiu do meu cérebro como Atenas nasceu inteiramente armada do cérebro de Zeus. E não se trata de uma experiência privilegiada, reservada a alguns. A importância da confiança nas relações humanas é tal que, de um modo ou de outro, todo mundo se defronta com ela desde a primeira infância. Desde que que vem ao mundo, o homenzinho se vê confiado a seus pais, a educadores, a médicos. A confiança que lhe dão ou lhe recusam, aquela que ele ganha em si mesmo, aquela que ele concede aos outros, em suma, o clima de desconfiança ou de confiança no qual ele evolui constitui o elemento vital do seu desenvolvimento. O aprendizado da autonomia e da responsabilidade é a descoberta paralela da autoconfiança e da confiabilidade do outro. Essa descoberta, é claro, não é necessariamente explícita. Alguém é consciente do ar que respira? A confiança, como o ar, é de tal maneira vital que só notamos sua importância quando ela começa a faltar. A desconfiança tinha envenenado o fim da IIIa. República. A França traía a confiança de seus compatriotas, mas também a de seus aliados. Foi talvez a falência do meu país, surdo ao apelo tchecoslovaco, e a falsa confiança inspirada nos acordos de Munique que me revelaram a importância capital da confiança.
Sem dúvida, meus pais, professores que amavam apaixonadamente seu ofício e seus alunos, haviam despertado em mim a confiança nas virtudes do trabalho, da lealdade, da constância. Mas creio de fato que foram os dramas da nossa nação que me serviram de despertador. E, depois, houve de Gaulle: aquele que forçou o destino por uma confiança sobre-humana na França e na liberdade, aquele que, no pior momento do desastre, acreditou na inversão da derrota em vitória.
Pergunto-me de Franz Rosenzweig, que você cita, não buscou sua concepção da confiança justamente no inferno das trincheiras, por uma espécie se sobressalto salutar, ao ver que o humano, sob a chuva de bombas, se via reduzido a uma matrícula obediente a ordens sem apelo e fórmulas inautênticas. Ora, a confiança não é uma fórmula vazia: é um gesto unido à palavra, um ponto de apoio e de partida, ao mesmo tempo estável e dinâmico. Confiança: é uma bela palavra, talvez a mais bela, justamente porque não é somente uma palavra.
TODA POLÍTICA DIGNA DO NOME
EXIGE CONFIANÇA
NAQUELES QUE A DIRIGEM
– Carl Schmitt definia a política como a confrontação amigo-inimigo, acima de todos os valores que lhe servissem de pretexto. Sob esta perspectiva, uma “política de confiança” não poderia ser senão uma contradição de termos. Como você define a política?
Carl Schmitt exaltou a confrontação amigo-inimigo a um ponto que me parece inaceitável. Veja-o citar Saint-Just: “Entre o povo e seus inimigos, nada há em comum, exceto a glória.” Para Carl Schmitt, o mal é irremediável: a confrontação armada é ao mesmo tempo uma razão e um meio de viver. Ele chegou a escrever, em 1947, quando, na prisão, aguardava um eventual julgamento em Nuremberg: “Infeliz de quem não tem inimigo.”
Schmitt fez da guerra uma fatalidade, não no sentido maltusiano onde “uma boa guerra nos viria a calhar”, mas num sentido providencial, quase teológico. Foi na Teologia Política que ele escreveu: “Não se poderia eliminar do mundo a inimizade entre os homens proibindo-se as guerras moda antiga entre Estados, propagando uma revolução mundial e tentando transformar a política mundial em polícia do mundo.” Sem dúvida ele tinha em vista o fracasso da Sociedade das Nações e de seu pacifismo irresponsável. Mas parece-me inteiramente perverso pensar a política internacional em termos necessariamente conflituais.
Defino a política como a mobilização das energias individuais em torno de um objetivo comum. Toda política digna deste nome supõe uma confiança naqueles que a dirigem. Uma política internacional não merece o nome de política se não visa a uma forma de cooperação em vista de um objetivo comum e proveitoso para todos – o que não exclui de maneira alguma uma sã concorrência no manejo dos meios de atingi-lo. De outra maneira, a política não é senão uma guerra larvada, e a guerra, segundo o dito de Clausewitz, a continuação da política por outros meios – continuação inevitável e mesmo, em si, necessária do ponto de vista de Schmitt.
