José Nivaldo Cordeiro


27 de dezembro de 2001

A mensagem do Papa João Paulo II para a comemoração do Dia Mundial da Paz (01/02/2002), intitulada Não há paz sem justiça; Não há justiça sem perdão, é um documento exemplar da postura da Santa Sé em relação aos acontecimentos de 11 de setembro. O interessante é também compará-lo com a linha de análise dos fatos adotada pela CNBB, em sua última Análise de Conjuntura (relativa ao mês de novembro) disponibilizada no seu site (www.cnbb.org.br). O abismo entre ambas as posições é maior do que aquele que separa o Céu da Terra. Abaixo vou tentar comparar os textos.

A mensagem do Papa tem um caráter intimista, daí a sua leitura ser ainda mais excitante, tangenciando o poético. E ele não usa de meias palavras para condenar os atentados:

“Este ano o Dia Mundial da Paz é celebrado tendo como pano de fundo os dramáticos acontecimentos do passado dia 11 de Setembro. Naquele dia, foi perpetrado um crime de terrível gravidade: em poucos minutos milhares de pessoas inocentes, de várias procedências étnicas, foram horrorosamente massacradas. Desde então, por todo o mundo as pessoas tomaram consciência, com nova intensidade, da sua vulnerabilidade pessoal e começaram a olhar o futuro com um sentido, jamais pressentido, de íntimo medo. Diante deste estado de ânimo, a Igreja deseja dar testemunho da sua esperança, baseada na convicção de que o mal, o mysterium iniquitatis, não tem a última palavra nas vicissitudes humanas. A história da salvação, delineada na Sagrada Escritura, projeta uma grande luz sobre toda a história do mundo ao mostrar como sobre ela vela sempre a solicitude misericordiosa e providente de Deus, que conhece os caminhos para sensibilizar mesmo os corações mais endurecidos e alcançar bons frutos mesmo de uma terra árida e infecunda. Esta é a esperança que anima a Igreja no início do ano 2002: com a graça de Deus este mundo, no qual as forças do mal parecem uma vez mais triunfar, há-de realmente transformar-se num mundo em que as aspirações mais nobres do coração humano poderão ser satisfeitas, num mundo onde prevalecerá a verdadeira paz”.

Quanta diferença quando comparamos com o que escreveram os analistas conjunturais da CNBB! Vejamos o seu primeiro parágrafo:

“A conjuntura continua marcada pelo atentado terrorista do dia 11 de setembro e pela guerra contra o movimento Taliban, do Afeganistão. À medida que passa o tempo, vai ficando claro que aquele atentado condensou a sensação de mal-estar mundial dos últimos anos. A guerra que se seguiu, desproporcional à sua pretensa causa, só veio agravar esse mal-estar, como se a Humanidade no seu todo estivesse febril”.

Em todo o texto do Papa vemos a justa indignação com os atos terroristas perpetrados contra os EUA, não havendo uma única palavra de condenação do Santo Padre contra as ações militares que ainda estão em andamento, até porque o Papa, em momento anterior, já havia classificado a guerra como “justa”. Já os conjunturalistas da CNBB iniciam seu texto relativizando, afirmando com o acontecido em 11 de setembro “condensou a sensação de mal-estar mundial nos últimos anos”, implicitamento colocando a ação criminosa calculada e pensada como uma respostas a uma agressão anterior. Nada mais falso. Além disso, condena de forma categórica ação dos EUA, em clara contradição com a visão do Sumo Pontífice.

Eles acrescentam à sua análise:

“À medida que passa o tempo e continuam as operações militares comandadas pelos EUA na Ásia Central, vai ficando claro que esta guerra tem outros objetivos além do alegado combate a grupos que adotam o terrorismo como estratégia política. Um desses objetivos é assegurar aos países membros do G-7 o controle sobre as rotas de petróleo e gás natural da Ásia Central e do mar Cáspio (cujas reservas serão a grande alternativa para o Ocidente quando se esgotarem os recursos do Oriente Médio, dentro de 20 anos no máximo). Outro objetivo, de importância estratégica, é a presença militar nas vizinhanças da China (a potência emergente dos próximos anos, já se preparando para ocupar o terceiro lugar na corrida espacial), da Índia e da Rússia/Sibéria. Enfim, é preciso lembrar que a guerra aumenta os investimentos na indústria bélica e dinamiza a economia estadunidense para fazê-la sair da recessão que já a ameaçava antes mesmo de 11 de setembro”.

