Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 12 de setembro de 2005
A lei americana é clara: o presidente da República não pode interferir nos Estados, mesmo em caso de calamidade pública, exceto a pedido do governo local. Até o quarto dia do furacão a governadora da Louisiana, Kathleen Blanco, recusou a ajuda das autoridades federais. Quando finalmente a aceitou, e de má-vontade, em menos de uma hora a ajuda chegou a New Orleans.
Tudo o que o presidente podia fazer antes disso era colocar as equipes e tropas federais de prontidão, aguardando o chamado da autoridade estadual. George W. Bush fez isso em tempo. Na Guarda Nacional e na FEMA ( Federal Emergency Management Agency ), milhares de soldados, funcionários, médicos e enfermeiros, com helicópteros e ambulâncias, remédios e armas, mapas e planos de socorro, esperaram ansiosamente, durante os quatro dias mais longos das suas vidas, o sinal para entrar em ação. Quando o sinal chegou, New Orleans já estava inundada.
Pior. Vendo que os organismos federais estavam de mãos atadas ante a teimosia da governadora, o presidente Bush passou toda a sexta-feira, dia 3, preparando com seus assessores a complexa operação jurídico-burocrática que a lei e o Congresso exigem para autorizar a intervenção federal não solicitada, um caso raríssimo e, para os padrões do orgulhoso federalismo americano, traumático. Enquanto isso, o furacão se aproximava. Pouco antes da meia-noite, sentindo que estava perdendo a corrida contra o furacão, o presidente ligou pessoalmente para a governadora, suplicando que ela assinasse o pedido. De novo ela se recusou. Mais tarde soube-se que, em reunião com sua equipe, ela havia comentado que a entrada dos federais em cena seria desmoralizante para a administração estadual. Os esforços do presidente para salvar milhares de pessoas foram frustrados pela vaidade de uma politiqueira de província. Mas não só os do presidente. A sra. Kathleen “Deixa Comigo” Blanco recusou-se também a aceitar um pacote multi-estadual de ajuda, bloqueando a entrada das tropas da Guarda Nacional e até das equipes da Cruz Vermelha que aguardavam nas fronteiras dos Estados vizinhos.
Sábado, pouco antes de as águas atingirem New Orleans em cheio, Bush telefonou novamente à governadora, insistindo que ela assinasse o pedido de socorro, decretasse o estado de emergência na Louisiana e determinasse a evacuação obrigatória das áreas de risco. A mulherzinha concordou, mas com reservas: topou a evacuação, mas parcial em vez de total, e o estado de emergência, mas ainda sem intervenção das equipes federais. Foi diante dessa prova final de má-vontade que o presidente colocou então em ação o esquema preparado desde a véspera, decretando “estado de desastre nacional” e impondo pela força a entrada do socorro federal na Louisiana.
As duas conversas da madame com George W. Bush foram gravadas. Quem quer que jogue a culpa do atraso no presidente é um mentiroso a serviço do que existe de pior na América. Resta ainda a hipótese de que seja um idiota do Terceiro Mundo, para quem a esquerda chique de Nova York é a máxima autoridade moral do planeta.
Mas não parou por aí a notável performance da sra. Blanco e do prefeito da cidade, Ray Nagin. New Orleans tinha um plano de socorro detalhado e preciso, elaborado fazia mais de um ano com base num exercício simulado e no estudo dos erros cometidos por ocasião do furacão George, de 1998. Os pontos principais eram: (1) A população das zonas de risco deveria ser evacuada completamente, e não levada para lugares como o Superdome e o Convention Center, expostos aos roubos e ao vandalismo. (2) Como seria preciso transportar pelo menos trezentas mil pessoas, todos os ônibus municipais e escolares deveriam ser utilizados para isso.
Como foi executado o plano?