O VERDADEIRO LIAME POLÍTICO
É O DA CONFIANÇA-ESPERANÇA,
A CONSTRUÇÃO DE UMA OBRA COMUM
– Ainda sob esse ponto de vista, Hobbes dizia que o Estado nascera do medo, ou, o que dá na mesma, da desconfiança. Hobbes enganou-se ou o advento desse fenômeno novo chamado “desenvolvimento” traz uma mudança na natureza mesma do Estado?
Carl Schmitt jamais escondeu sua admiração por Hobbes. Em A Noção do Político, ele o chama “um grande espírito político” e proclama sua adesão à concepção hobbesiana de um estado de natureza que conduz à guerra de todos contra todos: bellum omnium contra omnes. O raciocínio de Hobbes repousa sobre dois princípios, cujo desenvolvimento Schmitt admirava: 1o., cada um tem um direito ilimitado em tudo o que ele deseja; 2o., os homens têm uma inclinação natural a prejudicar-se uns aos outros.
Daí resultam “suspeitas e desconfianças contínuas” (De Cive, I:XII), donde a guerra perpétua. Só o medo de morrer (timor mortis), o temor pelo próprio corpo (bodily fear) impelem os homens ao desarmamento e à conclusão de um pacto. Hobbes pretende que desse pacto possa nascer uma confiança mútua. Mas ele reconhece a precariedade dela. A confiança, para ele, não passa de uma desconfiança desarmada. É confiança por deficiência, porque não há mais nada a temer.
O verdadeiro liame político é o da confiança-esperança, a construção de uma obra comum, o desenvolvimento de um empreendimento concertado, no qual os atores têm um sentimento de ganhar, e não somente de salvar a pele. O pressuposto da doutrina de Hobbes é sem dúvida a idéia de penúria relativa, que obriga os homens a pactuar se não quiserem se matar uns aos outros. Mas o verdadeiro móvel da associação humana deve ser, como você o sugere, a esperança de um desenvolvimento, de um aumento dos recursos e dos serviços, graças à cooperação contratual de iniciativas livres, inovadoras e responsáveis. É mais para o lado de Locke que para o de Hobbes que se encontrarão os fundamentos de uma política de confiança.
É SEMPRE DOS INDIVÍDUOS QUE
SE FAZ ABSTRAÇÃO, PARA AFOGÁ-LOS
NUMA ESTATÍSTICA GERAL
– Aquele que teve a coragem de enfatizar a ação do indivíduo na produção da História não pode senão enfocar as “causas” e as “leis” da História como uma espécie de ídolo ao qual os homens atribuem magicamente a autoria de suas próprias ações. Você está de acordo com Eric Voegelin quando ele diz que o hegelianismo e o marxismo são formas de “magia negra”, uma auto-alienação dos poderes do homem às potências abstratas?
De todos os cultos destrutivos, o mais perverso é o culto da abstração. E é sempre dos indivíduos que se faz abstração, para afogá-los numa estatística geral, numa configuração de conjunto, numa análise estrutural. Não nego os serviços prestados pela história serial, pela história quantitativa, pela avaliação estatística. Todas essas técnicas permitem afinar a descrição dos fenômenos sociais e econômicos. Mas não fornecem a explicação deles. Nem o advento do Espírito Absoluto, nem o movimento do conceito, nem a luta de classes, nem a lei da baixa tendencial da taxa de lucro explicam o que quer que seja.
Marx pretendia ter recolocado em pé a dialética hegeliana, desembaraçada da sua ganga mística. E, no entanto, a superstição teórica não é menor em Marx que em Hegel. Lembre-se, por exemplo, de que a expropriação da burguesia, que explorou o trabalhador independente, é concebida como uma “negação da negação” e se produz, segundo Marx, “com a mesma necessidade que preside às metamorfoses da natureza”. Não estou seguro de que Hegel teria investido nesse necessitarismo tanto quanto Marx. Não esqueçamos que Hegel era um grande leitor de Adam Smith. Suas Lições sobre a Filosofia da História desvelam, no meio das astúcias intermináveis da razão, a audaciosa iniciativa do indivíduo humano.
– Em A Sociedade de Confiança, você disse que a encíclica Mater et Magistra trouxe o reconhecimento da iniciativa individual na promoção do desenvolvimento. Por que então o pontificado de João XXIII e o Concílio Vaticano II acabaram por favorecer de tal modo as correntes esquerdistas e socialistas da Igreja?
Na Mater et Magistra, afirma-se, principalmente, que tudo no mundo econômico resulta da iniciativa pessoal dos particulares, quer ajam individualmente ou associados de diversas maneiras para a busca de interesses comuns. Sua exaltação do “gênio criador dos indivíduos” contrastava evidentemente com o modelo estruturalista que então estava no apogeu.
