Por Alceu Garcia


Maio de 2002

 

Incluí o endereço do jornalista Alberto Dines na lista de e-mails pela qual divulgo os meus artigos porque, embora discordando em geral de suas opiniões, admiro a qualidade literária de seus textos e também porque tenho a pretensão de suscitar discussões com quem eu sei que defende idéias diferentes das minhas. O ilustre jornalista presumiu que o meu objetivo com a remessa dos textos fosse vê-los publicados no site Observatório da Imprensa (www.observatoriodaimprensa.com.br), dirigido por ele, tendo eu explicado que não era essa a minha intenção. Após uma cordial troca de e-mails, Dines polidamente solicitou que seu endereço fosse excluído da lista, o que foi feito imediatamente. O episódio despertou a minha curiosidade a respeito da linha editorial e outros aspectos desse Observatório, que até onde sei goza de razoável prestígio e influência nos meios jornalísticos.O Observatório da Imprensa é ele mesmo um periódico de imprensa, com edições semanais. Conta com uma eficiente e competente equipe de profissionais, a começar pelo Editor, o experiente e consagrado Alberto Dines, e com ampla rede de colaboradores. Malgrado não fique claro qual é a fonte dos recursos necessários ao custeio de um projeto indubitavelmente caro, consta que ele é vinculado ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp, a universidade pública estadual de Campinas – SP. Salvo melhor juízo, é razoável deduzir que o Observatório é financiado com verbas estatais, ou seja, pelo contribuinte.

Seria interessante se a ocorrência ou não de financiamento estatal fosse esclarecida pelos jornalistas do Observatório, que é definido pelos próprios como uma “entidade civil, não-governamental, não-corporativa e não-partidária”. Afinal, não é nada demais esperar de um órgão informativo uma informação de caráter elementar sobre ela mesma. Seria estranho que uma instituição que se diz não-governamental vivesse do dinheiro que o governo extrai compulsoriamente dos cidadãos mediante impostos. Se é esse o caso, fica anotada desde já a contradição e invocada uma objeção de ordem moral: o contribuinte estaria sendo obrigado a custear uma empreitada jornalística, sem sequer saber que a está custeando, e consequentemente privado do direito de escolher entre financiá-la voluntariamente ou não.

Registrada essa dúvida, passemos a observar que tipo de missão o Observatório se propôs a cumprir. Diz-se que seu objetivo é acompanhar o desempenho da imprensa brasileira, funcionando “como um fórum permanente onde os usuários da mídia – leitores, ouvintes e telespectadores -, organizados em associações desvinculadas do estabelecimento jornalístico, poderão manifestar-se e participar ativamente num processo no qual, até agora, desempenhavam o papel de agentes passivos.”

Faltou especificar nessa pretensiosa declaração de intenções que nem todos os “leitores, ouvintes e telespectadores” poderão “participar ativamente” desse processo, mas somente aqueles cuja ideologia passar pelo crivo da instituição. Afinal, o próprio editor Alberto Dines recusou a publicação dos meus artigos no Observatório – publicação não oferecida, frise-se – pelo motivo de que não combinavam com a filosofia adotada pelo periódico. Longe de mim questionar o direito de uma sociedade de jornalistas publicar apenas material afinado com a sua própria linha editorial. Porém, seria bem mais honesto que isso ficasse bem claro. Do jeito que está, a manifestação de pluralismo absoluto resvala para a propaganda enganosa – o que contradiz os princípios éticos que ostensivamente regem a publicação.

E para que um observatório da imprensa? Deixemos que o próprio responda com suas palavras: “No caso da mídia, a cidadania foi convertida num conjunto de consumidores, ficticiamente vocalizados por pesquisas de opinião pública que empregam metodologia quantitativa, necessariamente redutora, e com pautas alheias aos reais interesses e necessidades dos opinadores.” Pelo que se pode inferir da fraseologia obscura, a direção do Observatório vislumbra algum tipo de incompatibilidade entre o papel das pessoas como cidadãs e como consumidoras. Não seria lícito esperar que essa incompatibilidade fosse especificada? Por outro lado, a condenação genérica à “metodologia quantitativa” redutora, sem que se ofereça alternativas de “vocalização”, carece de objetividade, pecado grave para tão excelso grupo de especialistas em objetividade. Por fim, parece que os diretores do periódico estão reclamando de seus patrões nas empresas particulares de jornalismo, por supostamente não lhes permitem que, como “opinadores”, expressem seus reais interesses e necessidades. Curiosa queixa, vez que, para a empresa privada, é vital priorizar os interesses e necessidades dos consumidores de seus produtos, nesse caso os seus leitores. São os consumidores de jornalismo que indiretamente pautam o noticiário, pois se este não interessar a um número suficiente de pessoas, a empresa quebra. Voltarei a esse ponto.