Fica claro nesse trecho que os analistas adotam uma visão conspiratória, tratando os EUA como agressores e não como quem combate em ato de defesa, aí englobando o G-7. Como se países como França não tivessem suas reservas e aquele colegiado fosse um monolito. Na visão dos analistas, a mobilização militar não tem por objetivo destruir as bases terroristas, mas fazer a guerra de conquista, em claro desacordo com a realidade dos fatos. A paranóia vai além, sugerindo que o Ocidente precisaria de bases militares adicionais por causa da China e da Rússia, como se ainda estivéssemos vivendo a Guerra Fria e o comunismo não tivesse sido derrotado em 1989. A pobreza dos parâmetros dos analistas é, por assim dizer, franciscana. Chega mesmo a ser colegial.

O seguinte trecho é ainda mais insípido:

“A escolha do mundo árabe-muçulmano como alvo de guerra, porém, pode ter efeitos explosivos no médio prazo. Como já foi assinalado (Conjuntura de setembro), a opção pela guerra provoca a radicalização de posições extremas e dificulta o desenvolvimento de alternativas viáveis para a Justiça e a Paz mundial (como as alternativas nascentes do Fórum Social Mundial). Vemos multiplicarem-se medidas autoritárias contra pessoas suspeitas, principalmente nos EUA, onde o governo Bush está fazendo lembrar o AI-5 da ditadura militar brasileira. A recente vitória eleitoral da direita na Dinamarca parece ser um mau presságio de agravamento da xenofobia e do endurecimento político do Ocidente. Os problemas mundiais tendem a ser resolvidos pela força das armas e em favor dos mais fortes sob o ponto de vista econômico e militar, uma vez que agora mais que nunca é evidente a inter-relação entre segurança e economia.. A aversão ao risco ganha maior peso como fator de decisão sobre os investimentos: o Estado que não oferecer segurança aos investidores ficará prejudicado no financiamento da sua economia”.

Os EUA escolheram os mundo árabe-muçulmano como alvo? Foi exatamente o contrário, eles atacaram os EUA de forma rapace e traiçoeira. Aqui eles, os analistas conjunturais , transformam o agredido em agressor. E, como bons marxistas, colocam o drama como sendo motivado por razões econômicas, quando toda a gente sabe que a motivação é de outra natureza, está no ódio ancestral e tribal contra a modernidade, contra a sociedade aberta, contra a libertação feminina e, podemos dizer, contra as liberdades em geral. E as medidas de proteção contra os novos prováveis atentados (quem esquece do terrorista do sapato que ainda nesta semana tentou derrubar um outro avião, uma forma de terrorismo que poderíamos chamar de pé-de-chinelo? É possível não ser previdente contra esses dementes?) Quem tentou resolver os problemas mundiais pelas armas foram os terroristas. E, que mal pergunte, o que tem a ver a segurança dos investidores com os atos terroristas? Só marxistas cegos pela ideologia para misturar alhos com bugalhos.

Mas voltemos ao texto do Santo Padre:

“Os recentes acontecimentos, com os terríveis fatos sangrentos aqui lembrados, estimularam-me retomar uma reflexão que freqüentemente brota do mais íntimo do meu coração, quando lembro os acontecimentos históricos que marcaram minha vida, especialmente nos anos da minha juventude. Os indescritíveis sofrimentos de povos e indivíduos, vários deles meus amigos e conhecidos, causados pelos totalitarismos nazista e comunista, sempre interpelaram o meu espírito e motivaram a minha oração. Muitas vezes me detive a refletir nesta questão: qual é o caminho que leva ao pleno restabelecimento da ordem moral e social tão barbaramente violada? A convicção a que cheguei, raciocinando e confrontando com a Revelação bíblica, é que não se restabelece cabalmente a ordem violada, senão conjugando mutuamente justiça e perdão. As colunas da verdadeira paz são a justiça e aquela forma particular de amor que é o perdão”.

Quanta diferença! Enquanto que a CNBB emprega declaradamente a sociologia marxista para fazer o seu arremedo de interpretação da realidade, o Papa singelamente usa a doutrina de cristã, prega o Evangelho, a grandeza da justiça e do perdão. E vai além. Denuncia o totalitarismo, inclusive o comunista, que é tão caro para uma parcela importante do clero brasileiro.