Mas, como o magistério mencionava o princípio da destinação universal dos bens, e como ele condenava a injusta repartição dos meios de produção, a reivindicação da “iniciativa pessoal e autônoma em matéria econômica” acabou sendo obliterada em proveito de uma teologia da libertação que consistia, de fato, em libertar-se de toda teologia. A Igreja julgou inútil reiterar sua condenação do materialismo histórico. Mas não se tratava de um silêncio de aprovação. Evidentemente, os apóstolos do marxismo cristão compreenderam de outra forma: “Quem cala, consente.” E a púrpura cardinalícia foi enrolada à força sob a bandeira vermelha.
O MATERIALISMO DAS NEUROCIÊNCIAS
INDICA QUE OS CIENTISTAS
TÊM MEDO DA INICIATIVA INDIVIDUAL.
– O materialismo histórico, desmoralizado enquanto teoria, permanece muito forte enquanto pressuposto inconsciente entre os intelectuais. Na sua opinião, isso ainda vai durar?
É espantoso ver o materialismo sobreviver aos desmentidos sangrentos que lhe são infligidos pela história e pela ruína material das sociedades que ele construiu, quer dizer, destruiu. Mas o prestígio do materialismo ainda está intacto entre os intelectuais. Seu poder simplificador continua a fascinar os espíritos: ele é sedutor porque é redutor. Certamente, ninguém mais ousa falar abertamente de forças produtivas e de relações de produção, das contradições dialéticas do capital e da luta de classes. Mas, na construção do mercado mundial, não se fala senão de estruturas, de instituições, de uniformização. Similarmente, o desenvolvimento das neurociências numa direção estritamente materialista indica o medo que os cientistas têm da capacidade de iniciativa do indivíduo. Queira-se ou não, são os homens que fazem a história, e não ela que os faz. Mas uma moda intelectual, corrente nas ciências humanas, considera esta asserção uma heresia. Se nos abandonássemos a essa moda, essas ciências não teriam de humanas senão o nome. Deveríamos chamá-las ciências da matéria humana.
Parece que Bergson explicou muito bem essa tendência da inteligência humana à rigidez geométrica, essa predileção pelos organogramas impessoais, essa recaída da energia espiritual na inércia material.
O MANIQUEÍSMO
AINDA TEM
BELOS DIAS PELA FRENTE
– A força persuasiva do materialismo histórico sendo devida em grande parte à impregnação do imaginário coletivo pelas artes e espetáculos (o “Titanic” acaba de explicar pela luta de classes o naufrágio da civilização), não lhe parece que uma nova visão das coisas permanecerá ineficaz enquanto não influenciar a mentalidade dos artistas?
Você acredita mesmo que O Encouraçado Potemkin ou os Coros do Exército Vermelho tenham contribuído para impregnar nos espíritos as teses do materialismo histórico? A última cena do Potemkin exalta a contingência da livre adesão fraternal à Revolução. Quanto aos Coros do Exército Vermelho, eles cantam os feitos de Tchpaiev ao transpor o Ural, ou os de Kutusov diante dos exércitos de Napoleão. Eles se exibem no mundo inteiro: são uma das raras instituições que sobreviveram ao regime comunista. São belas vozes de baixos em uniforme: mas não são argumentos em favor da dialética do marxismo-leninismo. Creio antes que a força persuasiva do materialismo histórico está em todos os espíritos, em estado de latência, Ela exprime a segurança de um esquema inelutável, o culto da ciência que se pretende “pura”, o mito da infalibilidade, o medo da inovação, e, no fim das contas, a tendência à desconfiança. Não nego que cineastas e romancistas se deleitam nos enredos da luta de classes. Mas será por culpa deles que o público ainda os aprecia? O maniqueísmo ainda tem belos dias pela frente.
SOMOS TODOS
MATERIALISTAS HISTÓRICOS
INCONSCIENTES
– O liberalismo, vencedor no campo econômico, não corre o risco de naufragar se a cultura permanecer sob a hegemonia socialista? O liberalismo não estará caindo vítima de um materialismo histórico inconsciente?
Sua sugestão é sutil e subscrevo-a de bom grado. Somos todos, em diversos graus, materialistas históricos inconscientes. Aderimos espontaneamente, mesmo quando somos persuadidos do contrário, à tese do primado da infra-estrutura econômica e material sobre a superestrutura cultural e espiritual. Esta tendência inata ao fatalismo oferece uma segurança intelectual e um álibi contra a exigência de responsabilidade e o desafio da adaptação contínua.
