Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 05 de março de 2007

Desde Freud: The Mind of a Moralist (1959), Philip Rieff (1922-2006) foi reconhecido como um dos mais importantes pensadores americanos. Sua última obra, My Life Among the Deathworks (University of Virginia Press, 2006), analisa a cultura como expressão da ordem divina. Ela pode nos servir de ponto de partida para explicar por que a pretensa “civilização laica” não tem como desembocar em nenhum paraíso global de justiça e prosperidade, mas só na dominação universal do islamismo.

A premissa de My Life Among the Deathworks é a admissão de que em toda cultura há uma série inumerável de palavras e símbolos que desfrutam de autoridade pública automática. São a tradução de verdades que não estão aí para ser provadas ou impugnadas: elas estruturam a nossa vida de todos os dias para muito além da nossa capacidade de reflexão consciente. Evocam a nossa obediência imediata e despertam em nossa alma sentimentos de culpa e inadequação quando as infringimos. Ao conjunto delas Rieff denomina “ordem sacra”. A educação doméstica, as regras de boas maneiras, as hierarquias administrativas, a política, o gosto literário e artístico, tudo numa cultura é “transliteração da ordem sacra numa ordem social”.

Examinar criticamente esses símbolos desde o ponto de vista da razão individual, da filosofia ou da “ciência” é legítimo, mas é uma atividade que transcorre dentro da cultura e balizada por ela. Seu alcance, portanto, é limitado: nenhum saber individual pode substituir-se à cultura como um todo. O máximo de profundidade que a sondagem dos símbolos pode alcançar é aquela que se observa na psicanálise (independentemente do conteúdo específico das teorias de Freud): a penetração do exame racional nas brumas do inconsciente, para desativar a sobrecarga de autoridade de símbolos sacrais. Estes são absolutamente necessários à cultura, mas à medida que o tempo passa eles se consolidam em formas de autoridade interiorizada cujo peso acumulado se torna opressivo. A psicanálise desata os nós da sobrecarga, liberando o indivíduo para reintegrar-se na ordem social, não para sair dela.

Na evolução histórica do Ocidente, Rieff identifica três ordens sacrais sucessivas, que ele chama de “mundos”. Na cultura do mundo antigo, greco-romano, potências espirituais supra-humanas e infra-humanas enquadravam o homem numa ordem cósmica que se traduzia em ordem social sob a noção geral de “destino”. No monoteísmo judaico-cristão, a leitura dos símbolos torna-se mais sutil e ao mesmo tempo mais exigente, instaurando o compromisso da “fé” e a luta permanente do homem para permanecer integrado na ordem divina. A terceira cultura, ou “terceiro mundo” está se formando bem diante dos nossos olhos, e sua diferença das duas anteriores é radical: pela primeira vez na história humana, as elites culturais tentam construir uma ordem social sem ordem sacra, ou melhor, contra toda ordem sacra. O experimento, enfatiza Rieff, é inédito. Comentando o livro na Intercollegiate Review, R. R. Reno, especialmente qualificado para analisar o assunto por sua experiência anterior em Ruins of the Curch: Sustaining Faith in an Age of Diminished Christianity (2002), observa que se trata de impor a toda a humanidade o uso de remédios jamais testados. Os princípios da nova civilização podem-se resumir em três enunciados:
1) Toda proibição é proibida.
2) Toda repressão deve ser reprimida.
3) A única verdade é que não existe verdade.

Nesse quadro, a própria razão é condenada como repressiva, e automaticamente o privilégio de credibilidade é transferido a símbolos de prestígio (“papéis teatrais”) associados ao poder “libertador” da satisfação narcísica. A própria “ciência” já não funciona como conhecimento racional, mas como estereótipo publicitário encarregado de legitimar os desejos da multidão, ou os da elite injetados na multidão.

As práticas culturais da nova sociedade, que Rieff exemplifica e analisa extensamente, copiam as da terapia freudiana, mas não para curar a alma e sim para esvaziá-la de todo sentido de vida. A “liberação” geral desemboca no niilismo. “Onde nada é sagrado, não existe nada.”

O problema com as análises de Rieff é que elas abrangem somente o panorama ocidental. A conseqüência inevitável é que tendem a aceitar como novo padrão civilizacional mundial aquilo que, visto desde outra perspectiva, pode ser apenas a transição rápida e fulminante de uma ordem social fundada no judeocristianismo para outra de base islâmica.

