Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 22 de janeiro de 2007
Trinta anos atrás, nenhum intelectual, político ou líder empresarial brasileiro seria cretino o bastante para aceitar a mídia popular como sua principal fonte de informações. A base da nossa dieta de fatos eram os livros, as revistas especializadas, as investigações diretas em arquivos e documentos. Os jornais eram apenas artigo de consumo, material secundário de valor relativo ou duvidoso. Rádio só servia para a previsão do tempo. Televisão era para empregadinhas domésticas. No mínimo, havia sempre a diferença entre informação genuína e sua versão pasteurizada para o gosto do povão. Hoje, fico besta de ver a confiança total, a credulidade beócia com que homens letrados de primeiro escalão tomam os jornais e a TV como base de sua visão do mundo, chegando a pôr em dúvida qualquer dado de fonte primária que não tenha sido referendado pela Folha ou pelo Jornal Nacional.
Uma vez, discutindo com um militar de alta patente que, para cúmulo, tinha sido oficial de informações, lhe perguntei se tinha lido tais ou quais livros, básicos para o assunto que estávamos debatendo. Não, ele não lera nenhum. “Então de onde o senhor tira suas informações?”, perguntei. E ele, com a cara mais bisonha: “Eu leio jornal, uai.” Uai digo eu. Sou mesmo o remanescente de uma raça extinta. Não é à toa que o meu nome, de origem norueguesa, quer dizer “sobrevivente”. Com freqüência sinto que já morri, que minha alma atravessou os mundos, que voltei do além e estou tentando conversar com indiozinhos recém-nascidos, ainda perdidos no seu acanhado ambiente terrestre, persuadidos de que a floresta é o cosmos.
Quando você abre a seção de opiniões de um jornal, ou mesmo a parte cultural, não encontra nada ali que não seja a tradução, em idéias – ou arremedos de idéias –, do universo de fatos que consta das páginas noticiosas do mesmo jornal; e, quando lê as notícias, elas confirmam essas mesmas opiniões. Nas universidades, nas entrevistas de TV, nos debates do Parlamento, nada se ouve que não seja a ampliação, ou melhor, o inchaço vegetativo desse material. É tudo uma redundância perfeita, circular, fechada, repetitiva e e eternamente autofágica. Qualquer novidade autêntica, qualquer elemento de fora que ali se introduza é expelido por um batalhão de anticorpos que o devolvem às trevas da inexistência. Ninguém sabe de nada que os outros já não saibam. Ninguém diz nada que os outros já não tenham dito ou estejam ansiosos para dizer. Curiosamente, para quem vive dentro dessa atmosfera, a rarefação mesma do seu conteúdo é fonte de uma tremenda sensação de segurança. A ignorância geral confirma as ignorâncias individuais, que por sua vez a confirmam de volta, produzindo uma impressão de generalizada onissapiência. Daí esse fenômeno impressionante, tipicamente brasileiro, do qual não se encontra similar no mundo: o intelectual acadêmico radicalmente apedeuta, semi-analfabeto, ignorante até do idioma, que é consultado sobre mil e um assuntos, faz discípulos e se torna uma referência indispensável, um maître à penser, um guru.
