Olavo de Carvalho
30 de julho de 2000
Desinformata, s. m. – Primata da espécie Homo pentelius, também denominado Sinanthropus maoensis ou Embrulionis loquax.
Seus restos fósseis foram descobertos por ele mesmo na redação da revista Bundas.
(Dicionário de Novilíngua)
Capítulo 1. Provas da existência de Moacir Werneck de Castro
A manipulação das palavras para fazê-las dizer o contrário do que dizem é um dos componentes essenciais da técnica da desinformátsia, “desinformação”, concebida na década de 30 pelo Comintern como arma de guerra psicológica no vale-tudo contra o capitalismo. Até a década de 70, pelo menos, havia no Partidão dúzias e dúzias de militantes profissionais habilitados a demonstrar que a chuva sobe, que o vapor desce e que a raiz quadrada de dois é dois ao quadrado. George Orwell, comunista arrependido, foi um dos primeiros a revelar a um estupefato mundo a existência desse idioma especial, que ele denominou “Novilíngua” e no qual, como sabe quem leu seu romance 1984, paz é guerra e guerra é paz, liberdade é tirania e tirania é liberdade. Só quem jamais foi militante comunista imagina que a descrição oferecida nesse livro seja uma caricatura: ela é a transcrição fiel dos procedimentos lingüísticos utilizados na propaganda comunista por técnicos altamente qualificados. Mas, com a decadência do comunismo, esses profissionais foram rareando e hoje, para ver um deles em ação, temos de procurar nas páginas do Granma, publicação oficial do governo de Cuba, o último jornal pensado e escrito inteiramente em Novilíngua.
Por exemplo, no número de junho dessa publicação aparece em letras gorduchas a seguinte manchete: “Americanos matam milhares de cubanos no estreito da Flórida!”. Você lê isso e arregala os olhos de espanto: Como?! Um genocídio ocorrendo bem no quintal dos EUA e a imprensa do mundo livre não diz uma palavra a respeito? Por instantes, você se sente vítima de uma conspiração imperialista para esconder da opinião pública um crime hediondo, e dá graças aos céus de ser o felizardo que, deparando por acaso com um número do Granma, furou o bloqueio, descobriu a verdade – e a verdade o libertou.
Aí você compra o jornal e vai ler as páginas internas. Sabe do que se trata? É o seguinte: como anualmente milhares de cubanos fogem para a Flórida, apinhados em jangadas, espremidos em barris ou debruçados à borda de um pneu, preferindo ao regime de Fidel Castro os perigos de uma travessia suicida, e como o governo dos EUA garante asilo político a essas pessoas, a culpa de que muitas delas morram comidas por tubarões ou afogadas sob ondas de vinte metros é… de quem? Do governo americano, é claro. A oferta de asilo político, diz o Granma, é “um ímã assassino” que atrai inocentes cubanos para o abismo. Quem atira o fugitivo aos braços da morte não é o perseguidor: é quem estende a mão ao perseguido.
Esse tipo de raciocínio é praticado há tanto tempo pela imprensa cubana, que provavelmente os habitantes da ilha já se acostumaram a tomá-lo como inteiramente natural. Talvez tenha sido por isso que a medicina de Cuba fez fortuna vendendo aos EUA e ao Brasil uma vacina contra a meningite B que é tremendamente eficaz para todas as pessoas – exceto as do grupo de risco. Dito de outro modo: se, pela sua idade e constituição física, você está praticamente a salvo de contrair meningite B, a vacina cubana vai ajudá-lo a conservar-se como está: praticamente a salvo de contrair meningite B. Mas, se você tem quatro anos ou menos, ou seja, se é um forte candidato a contrair meningite B, então a vacina cubana fará de você exatamente o que você já é: um forte candidato a contrair meningite B. Dito de outro modo ainda mais didático: na Novilíngua cubana, vacina é não-vacina e não-vacina é vacina. Compreenderam como a coisa funciona?