Novamente, a hegemonia cultural socialista não é, em si mesma, uma fatalidade. É preciso crer que o público das democracias encontra alguma satisfação nela e alivia, por esse meio, um forte sentimento de culpabilidade em relação às responsabilidades que não foram assumidas. Privada de seu inimigo hereditário (o comunismo), a economia de mercado deve gerir sozinha a criação e a partilha de riquezas. Ela deve enfrentar o desafio de um desenvolvimento humano e eqüitativo, fundado em iniciativas livres e competitivas.
O LIBERALISMO ECONÔMICO
NÃO PODE SOBREVIVER
SEM UM LIBERALISMO CULTURAL
– Na mesma linha de pensamento: não será um erro trágico supor que a liberalização da economia seja a condição necessária e suficiente de todas as outras liberdades? Não é concebível que um Estado possa ser liberal em economia e ditatorial e tudo o mais? Por exemplo, nos Estados Unidos o liberalismo é hegemônico em economia, o estatismo recua, mas é crescente a intervenção do Estado na vida privada dos cidadãos.
O estruturalismo de inspiração marxista formulou, na esteira de Ernest Labrousse, uma nova “lei dos três estados”: o Econômico comanda o Social, e o Social comanda o Mental. Se fosse assim, bastaria liberalizar a economia para liberalizar a sociedade e a cultura. Você cita, com razão, o exemplo dos Estados Unidos.
Pode-se dizer que os Estados Unidos são “libertários” (libertarian) no plano econômico, mas “comunitários” (communitarian) no plano social. Tudo se passa como se o extremo desregramento do emprego, dos preços, dos salários fosse compensado pelo acréscimo de controle social.
A profecia de Tocqueville confirma-se portanto com uma precisão espantosa. Como atores da vida econômica, os americanos “giram sem repouso em torno de si mesmos para obter pequenos e vulgares prazeres… Cada um deles, retirado num canto, é como que estranho ao destino de todos os outros: seus filhos e seus amigos particulares formam, para ele, toda a espécie humana. Quanto às privações por que passam seus concidadãos, ele está ao lado deles, mas não os vê”. Em contrapartida, como cidadãos dos Estados Unidos, eles estão submetidos a um “poder imenso e tutelar, que se encarrega sozinho de assegurar o seu poder e velar sobre a sua sorte, não buscando senão fixá-los irrevogavelmente na infância” (Da Democracia na América, T. II, parte 4, cap. 6).
Na China, temos outro caso do lema “Economia primeiro”, para evitar que a expressão cultural e psicológica das frustrações materiais acumuladas em quarenta anos de comunismo comprometa a passagem progressiva e prudente a uma liberalização cultural. As “Cem Flores” tornaram os chineses prudentes. Mas, ao contrário do que se passa nos Estados Unidos, o controle social drástico vai afrouxando progressivamente, ao passo que nos Estados Unidos assistimos a uma regressão quase infantil.
Em todos os casos, o liberalismo econômico não pode se expandir e sobreviver sem um liberalismo cultural e psicológico, isto é, sem uma cultura e um clima de confiança: confiança na competição de iniciativas responsáveis, confiança na mobilidade intelectual, geográfica, profissional, aposta na adaptação, na inovação, nas trocas.
A IDEOLOGIA GAY
EXPRIME UMA DESCONFIANÇA
ANTE O OUTRO SEXO
– As novas correntes de opinião que cresceram depois da última Guerra Mundial (feminismo, negritude, ideologia gay, etc.) não são de natureza a favorecer antes a desconfiança do que a confiança?
Essas novas correntes de opinião nasceram do choque de duas guerras mundiais. A emancipação das mulheres, por exemplo, começou no dia seguinte da Primeira Guerra: enfermeiras e operárias do armamento não queriam voltar para casa como se nada tivesse acontecido. Do mesmo modo, as colônias africanas solicitadas pelo esforço de guerra tomaram consciência de que seus “deveres” implicavam o reconhecimento de “direitos”. A descolonização é o produto das duas guerras.
Mas, ao lado dessas justas reivindicações, ou no seu seio mesmo, exprimem-se tendências ao encolhimento, à vontade de cada um ser ele mesmo sem o outro, de ficar “entre os seus”, sem mistura, sem capacidade de integração, sem esforço de adaptação. É uma reação comparável à regressão endogâmica que afeta certas sociedades “primitivas”.