É claro que as coisas se passam de modo diverso nos EUA. Aqui as revistas de opinião e análise são tantas que até os comentaristas de TV têm de se manter mais ou menos no nível delas ou ser desmoralizados pelo primeiro entrevistado. E mesmo os políticos que têm interesse em reforçar o prestígio da grande mídia para ser em troca reforçados por ela sabem que é tudo um teatro. Uma coisa é gostar de aparecer no New York Times, outra coisa é tomar decisões com base no que ele publica. E a fiscalização em cima da grande mídia é tão cerrada, que ninguém acima do nível médio da população vai acreditar no que sai num jornal ou noticiário de TV sem primeiro conferir a palavra dele com a de seus respectivos sites de media watch. O decréscimo irrefreável na tiragem dos grandes jornais, paralelo ao crescimento do jornalismo eletrônico, não reflete só uma mudança tecnológica, mas a preferência inevitável dada ao meio que permite a mais rápida comparação de uma variedade de fontes e suas respectivas análises. Na tela do computador você pode ler uma notícia em quinze versões diferentes em questão de minutos. Nem mesmo a televisão permite isso: os noticiários televisivos não são sincronizados, e quando o são você não pode assistir a vários deles ao mesmo tempo sem perder nada. No computador você vai e volta entre dez, vinte, trinta páginas de notícias, captando rapidamente a pluralidade das versões e dos enfoques. Daí a tendência da mídia impressa de apostar cada vez mais nos artigos longos, de análise, cuja leitura é mais fácil no papel do que na tela (o que não impede que sejam também reproduzidos simultaneamente na internet), ou então nas colunas diárias, ou semidiárias, onde o leitor se acostuma à voz e ao tom dos seus articulistas preferidos (digo voz porque muitas colunas são lidas também no rádio). E esses colunistas são em geral ótimos, dominadores perfeitos da língua inglesa, escritores na acepção plena do termo, sempre trazendo alguma novidade que pelo menos infunde vida na discussão geral.
No Brasil, ao contrário, estes artigos de página inteira do Diário do Comércio são exceções notáveis. No geral predomina cada vez mais o jornalismo em pílulas, fragmentos minimalistas comprimidos nas dimensões apropriadas a um público para o qual a leitura é um suplício (e do qual o modelo supremo, declarado e confesso, é o próprio presidente da República). Nesse recinto exíguo, não há espaço para você provar nada – o máximo que se pode é resumir uma opinião solta, isolada, desprovida da menor justificação: acho isto, acho aquilo, gosto de tal coisa, odeio tal outra. E ponto final. A idéia de demonstração, de investigação, de prova e contraprova, já desapareceu da cabeça do público ao ponto de qualquer tentativa de argumento mais longo parecer embromação ou pedantismo. Quando se contesta alguma coisa, são apenas preferências, um “adoro” oposto a um “abomino” ou vice-versa, ou então pontos de detalhe, sem relevância para a discussão central. Aliás não há nenhuma discussão central. O que há é apenas troca de afeições e desafeições na periferia do mundo.
O pior é que, quando tento explicar isso aos americanos, eles não entendem. Eles só concebem duas coisas: ou uma mídia amputada, manietada e uniformizada pela censura oficial, ou a profusão variada de pontos-de-vista que se vê numa democracia normal. Não atinam que num país possa haver tantos jornais, tantas revistas, tantos canais de TV, tantas universidades, tantos sites de jornalismo eletrônico, e nenhuma discussão efetiva. Quando digo que no Brasil não só a opinião divergente é marginalizada, mas as provas que fundamentam a divergência são expulsas da discussão, eles me perguntam se há uma KGB controlando tudo. Quando informo que não, eles já não sabem mais do que estou falando. O puro poder da burrice, a ditadura espontânea da ignorância auto-satisfeita, está aquém da sua imaginação. A KGB mental brasileira não pode existir no mundo conhecido: só no planeta Brasil. É um mistério cósmico incompreensível.
A Folha de S. Paulo é um gordo panfleto pró-comunista, mentiroso até à alucinação. Só leio essa porcaria para avaliar diariamente os progressos da mendacidade nacional, o crescimento canceroso da sem-vergonhice intelectual brasileira. Quando esse jornal choraminga que seus direitos foram violados por agentes do governo, ele se esquece de todos os serviços que ele próprio vem prestando à instalação de uma ditadura comunista no país, mediante a difamação incessante de todo anticomunismo e a omissão sistemática de notícias que possam levar o leitor a perceber as coisas com suas devidas proporções.
O sr. Otávio Frias Filho parece querer o comunismo para todo mundo e o capitalismo só para ele. Talvez ache possível tornar comunista o Brasil inteiro e conservar uma ilha de liberdade de mercado na Alameda Barão de Limeira.
