Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 3 de setembro de 1998

Um homem que decidisse dilapidar sua fortuna em champagne, cruzeiros marítimos e corridas de cavalos estaria fazendo alguma coisa inequivocamente estúpida por meios inequivocamente elegantes. Esse exemplo ilustra a idéia de que a elegância dos meios nada tem a ver com o valor dos fins. Aplicada às teorias hermenêuticas em voga no nosso meio universitário, ela nos ensina que uma teoria perfeitamente idiota pode ser exposta por meio de raciocínios sumamente elegantes que lhe dêem ares de alta sabedoria.

Muitas dessas teorias, aquelas que vão do estruturalismo ao desconstrucionismo, baseiam-se no pressuposto de que o conhecimento objetivo de um texto consiste em enfocá-lo “em si mesmo”, como objeto a ser descrito e analisado, sem nenhuma referência a significados exteriores.

Mas, para provar que é possível explicar um texto “em si mesmo” e sem referência a nenhum objeto exterior, seria preciso, primeiro, demonstrar que esse texto efetivamente não remete a um objeto exterior, que ele é efetivamente um universo fechado, completo e auto-explicável. Caso contrário, a hipótese da clausura textual seria ela mesma um texto cerrado que não se referiria a objeto algum, isto é, que nem de longe poderia ter algo a ver com o texto que diz analisar.

Seria preciso esclarecer, em seguida, se o autor do texto percebeu ou não estar escrevendo a respeito de nada ou se ele, ao contrário, tinha a ilusão de estar se referindo a alguma coisa, isto é, estava radicalmente enganado quanto à índole do seu próprio escrito, a qual só será revelada por nós. Nesta última hipótese, seria preciso dar algum fundamento razoável à nossa pretensão de conhecer o nexo interior de um texto mais do que foi preciso para produzi-lo.

Seria preciso, ademais, demonstrar como veio a ser possível que nossa explicação, por sua vez, não constituísse um todo fechado, que ela, na medida em que tem por objeto um outro texto, escapasse miraculosamente à lei da clausura textual que ela mesma proclama.

Como essas condições jamais se realizam nem mesmo hipoteticamente, por impossibilidade absoluta de concebê-las de modo simultâneo sem autocontradição lógica, os adeptos da teoria do texto fechado recorreram ao expediente de alegar que um texto se refere a outro texto que se refere a outro texto e assim por diante indefinidamente, de modo que o conjunto dos textos só fala de si mesmo sem jamais chegar a se referir a um objeto verdadeiramente exterior. Concedendo que o texto não é um todo fechado, asseguram que o mundo textual no seu conjunto o é.

Mas isso não melhora em nada a situação, porque um texto não é outro texto, e restaria explicar como um texto pode ter por objeto outro texto sem a mediação de algo que não é texto, como por exemplo os olhos do leitor, o papel ou, no caso da leitura em voz alta, o ar. Afinal, textos não lêem textos.

Evidentemente o clausurista fanático poderia objetar que essa mediação é apenas a condição exterior da existência dos textos e nada tem a ver com o seu significado, mas, esta afirmação por sua vez, distinguindo entre o que é texto e o que não é, fala de algo que não é texto. Ela escapa, portanto, à regra que proclama. Então, ou admitimos que essa afirmação não é texto, embora possa ser feita por escrito, ou admitimos que pelo menos um texto, isto é, aquele mesmo que o nosso clausurista acaba de escrever, escapa à lei universal da clausura textual – o que nos coloca na desagradável contingência de ter de justificar teoreticamente essa mágica exceção.

Não resta, enfim, para explicar o prestígio hipnótico dessas teorias, senão a hipótese de que a impossibilidade mesma de perceber aí algum sentido razoável contribua para fixar nelas, como num quebra-cabeças indefinidamente auto-renovável, a atenção do leitor. Como a busca de solução ao que não tem solução é um movimento masturbatório que excita o desejo e a fantasia em progressão geométrica à medida que aumenta a intensidade da dedicação, e vice-versa, logo o leitor entra num estado alterado que, com um pouco de boa vontade, será tomado por sinal de inteligência. E como, enfim, esse estado é compartilhado por milhares de pessoas dedicadas por ofício universitário a esse gênero de práticas, acaba por se formar entre elas algo como um campo semântico especial, semelhante ao dos drogados ou ao dos aficionados de UFOs, que pela interconfirmação de cacoetes verbais lhes dá o sentimento de saber do que estão falando – como se fosse possível, na sua teoria, falar de alguma coisa.

Uma boa parte da nossa atividade universitária no domínio das ciências humanas consiste precisamente disso e de nada mais.

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