Pode se perguntar se a ideologia gay que se diz tolerante, aberta, etc., não exprime, em muitos casos, uma desconfiança ante o outro sexo, um medo da diferença sexual. A verdadeira confiança, em contrapartida, não é nem confinamento em si nem fusão e perda de si.
TANTO FAZ MATAR INOCENTES
EM NOME DO PROLETARIADO
OU DA RAÇA SUPERIOR
– Uma coisa que me espantou muito desde que cheguei à França na semana passada, é que todo o mundo parece associar muito facilmente o Front Nacional do Sr. Le Pen à história dos crimes nazistas, enquanto se obstina em não fazer nenhuma associação análoga entre a extrema esquerda e os crimes incomparavelmente maiores do regime comunista na URSS, na China, etc. Por que é tão fácil ser esquerdista sem jamais ser responsabilizado pelos males do stalinismo enquanto todo o homem de direita está sempre sob o risco de ser associado ao neofascismo? Por que é tão fácil atrair a desconfiança contra os homens de direita?
A fascinação dos intelectuais pela ideologia marxista introduziu dois pesos e duas medidas na avaliação dos crimes contra a humanidade. Fazem como se os milhões de homicídios perpetrados pela União Soviética não fossem da mesma natureza que os cometidos pela Alemanha nazista.
Torturar e matar um inocente em nome do proletariado ou da raça superior, não deveria ter nenhuma diferença. Parodiando uma fórmula célebre, poder-se-ia dizer que mais vale errar com Stalin que com Hitler. No entanto, a biologia ariana e a biologia soviética são imposturas do mesmo nível. E mesmo supondo-se que o marxismo-leninismo fosse “cientificamente superior”, nenhum saber, nenhum programa justifica a eliminação física ou moral de um só indivíduo. É tempo, como o diz Hannah Arendt, de compreender que os extremistas de direita e de esquerda estão solidários no crime.
Voltando aos sobressaltos da política francesa, deve-se sublinhar a evidente má-fé de uma esquerda que se faz de virgem assustada pelas “vozes do Front Nacional”, quando ninguém se comove com as vozes do PC, sem falar da extrema esquerda ainda mais dura. Reconheçamos, todavia, que as declarações turvas, talvez perversas do presidente do FN sobre as desigualdades das raças, sobre o “detalhe” dos crematórios, a posição flutuante que ele mantém entre o legítimo controle da imigração e um desencadeamento de funções xenófobas, tudo isto favorece a associação do FN à história dos crimes nazistas.
– De modo mais geral: se a direita aceita renunciar a toda aliança com a extrema direita enquanto a esquerda conserva seu direito de fazer alianças com quem quer que seja (até mesmo com a extrema direita), a direita não estará em vias de cometer suicídio? Que será da política francesa amanhã, na sua opinião?
As eleições regionais e cantonais de 1998 se desenrolaram numa atmosfera de armadilhas e de chantagem. A esquerda chegou a intimidar a direita e a lhe ditar seu comportamento face aos eleitores. Ela pretendeu dar lições de republicanismo brandindo o FN como um espantalho (ela, que sempre traficou o modo de escrutínio para dividir a direita, favorecendo o FN). É urgente sair dessa lógica das alianças e dos casamentos de ocasião, desses anátemas republicanos e dessas excomunhões.
As direitas podem e devem se reunir. Elas são majoritárias no país. Elas devem reconquistar para um programa de direita toda a sua base eleitoral, incluindo os eleitores do FN, que não pertencem nem à esquerda que se serve deles para desacreditar a direita, nem à direita clássica que precisa de seus votos. Os eleitores que votaram no FN só pertencem a si mesmos. Se eles sucumbem às sereias do racismo e da xenofobia, não queremos o seu apoio. Se eles aceitam uma política de direita que respeite os direitos humanos, devemos propô-la. A exasperação deles é tão respeitável quanto a cólera dos partidários da Liga Comunista Revolucionária. A única saída para a política francesa é suspender o anátema que pesa sobre os eleitores do FN e apresentar-lhes uma verdadeira política de direita, sem ódio nem vingança, uma política de exigência, de respeito, de solidariedade e de empreendimento, em suma: uma sociedade de confiança.
COMUNISMO E NAZISMO
EXPLORARAM O RESSENTIMENTO
DAS MINORIAS ÉTNICAS
– A confiança não terá entre seus pressupostos indispensáveis a unidade ou a coerência da cultura, isto é, dos sentimentos e valores? Como você enfoca uma política de confiança nas condições do “multiculturalismo”?