Várias vezes por semana, seu jornal feito por e para meninos pó-de-arroz vem com algum novo escândalo antimilitar ou antiamericano. Sempre e invariavelmente é mentira. Ou é mentira substantiva, alteração material dos fatos, ou é mentira qualitativa, isto é, modificação das proporções e perspectivas. Neste último caso está a notícia alardeada naquele tom de indignação que já se tornou no Brasil a carteirinha oficial do sindicato dos virtuosos:
“Documentos secretos da diplomacia americana só agora revelados mostram que o governo Richard Nixon (1969-74) sabia da tortura no Brasil em 1973-74. O embaixador dos EUA em Brasília, John Crimmins, sugeriu que Nixon não cortasse créditos ao Brasil como retaliação aos abusos. Isso poderia atrapalhar a estratégia de ‘influenciar a política brasileira’ e a venda de armas ao país. O embaixador… recomendou que o governo Nixon não usasse contra o governo brasileiro o art. 32 da Lei de Assistência ao Estrangeiro, embora o próprio relatório reconhecesse que isso era legalmente possível. Por essa regra, os EUA poderiam cortar créditos financeiros ao Brasil em retaliação a supostos abusos contra direitos humanos… A pressão americana contrária aos abusos só passou a ocorrer na administração de Jimmy Carter (1977-1981).” [Cf. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1401200706.htm .]
Quer dizer: o malvado governo americano poderia amarrar as mãos dos torturadores brasileiros, mas se recusou a fazê-lo porque estava mais interessado em ganhar dinheiro vendendo armas para eles.
Para começar, a Folha assume como verdade objetiva os números fornecidos pelas entidades pró-comunistas (376 mortos), mas atribui aos “críticos dos grupos de esquerda” a contagem das vítimas do terrorismo. E fornece o número total dos comunistas mortos ao longo de todo o tempo da ditadura, mas pára a contagem de suas vítimas em 1974, obtendo 119 cadáveres. Na lista dos esquerdistas, não faz a distinção entre os que morreram em tiroteios, em acidentes ou assassinados nas prisões, dando portanto a impressão de que todos foram objetos inermes da violência estatal. Ao falar das vítimas dos comunistas, nem de longe menciona casos como o do tenente Alberto Mendes Júnior e dos militantes condenados como ‘traidores’, que morreram amarrados. A impressão que fica é que jovens idealistas de esquerda lutavam nas ruas, de peito aberto, enquanto o governo covarde, escondido em porões sinistros, se ocupava sobretudo de maltratar gente desarmada. Isso não é jornalismo: é novela da Globo, é construção ficcional, é mito.
Como invariavelmente acontece, as instituições fornecedoras de dados sobre os mortos da ditadura são apresentadas como entidades religiosas, culturais ou de direitos humanos, sem qualquer alusão à sua identidade ideológica mesmo quando são abertamente partidárias e militantes, ao passo que as fontes de informações sobre vítimas do terrorismo são mostradas pela cor ideológica, mesmo quando não têm nenhuma atividade política. O leitor sai acreditando que tudo o que se diz contra a ditadura vem de fontes neutras, imparciais e idôneas, ao passo que toda acusação aos comunistas vem com a marca do viés ideológico. É a exata inversão da realidade.
A avaliação quantitativa também é sempre errada. À luz do senso das proporções, 376 baixas ao longo de vinte anos de combates com um governo militar num país de extensões continentais são um número incrivelmente modesto, não só em comparação com qualquer guerrilha do mundo, mas em comparação com a repressão cubana à população desarmada. Fidel Castro matava essa quantidade de pessoas a cada dois meses, aliás com a ajuda dos terroristas brasileiros, que nunca viram nisso nada de mau. Não convém esquecer que a ditadura nacional não fez mais de dois mil prisioneiros políticos ao longo de duas décadas, enquanto Cuba, com uma população muito menor que a do Brasil, chegou a ter cem mil simultaneamente. Antes de fingir escândalo ante os números da repressão no Brasil, a Folha deveria considerar a alternativa que os terroristas ofereciam. A alternativa democrática inexistia. A luta era entre a ditadura mais sanguinária do continente, que financiava e coordenava as guerrilhas desde Havana, e um governo autoritário improvisado para deter, com a menor violência possível, a ascensão comunista decidida a matar um número ilimitado de pessoas “hasta la victoria siempre”.