Não, não compreenderam ainda. Pelo menos não compreenderam tudo. A Novilíngua não serve só para falar e escrever, mas também para ler e ouvir. Se há um estilo novilingüístico de dizer, há também um jeito novilingüístico de interpretar o que os outros dizem. E aí é que a técnica se revela em todo o esplendor da sua fecalidade. Pois, se é com tanta sem-cerimônia que seus praticantes invertem o sentido dos fatos, sobrepujando à força de trejeitos mentais as mais duras imposições da ordem física e temporal das coisas, com quanto mais desenvoltura não hão de virar do avesso meras palavras, criaturas etéreas, feitas de vento, incapazes de lhes opor a mínima resistência corporal?
Demonstrarei, mais adiante, esse aspecto mais elevado e sublime da desinformátsia. Mas é impossível fazê-lo sem exemplos, e seria uma incomodidade ter de buscá-los sempre no Granma, que só se vende numas poucas bancas do centro. Muito mais confortável seria ter à mão alguns de manufatura local, em língua vernácula, subsidiados pelo governo e colocados, por farta distribuição, ao alcance de todos os interessados.
Pois eis que vos anuncio a boa nova: encontrei. Encontrei coisa melhor que meros exemplares. Encontrei um fabricante. Encontrei um técnico em Novilíngua autenticamente brasileiro, um raro e valioso exemplar, comunista de pai e mãe, com curso de marxismo-leninismo e tudo, o sobrevivente, enfim, de uma raça que tudo nos induzia a supor extinta. É verdade que, embora movendo-se e falando, aos olhos desatentos do principiante ele em pouco ou nada se diferencia de um fóssil. Mas não vos deixeis iludir pelo seu jeitão hierático de testemunha do paleozóico, nem pela poeira de museu que lhe encobre a nobre calva de pithecanthropus. Pois esse augusto cocuruto (1) já esteve, um dia, encoberto de imponente juba que fazia de seu proprietário, entre os símios, o que podia haver de mais parecido a um leão. Ele já não tem dentes, é certo, e, quando pensa que rosna, mia. Mas, nas noites lúgubres do asilo, se vísseis com que ferocidade morde a sopinha! Então saberíeis quem ele foi um dia, e tremeríeis. Pois ele é, na ausência de seus inumeráveis confrades mortos, a última encarnação viva da Novilíngua – sim, a desinformátsia feita gente.
Descobri-o, senhores, não por mérito meu, e sim por iniciativa dele próprio. Não fui procurá-lo. Foi ele que veio a mim. Quando leu um artigo meu em O Globo de 8 de julho, uma chispa de entusiasmo bélico incendiou todas as teias de aranha do seu cérebro, e a múmia, senhores, se ergueu da tumba para o sagrado combate. Abriu o baú, paramentou-se lenta e solenemente de suas velhas armas – o escudo da ignorância, o elmo da burrice, a malha de ferro da mentira, o bacamarte da calúnia – e recitando ritualmente verbetes do Dicionário de Novilíngua que é o livro revelado da sua confraria, veio à liça.
A arena literária que ele escolheu para o nosso enfrentamento não poderia ser mais adequada ao feitio do seu espírito: Bundas, a única revista, no mundo, que tem por nome a designação do órgão pensante de seus colaboradores.
Na edição de 24 de julho desse órgão, que se não é de grande penetração é ao menos de grande penetrabilidade, meu antagonista fez despencar sobre mim, com a potência incomparável de algumas décadas de flatulência retida, o golpe que deveria me abater por terra, segundo os seus cálculos, por umas quinze gerações.
Sim, senhores, falo-vos do último dos desinformatas: Moacir Werneck de Castro.
Ora, direis, é apenas um velho safado. E eu vos direi, no entanto: É mesmo.
Prometi responder-lhe sem hostilidade. Pois vou fazê-lo não só sem hostilidade, como também sem pressa. Meticulosamente. Lentamente. Um pouco por dia. Quero vê-lo saborear gota a gota, até o amargo fim, o néctar da sua própria babaquice.
Nota
(1) Não confundir “augusto cocuruto” com Sérgio Augusto.
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Capítulo 2: Que cazzo é o fascismo?