A emergência da cultura niilista pode ser datada, sem erro, do iluminismo francês. O “culto da Razão” como fundamento de uma civilização mais feliz e mais livre baseada no esclarecimento científico é apenas uma idéia popular, que não corresponde em nada à verdade histórica do iluminismo. Não apenas o século XVIII francês foi mais povoado de superstições, bruxarias, ritos esotéricos e sociedades secretas do que qualquer etapa anterior da história ocidental, como também os abismos de incongruência no pensamento dominante da época inspiraram a Goya a sua famosa gravura “El sueño de la razón produce monstruos”. Nos escritos de um Voltaire, de um Diderot, de um Montesquieu, os estudiosos vêm descobrindo padrões de descontinuidade e desequilíbrio que raiam a loucura pura e simples. Como observou Paul Ilie no monumental The Age of Minerva (2 vols., Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1995), mais que a época da razão o iluminismo foi a época da ruptura radical entre a razão e os sentimentos, estes expressando-se em delírios passionais que pareciam emergidos diretamente do inferno, aquela em simulacros de ordem que celebravam indiretamente a onipotência do caos. Paul Hazard, em La Pensée Européenne au XVIIIe. Siècle, mostrou que a receptividade dada à crítica antitradicional intelectualmente sofisticada foi devida menos à aparente racionalidade de seus argumentos do que à atmosfera preparada por uma incrível inundação de piadas e lendas anti-religiosas, de uma baixeza e vulgaridade à toda prova, que já circulavam desde muito antes dos panfletos de Voltaire e Diderot. Boa parte da obra destes últimos (já mencionei aqui o caso de La Réligieuse , v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/070108dc.htm) não fez senão beber nessa fonte espúria e dar-lhe um verniz de respeitabilidade literária. Corroendo a fé pública nos símbolos e instituições tradicionais, o iluminismo desembocou não só na loucura genocida do Terror, mas nos sangrentos delírios pornográficos do marquês de Sade, que vieram a exercer contínua atração hipnótica sobre a imaginação francesa até Jean-Paul Sartre e Georges Bataille (v., deste último, L’Érotisme: “Do erotismo pode-se dizer que é semelhante à morte”). O mergulho final do intelectual francês no submundo do marquês de Sade tomou forma, não literária, mas biográfica, em Michel Foucault , escravo das drogas e devotamente empenhado em “transcender o sexo” mediante o sofrimento físico em rituais de flagelação masoquista, com algemas, chicotinho, cuecão de couro e tudo o mais (não sei se é para rir ou para chorar, mas leia a história completa em Roger Kimball , “The perversions of Michel Foucault”, na revista The New Criterion, http://www.newcriterion.com/archive/11/mar93/foucault.htm).

A inspiração niilista do movimento revolucionário pode ter sido obscurecida por um breve momento graças à ascensão da utopia proletária, mas sua natureza profunda não demorou a aparecer de volta sob a forma de montanhas de cadáveres, um acúmulo impensável de sofrimento humano, resultando enfim no fiasco da URSS e nos arranjos capitalistas do comunismo chinês. A desilusão com o comunismo soviético e chinês produziu o imediato retorno aos motes do iluminismo francês, com a nova divinização da “ciência” e a mais virulenta campanha anti-religiosa de todos os tempos, subsidiada por verbas milionárias, fortemente amparada pela indústria do show business (O Código Da Vinci, O Corpo, e agora O Túmulo de Jesus), abrilhantada por ídolos pop da divulgação científica como Richard Dawkins, Daniel Dennet e Sam Harris e coroada por uma sucessão impressionante de legislações repressivas promovidas diretamente pelos organismos internacionais e voltadas contra a expressão pública da fé. Injetada num ambiente previamente preparado pelo “politicamente correto”, e coincidindo no tempo com a nova onda de anti-semitismo europeu e com a matança generalizada de cristãos nos países islâmicos e comunistas, a campanha dá um passo enorme no sentido da extinção do legado civilizacional judaico-cristão e na instauração mundial da social-democracia laica, o prêmio de consolação dado pela elite globalista à esquerda mundial pelo fracasso do comunismo russo-chinês.