A confiança é ao mesmo tempo causa e efeito da coesão cultural. Sem língua comum, sem valores compartilhados, sem pontos de referência coletivos, nada de confiança. Mas, sem confiança, os pontos de referência desabam, os valores divergem em função de interesses particulares. A língua mesma cessa de ser um instrumento de transmissão e de coesão, para se tornar um critério de segregação, talvez de exclusão. Ela era uma via de comunicação: torna-se uma barreira. Nossos sociólogos descreveram esse fenômeno de esclerose, ao qual eles próprios cederam. Em Ce Que Parler Veut Dire ou em La Réproduction, Pierre Bourdieu pôs em evidência o papel discriminante dos usos lingüísticos, mas o fez numa língua que, ela mesma, raramente é acessível ao comum dos mortais…
Ele deveria ter tirado daí a conclusão que se impõe: a perda, num povo, de sua identidade nacional, constitui uma ameaça à indispensável confiança social. As experiências de bilingüismo oficial mostraram que não se troca de cultura como se troca de camisa.
Goethe dizia que quem não conhece língua estrangeira não conhece verdadeiramente a língua materna. Creio nisso também. Mas o contato e o intercâmbio com o outro não implicam a fusão, a intercambiabilidade, a indiferenciação. Aliás, o universalismo forçado prepara o leito dos separatismos, das reivindicações agressivas, como o mostraram as ex-federações das Repúblicas socialistas.
Não esqueçamos que Stalin começou sua funesta carreira como comissário das nacionalidades, nem que o regime nazi explorou sistematicamente as frustrações das minorias étnicas.
As etnias são como o Etna. Parecem ter perdido todo caráter vital, e sua atividade parece reduzir-se a alguns números folclóricos, sobrevivências de um longínquo passado de erupções e de conflitos. Mas, tente-se extinguir essas manifestações de superfície, e elas voltam com toda a força, vomitando lavas ardentes. O cosmopolitismo, quando perde o respeito pela alma dos povos, parece-se com um edifício construído sobre a boca de um vulcão. O concerto das nações deve permanecer uma polifonia, onde muitas vozes, de timbres variados, se juntam e se superpõem em ritmos diferentes mas harmonizados, onde os refrões e as coplas se respondem de parte a outra. Uma monotonia forçada engendraria a dissonância e a discórdia. O uníssono forçado produz a desunião.
É preciso portanto levar a sério o multiculturalismo. Longe de ser um obstáculo que se deve pulverizar, ele poderia bem constituir um ponto de apoio necessário à Organização das Nações Unidas, como o pressentiu Claude Lévi-Strauss. Unidas não quer dizer uniformes, nem reduzidas ao idêntico. O mito de uma identidade universal revela-se tão perigoso quanto a cultura sistemática dos particularismos locais.
Ninguém detém o monopólio do humano, e sobretudo não a detém nenhuma instituição que pretenda representar as aspirações de todos os homens, sem pedir a opinião deles.
A NOVA ORDEM MUNDIAL:
BUROCRACIA EM CIMA,
CAOS E BANDITISMO EM BAIXO
– Num mundo em que as organizações criminosas como a máfia russa expandem por toda parte uma atmosfera de segredo e de conspiração, enquanto por outro lado vai se constituindo algo como um Estado mundial, ou ao menos uma polícia global para enfrentá-las, os fatores de desconfiança não tendem a se tornar incomparavelmente mais fortes que os fatores de confiança? Como você enfoca uma sociedade de confiança em escala mundial?
A nova ordem mundial arrisca muito parecer-se a um edifício muito instável. Na superfície e em altura, uma burocracia universalista segura da exatidão de seus planos. Mas, nos porões do edifício, uma rede subterrânea de lutas de influências, de mercados clandestinos.
A única alternativa ao desenvolvimento do banditismo é a aplicação vigilante do princípio de subsidiariedade; a recusa de concentrar a organização da sociedade, das trocas, dos preços agrícolas, a um nível muito elevado. A confiança é vivida na relação bilateral de troca de bens e de serviços, no respeito das especificidades locais. Ela não se decreta pelo alto, pois a confiança não se ordena. É ela que ordena tudo.
É a partir de micro-sociedades de confiança – empresas, associações culturais, grupamentos de interesses econômicos, que se edifica uma sociedade de confiança em escala mundial – e não ao inverso.