Mas voltemos ao que dizem os nossos catões midiáticos: “Os meios de comunicação de massa são majoritariamente produzidos por empresas privadas cujas decisões atendem legitimamente aos desígnios de seus acionistas ou representantes.” Tradução: a empresa jornalística particular só divulga aquilo que atende aos “desígnios de seus acionistas ou representantes”. Isso é uma mentira deslavada. Essas empresas são forçadas, pela própria natureza da ordem de mercado, a publicar material que agrade os desígnios de seus consumidores. E, de todo modo, o que impede que esses indignados “opinadores” constituam suas próprias empresas de jornalismo, publicando assim apenas o que lhes agradar? Talvez porque somente quando se consegue uma bocada nos subsídios estatais isso seja possível sem correr riscos, posto que o consumidor é eliminado da equação, substituído pela figura do contribuinte, aquele cujo papel exclusivo é simplesmente pagar e não bufar.

Prossegue o Observatório: “Mas o produto jornalístico é, inquestionavelmente, um serviço público, com garantias e privilégios específicos previstos em vários artigos da Carta Magna, o que pressupõe imperiosas contrapartidas em matéria de deveres e responsabilidades sociais.” A refutação da premissa falsa do parágrafo anterior invalida igualmente a conclusão mal-disfarçada de que o “produto jornalístico” deve ser controlado, quiçá monopolizado, pelo Estado. Os limites das atividades de imprensa, como ocorre com qualquer atividade, são as leis gerais que protegem o direito individual à vida, à liberdade, à propriedade e à honra. Será difícil prever que espécie de imprensa teríamos se coubesse ao Estado – rectius: aos grupos que o controlam – definir o que são esses tais “deveres e responsabilidades sociais” do “produto jornalístico”? Quem pensou em “imprensa cubana” ganhou um doce.

Mas continuemos com nossas observações. Diz mais o observatório que “Num momento em que o debate ideológico confina-se à falsa questão das dimensões e atributos do Estado, é indispensável compreender as múltiplas convocações para que se aumente significativamente a atuação da Sociedade Civil, que não pode continuar reduzida a um conjunto de siglas de prestígio ou, no caso, minimizada como a combinação dos vários segmentos do mercado consumidor de informações.” Alguém pode ter a bondade de explicar porque as dimensões e atributos do Estado são uma “falsa questão”?! Será indiferente aos cidadãos que o governo seja proprietário de tudo ou que tenha o poder de se controlar todos os aspectos da existência individual? Penso que é exatamente o contrário; poucas questões são mais fundamentais do que essa. A luta contra a exorbitância do poder político é um elemento presente em toda a História Ocidental. Como é possível que jornalistas tão bem informados ignorem a tragédia totalitária que afetou tão desastrosamente a humanidade há tão pouco tempo? Ouso cogitar que quem afirma que a dimensão do poder político é uma “falsa questão” está consciente ou inconscientemente à serviço de quem almeja o poder político absoluto.

Para finalizar, assevera a direção do Observatório que “a Sociedade Civil deve abranger sucessivos níveis de monitoração e atuação, de forma a diminuir a distância entre os poderes e a cidadania, convertendo-se ela própria numa instância. No caso dos meios de comunicação de massa, o Observatório da Imprensa propõe-se a funcionar como um atento mediador entre a mídia e os mediados, preenchendo o nosso “espaço social”, até agora praticamente vazio.” Afora essa persistente e inquietante alusão ao vago conceito de “sociedade civil”, cabe opor, mutatis mutandis, a essa tese o argumento do terceiro homem com que Aristóteles criticou a teoria das idéias de Platão. Pois se o Observatório funciona como mediador entre a mídia e os mediados, quem funcionará como mediador entre o Observatório e a mídia e os mediados? Em outras palavras, com que autoridade esse pessoal se propõe a exercer essa missão?

Esquadrinhando as múltiplas edições do Observatório fica evidente que se trata de uma órgão monopolizado pela esquerda, sobretudo a esquerda mais radical, petista. Nele não há lugar para opiniões de outros quadrantes político-ideológicos. Logo, as pretensões pluralistas do periódico e a sua invocação de neutralidade ficam invalidadas pela sua própria atuação. Tremenda contradição existencial e incoerência axiológica. Que fique claro que eu nada tenho a opor que jornalistas de esquerda se organizem para criticar a imprensa como bem entendam. O que é inaceitável, creio, é apresentar como neutras e objetivas posições manifestamente tendenciosas e parciais.

Resumindo minhas observações, pois, constato, entre outras, as seguintes falhas no Observatório da Imprensa:

1. Falta de transparência econômica: quem afinal financia a empresa?

2. Militância ideológica apresentada falsamente como neutralidade pluralista

3. Preconceito político-idelógico contra o sistema de mercado

4. Desprezo pelos interesses dos consumidores do “produto jornalístico”

5. Graves incorreções conceituais e linguagem propositalmente obscura e enganosa

Precisamos urgentemente de um Observatório do Observatório da Imprensa!

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