A matéria também não fornece os pontos de comparação necessários para dar aos fatos a sua significação devida. Os EUA jamais cortaram créditos para a URSS ou a China, onde os prisioneiros desarmados que sofriam tortura e homicídio estatal se contavam aos milhões. Por que deveria fazê-lo no caso de um país onde as supostas vítimas não passavam de algumas dezenas, sendo a quase totalidade deles terroristas surpreendidos em plena ação homicida?
A perspectiva histórica dos fatos também é totalmente falsificada. A impressão transmitida ao leitor é que o governo de Washington, controlador onipotente da ditadura brasileira, não fez o que podia para refrear a violência de seus paus-mandados locais, prontos a ceder à primeira ameaça de sanções comerciais. Na verdade, o prestígio americano ante o governo de Brasília estava num dos pontos mais baixos da sua história. Por iniciativa do chanceler Azeredo da Silveira, um esquerdista histórico, os altos postos do Itamaraty foram todos preenchidos por simpatizantes comunistas – logo apelidados significativamente de “barbudinhos” pelos seus colegas, numa alusão direta à pletora de barbas por fazer na elite revolucionária cubana. O presidente Geisel, ansioso por marcar uma diferença, tendia nitidamente a uma politica terceiromundista e anti-americana, aproximando-se da China, dando preferência à Alemanha como fornecedora de materiais para a construção da malfadada usina nuclear de Angra dos Reis e, para cúmulo, fornecendo armas e dinheiro para ajudar Cuba a invadir Angola – a decisão mais hostil aos EUA já tomada por um presidente brasileiro antes ou depois disso, perto da qual as bravatas “nacionalistas” de Jânio Quadros e João Goulart se reduzem a meros puns diplomáticos. Sanções comerciais, àquela altura, soariam como provocações intoleráveis. Longe de refrear a violência estatal, só criariam ainda mais hostilidade para com os EUA. Nenhum governo do mundo correria esse risco para defender algumas dúzias de indivíduos, aliás seus inimigos. A impressão de escândalo moral que a Folha quer criar em torno das mensagens do embaixador Crimmins é inteiramente forçada e artificiosa.
Quanto à venda de armas para o Brasil, que a Folha apresenta como o motivo interesseiro por trás da decisão americana de não interferir na situação local, é preciso ser muito idiota para acreditar que ela tivesse grande valor comercial para os EUA, ao ponto de determinar decisões diplomáticas por mero desejo de dinheiro. Esse comércio era importante porque, àquela altura, era o último ponto de contato onde o governo americano e os militares brasileiros tinham interesses comuns, sendo absolutamente necessário preservá-lo como base para uma possível reconstrução das boas relações entre os dois países. Qualquer embaixador com QI superior a 12 recomendaria a seu governo o que Crimmins recomendou a Nixon. Tentar enxergar aí motivos de cobiça é malícia pueril, o equivalente folhístico da inteligência.
E Jimmy Carter não pressionou as autoridades brasileira por estar sinceramente preocupado com os direitos humanos. Ele sempre foi um protetor de ditadores comunistas sanguinários. O que ele quis impedir foi a total derrota da guerrilha latino-americana, que, graças a ele, sobreviveu ao período de repressão e floresceu ilimitadamente nas décadas seguintes, acabando por criar a maior força militar latino-americana e elevar-se à condição de dominadora monopolística do tráfico de drogas no continente com a ajuda do Plano Colômbia de Bill Clinton.