Continua o Papa:

“Mas, nas circunstâncias atuais, pode-se falar de justiça e, ao mesmo tempo, de perdão como fontes e condições da paz? A minha resposta é que se pode e se deve falar, apesar da dificuldade que o assunto traz consigo, e da tendência que há a conceber a justiça e o perdão em termos alternativos. Mas o perdão opõe-se ao rancor e à vingança, não à justiça. Na realidade, a verdadeira paz é ” obra da justiça ” (Is 32, 17). Como afirmou o Concílio Vaticano II, a paz é ” fruto da ordem que o divino Criador estabeleceu para a sociedade humana, e que deve ser realizada pelos homens, sempre ansiosos por uma mais perfeita justiça ” (Const. past. Gaudium et spes, 78). Há mais de quinze séculos que na Igreja Católica ressoa o ensinamento de Agostinho de Hipona, segundo o qual a paz, a ser conseguida com a colaboração de todos, consiste na tranquillitas ordinis, na tranqüilidade da ordem (cf. De civitate Dei, 19, 13). Por isso, a verdadeira paz é fruto da justiça, virtude moral e garantia legal que vela sobre o pleno respeito de direitos e deveres e a eqüitativa distribuição de benefícios e encargos. Mas, como a justiça humana é sempre frágil e imperfeita, porque exposta como tal às limitações e aos egoísmos pessoais e de grupo, ela deve ser exercida e de certa maneira completada com o perdão que cura as feridas e restabelece em profundidade as relações humanas transtornadas. Isto vale tanto para as tensões entre os indivíduos, como para as que se verificam em âm bito mais alargado e mesmo as internacionais. O perdão não se opõe de modo algum à justiça, porque não consiste em diferir as legítimas exigências de reparação da ordem violada; mas visa sobretudo aquela plenitude de justiça que gera a tranqüilidade da ordem, a qual é bem mais do que uma frágil e provisória cessação das hostilidades, porque consiste na cura em profundidade das feridas que sangram nos corações. Para tal cura, ambas, justiça e perdão, são essenciais.”.

Há, nesse trecho, apoio implícito a ação dos EUA, que têm a missão de restabelecer a ordem quebrada, o equilíbrio perdido. A traquilidade da ordem exige a ação da justiça, que deve ser seguida da ação do perdão, tão bela e poeticamente aqui lembrado pelo Santo Padre.

Nada mais diferente do que a pífia análise dos analistas conjunturais da CNBB. O Papa não usa de meias palavras para condenar o terrorismo, como podemos ler no seguinte trecho:

“É precisamente a paz baseada na justiça e no perdão que, hoje, é atacada pelo terrorismo internacional. Nestes últimos anos, especialmente após o fim da guerra fria, o terrorismo transformou-se numa rede sofisticada de conluios políticos, técnicos e econômicos, que ultrapassa as fronteiras nacionais e se estende até abranger o mundo inteiro. Trata-se de verdadeiras organizações, dotadas freqüentemente de enormes recursos financeiros, que elaboram estratégias em vasta escala, atingindo pessoas inocentes, de forma alguma envolvidas nos objetivos que se propõem os terroristas. Usando os seus mesmos sequazes como armas para atingir pessoas incautas e indefesas, estas organizações terroristas manifestam de modo assustador o instinto de morte que as alimenta. O terrorismo nasce do ódio e gera isolamento, desconfiança e retraimento. A violência atrai violência, numa trágica espiral que arrasta também as novas gerações, herdando elas assim o ódio causador das divisões precedentes. O terrorismo baseia-se no desprezo da vida do homem. Precisamente por isso, dá origem não só a crimes intoleráveis, mas constitui em si, enquanto recorre ao terror como estratégia política e econômica, um verdadeiro crime contra a humanidade“.

E também não usa de meias medidas para o seu combate:

Existe, portanto, um direito a defender-se do terrorismo. É um direito que deve, como qualquer outro, obedecer a regras morais e jurídicas na escolha quer dos objetivos quer dos meios”.

Mais um claro apoio à ação internacional que está em curso. O restante do texto continua explorando por outros ângulos o mesmo tema, condenando o terrorismo e apoiando a ação “justa” e o perdão.

É evidente que a posição do Papa está de acordo com a doutrina e a história do cristianismo. O mesmo não pode ser dito do texto da CNBB.

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