Ora, a absoluta incapacidade da socialdemocracia laica de resistir à invasão cultural islâmica já está mais do que demonstrada na prática. Nem vou insistir nisso. Os interessados que leiam Eurabia: The Euro-Arab Axis, de Bat Ye’or (Farleigh Dickinson University Press, 2005), The Death of the West, de Patrick J. Buchanan (St. Martin’s Press, 2002) e The Abolition of Britain, de Peter Hitchens (Encounter Books, 2000), só a título de exemplos.

A fraqueza incurável daquilo que um dia foi “o Ocidente” provém do fato de que, esvaziados do conteúdo vital que recebiam da tradição judaico-cristã, os princípios mesmos que induzem os intelectuais europeus a defender seus países contra a tirania islâmica – a modernidade, a razão científica, a democracia, o progresso capitalista, a liberdade de expressão, o primado do consumidor e os confortos da previdência social – se tornam instrumentos de corrosão das identidades nacionais e da capacidade de autodefesa cultural. E de há muito os estrategistas islâmicos já perceberam isso, senão não teriam podido conceber a “guerra assimétrica” nem o uso maciço da imigração como arma de combate.

O protesto melancólico de Oriana Falacci, bradando contra o fim da Europa e nada podendo alegar em favor dela exceto seu amor pessoal às delícias da modernidade, soa tão fútil e impotente ante as exigências morais avassaladoras da autoridade islâmica que se torna o símbolo mesmo de uma civilização agonizante. O que sobra no fundo do niilismo é o hedonismo, mas seria vão tentar construir – ou defender – uma civilização com base nele. O hedonismo atrai interesses, mas não é fonte de autoridade. Ele próprio é niilismo em versão light. Anúncios de restaurantes nada podem contra o vigor do protesto islâmico.

Mas a força da invasão islâmica não repousa só na fraqueza do adversário. Há um poder efetivo, “positivo” por assim dizer, intrínseco à mensagem islâmica, que a torna especialmente capacitada a apropriar-se de um corpo civilizacional debilitado pelo niilismo. É que o próprio Islam tem um fundo “niilista”. Mohammed destruindo os ídolos da Kaaba é o advento de um monoteísmo abstrato que varre do planeta os símbolos visíveis do divino e os substitui pelo culto disciplinar do absolutamente invisível. A proibição radical das imagens equivale a uma política de terra-arrasada espiritual onde só o que sobra para atestar a presença divina é o apelo auditivo de um substantivo abstrato (Allah não significa propriamente “Deus”, nome próprio, mas “a divindade”). Nas mesquitas, o equivalente ao altar é o mihrab, um espaço vazio cavado na parede, designando a divindade eternamente ausente e inalcançável. No Islam não existe nem o povo eleito, atestando através da história a continuidade da profecia, o diálogo permanente entre o homem e Deus, nem a Encarnação pela qual o divino habita entre nós como nosso igual e nosso irmão. O ciclo da profecia está encerrado: Deus falou pela última vez a Mohammed e não falará mais até o fim dos tempos. O silêncio só é rompido pelo chamamento dos muezzins no alto das mesquitas, convocando a humanidade a prosternar-se ante o eterno Ausente que, ante a nulidade da Terra, se torna o único Presente. E Deus, segundo o Islam, jamais esteve entre nós: foi apenas uma aparência, ou melhor, uma aparição. Nobre e espiritual o quanto se queira, mas aparição. Lâ-llláha-íla-Allah, “não há deus exceto Deus” – tudo o mais é, a rigor, inexistente. Só existe Deus, inapreensível e incorpóreo – e, do outro lado, o Nada. Num mundo esvaziado pelo niilismo, o Islam se torna a única religião viável.

Continua portanto válida — não obstante erros de detalhe, concernentes por exemplo à China –, a análise feita em 1924 por René Guénon (ele próprio um mussulmano) em Orient et Occident, segundo a qual o Ocidente só teria, daquele momento em diante, três caminhos a escolher: a reconquista da tradição cristã; a queda na barbárie e em conflitos étnicos sem fim; e a islamização geral. Os que pretendem defender o Ocidente na base do laicismo ou do ateísmo só concorrem para fortalecer a segunda alternativa, ante a qual a terceira pode surgir, mais dia menos dia, até como alternativa humanitária. A “civilização laica” não é uma promessa de vida: ela é a agonia de uma humanidade declinante que, um minuto antes da morte, terminará pedindo socorro ao Islam.

P. S. – Recuso-me terminantemente a escrever “Islã”, com til, uma aberração ortográfica inaceitável.

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