Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial),9 de agosto de 2007

Numa carta enviada a José Sarney em 15 de abril de 1985, José Guilherme Merquior aconselhava ao então presidente fazer “ desde já certos gestos simpáticos à esquerda ” especialmente “ reatar relações com Cuba. Eles [os esquerdistas] ficariam meio ano digerindo este pitéu, obrigados a achar que ‘pô, esse Sarney até que não é assim tão reaça…’ .” (v. José Mário Pereira, “O Fenômeno Merquior”).

Explicando as razões dessa idéia que deve ter lhe parecido tão genial quanto ao destinatário da mensagem, o autor de A Astúcia da Mímesis ponderava:

Cuba hoje não oferece maiores perigos na América do Sul. O guevarismo já era. E o reatamento tem pelo menos três vantagens para nós: a) abriria um significativo potencial de exportações brasileiras; b) permitiria ao Brasil influir, em boa medida, na conduta internacional de Havana, como faz o México, em sentido moderador e realista; c) evitaria que, no futuro, nosso reatamento se desse a reboque de uma reconciliação diplomática Cuba/USA, reconciliação essa, a médio prazo, tão certa quanto o foi o reconhecimento de Pequim por Washington, na década passada .”

Se houvesse um concurso mundial de previsões erradas, esse parágrafo não perderia nem para os prognósticos do ministro iraquiano Mohammed al-Sahaf quanto ao futuro glorioso de Saddam Hussein. Por si só, ele explica por que José Guilherme Merquior, depois de morto, se tornou o direitista predileto da esquerda brasileira. Seus não exerceram nela grande influência. Não consta que algum esquerdista tenha abjurado da admiração por Michel Foucault por ler O Niilismo de Cátedra , nem aderido, exceto por fingimento tático, ao triunfalismo liberal de A Natureza do Processo . Em compensação, essas breves palavras dirigidas a um presidente da República deixaram marcas duradouras. Sarney não só pôs em prática a sugestão de reatar as relações do Brasil com Cuba já no ano seguinte, mas, no doce embalo da morte do guevarismo, mandou tirar a disciplina “Guerra Revolucionária” do currículo das escolas militares, deixando duas gerações de oficiais brasileiros desaparelhadas para lidar com a expansão subversiva nas décadas seguintes. Para a esquerda, foi realmente um “pitéu” em dose dupla. Para o Brasil, vejamos:

a) Do total das exportações brasileiras, Cuba compra não mais de 0,2 por cento (dados de 2005; v. http://www.apexbrasil.com.br/media/cuba.pdf ).

b) O Brasil não influencia em nada a política cubana, mas Cuba, através do Foro de São Paulo, determina e orienta a política de vários países da América Latina, entre os quais o Brasil.

c) A reconciliação entre EUA e Cuba, anunciada como inevitável, simplesmente não aconteceu.

d) Quanto ao falecido “guevarismo”, é o cadáver mais enérgico que já se viu. Hoje em dia a esquerda é praticamente a única força política organizada do continente, amparada no narcotráfico, no apoio da mídia internacional, na ajuda das fundações bilionárias e no poder bélico das Farc. É aliás muito mais eficazmente coordenada pelo Foro de São Paulo do que jamais o foi pela velha OLAS (Organização de Solidariedade Latino-Americana). Em comparação com isso, as guerrilhas dos anos 60-70 parecem escaramuças de crianças.

Poucos políticos de esquerda podem se gabar de haver contribuído tanto para criar essa diferença quanto a dupla Merquior-Sarney.

No entanto, uma coisa continua imutável: na “direita” brasileira ainda predominam os que acreditam antes em ilusões animadoras do que em diagnósticos realistas. É uma gente doente e covarde, que paga para ser enganada.

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