Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 29 de agosto de 2013
Estamos tão habituados a ouvir falar de “progresso do conhecimento”, que não nos damos conta de que essa expressão não é um conceito descritivo, a tradução verbal de uma realidade, e sim apenas uma figura de linguagem, uma metonímia, por trás da qual não há senão uma impressão confusa e até mesmo enganosa.
A realidade a que essa expressão alude vagamente é, com efeito, apenas o aumento das informações disponíveis sob a forma de livros, arquivos, índices, microfilmes, etc., isto é, o crescimento do número de registros, bem como da quantidade de pessoas e instituições ocupadas em produzi-las. É certo que esse crescimento implica um acréscimo de precisão e diferenciação. Mas dizer que isso é “conhecimento” é o mesmo que imaginar que um estudante de biologia, tão logo entra na faculdade, já conhece toda a biologia pelo simples fato de estar cercado de bibliotecas, arquivos e toda sorte de registros concernentes à ciência biológica. Tudo isso é conhecimento potencial, isto é, possibilidade de acesso a um conhecimento. Não é conhecimento ainda.
A diferença torna-se ainda mais visível quando nos lembramos de que, afinal de contas, a própria natureza em torno, o universo inteiro dos seres vivos, é um depósito de conhecimentos biológicos em potência, aguardando que o ser humano os apreenda e registre. Tão logo as informações contidas nesse depósito sejam convertidas em registros humanos, dizemos que “aumentou o nosso conhecimento”, mas o que acontece quando o número de registros cresceu a tal ponto que já nenhum ser humano pode abarcá-lo ou mesmo ter uma idéia clara do seu princípio organizador? Por exemplo, quanto dos registros acumulados espelha a realidade objetiva dos seres vivos, e quanto reflete apenas os códigos e convenções da cultura sob cuja ótica eles foram enfocados? E quem nos garante que os registros acumulados descrevem fielmente a evolução dos conhecimentos adquiridos e não os saltos, lapsos e deformações que, de uma época a outra, o advento de novas convenções impõe à compreensão dos conhecimentos anteriormente adquiridos? O que acontece, para continuar no exemplo da biologia, é que uma primeira camada de objetos a decifrar – o “mundo” dos seres vivos – foi substituída por uma segunda camada de objetos, os registros de conhecimentos biológicos, cuja decifração é igualmente difícil, trabalhosa e não raro impossível. Isso, hoje, é o que se passa em todas as ciências.
O otimista incurável alegará que o crescimento do volume de registros é compensado pelo progresso dos métodos de indexação, sobretudo desde o advento dos computadores. Mas isso é uma ilusão. A conversão de registros impressos em registros eletrônicos é ainda a substituição de uma coleção de objetos por outra coleção de objetos, talvez mais fácil de manipular fisicamente mas nem por isso mais fácil de assimilar intelectualmente.
De bom grado qualquer cientista hoje em dia reconhece que ninguém domina o campo inteiro da sua ciência, quanto mais o das ciências todas, mas raramente algum deles tira daí a conclusão incontornável de que o “progresso do conhecimento”, mesmo na sua área restrita, é apenas o crescimento do número de registros que vai se tornando cada vez mais indecifrável, a substituição de uma rede impenetrável de objetos naturais por uma rede impenetrável de objetos culturais. Estes, em princípio, “significam” aqueles, mas, se o acesso aos objetos naturais passa pela aquisição do domínio sobre os objetos culturais correspondentes, resta o fato de que nas ciências culturais reina ainda mais confusão e nebulosidade do que nas ciências naturais. O domínio precário dos registros não pode deixar de afetar a compreensão dos objetos naturais que eles “significam”.
“Conhecimento”, a rigor, só existe na mente de quem conhece, no instante e no grau em que conhece. Um ser humano pode conhecer muitas coisas, pode dominar, num relance, uma área imensa de conhecimentos, e pode ignorar completamente outras tantas áreas das quais depende a compreensão daquela que ele conscientemente abarca. Quando leio, por exemplo, um livro do dr. Richard Dawkins, delineia-se claramente ante os meus olhos a fronteira entre o campo dos objetos que ele conhece e o daqueles que ele desconhece, mas à luz dos quais ele interpreta os primeiros. Isto é o mesmo que dizer que ele não compreende muito bem nem mesmo aquilo que ele conhece.
Jean Piaget estabelecia uma diferença rígida entre as ciências, que segundo ele nos dão “conhecimentos”, e a filosofia, que nos dá somente um “senso de orientação”. Mas em que medida o homem que está desorientado no meio de uma massa de informações tem real “conhecimento” dela? Pode-se, é claro, conhecer um enigma sem conhecer a sua solução. Mas o que acontece quando não entendemos claramente nem mesmo a formulação do enigma? A desorientação, nesse caso, resvala na pura ignorância. O “progresso do conhecimento”, nesse sentido, implica necessariamente o concomitante o aumento da ignorância. E, quando a ignorância e o conhecimento se mesclam de maneira inseparável, é a ignorância que predomina, pois é ela que determina a forma do conjunto.
Não é preciso dizer que, levada ao seu extremo, a impossibilidade de discernir conhecimento e ignorância põe em risco não somente a segurança da civilização, mas a própria integridade da inteligência humana. A tarefa da filosofia é intensificar aquele discernimento e, assim, tentar preservar a integridade da inteligência no meio do crescimento simultâneo dos conhecimentos e dos enganos.