(1) Avisados pelo National Hurricane Center , com dois dias de antecedência, de que seria preciso evacuar a cidade, a governadora e o prefeito não fizeram absolutamente nada. Quando o furacão chegou, fizeram pior que nada: obstinados na evacuação parcial, enviaram as vítimas justamente para o Superdome e o Convention Center, onde a desordem e a violência se repetiram multiplicadas por mil. A evacuação total só foi decretada no domingo, em obediência tardia às ordens do presidente.
(2) Os ônibus da Prefeitura e das escolas não foram usados. A recusa de mobilizá-los foi proposital. Logo antes de a cidade ser atingida, o diretor dos serviços municipais de emergência, Joseph Mathews, declarou à revista U. S. News and World Report : “Nossa política oficial é que cada cidadão assuma o encargo de arranjar seus próprios meios de evacuação.” Esqueceu-se de mencionar um detalhe: segundo o censo de 2003, aproximadamente cem mil habitantes da região não têm carro. Resultado: saíram a pé, de carona ou em viaturas de polícia, numa confusão dos diabos. Estacionados nas suas respectivas garagens, os ônibus que deveriam socorrê-los acabaram sendo eles próprios submergidos e destruídos pelas águas.
Aceito, por fim, em desespero de causa, o socorro federal veio com tudo, em menos de uma hora. Mas já era tarde. New Orleans agonizava. O prefeito nem viu nada: estava em Baton Rouge. Só voltou para botar a boca no mundo contra George W. Bush. Ironicamente, sua maior queixa contra o presidente foi a de não ter enviado os ônibus extras da Greyhound solicitados para o transporte dos flagelados. Bem, como o presidente ou a Greyhound poderiam imaginar que a Prefeitura estava com falta de ônibus porque tinha deixado os seus boiando no lava-rápido?
Mas a indignação fingida do prefeito fazia sentido. Tanto ele quanto a sra. Blanco são do Partido Democrata, que desde as últimas eleições atravessa a fase mais deprimente da sua história: perdeu a Presidência, perdeu a maioria no Parlamento, perdeu vários governos estaduais, e ainda enfrenta, pela primeira vez em décadas, a reação crescente dos conservadores nos três fronts que antes ele dominava tranqüilamente, a mídia, a educação e o debate cultural (v. South Park Conservatives. The Revolt Against Liberal Media Bias , de Brian C. Anderson, New York, Regnery, 2005). A revelação do vexame criminoso da dupla Nagin-Blanco seria a versão política do furacão Katrina arrombando portas e janelas da agremiação combalida, o raio de Júpiter abatendo-se sobre um edifício periclitante. Era preciso evitar isso a todo preço. Se antes mesmo da chegada da ajuda federal a prioridade máxima dos políticos locais já era a de salvar a própria pele, imaginem depois. Mal iniciada a contagem dos cadáveres, todos os megafones foram acionados para desviar as atenções dos fatos e jogar a culpa na única autoridade que tinha cumprido o seu dever nessa história. A tropa-de-choque foi a mesma de sempre: Hillary Clinton, Ted Kennedy, Jesse Jackson, Michael Moore, a nata da vigarice elegante, afilhada de George Soros e madrinha de Hugo Chávez. Com a simultaneidade e a uniformidade de praxe nessas campanhas, os slogans e palavras-de-ordem atravessaram o planeta, repetindo-se fielmente de Pequim a Caracas, de Nova York a São Paulo. Confiante no ilimitado poder persuasivo da absurdidade estupefaciente, o partido dos radicais de limusine apelava ao protocolo de Kyoto, que teria miraculosamente parado as águas como Moisés se não lhe faltasse a maldita assinatura americana, enfatizava inexistentes poderes presidenciais que Bush não acionou por ser cruel como a peste e, last not least , denunciava o racismo do governo federal que, ciente da maioria negra entre as vítimas do desastre, teria retardado de propósito o socorro para aproveitar o ensejo de branquear a população. O servilismo descarado com que os comentaristas brasileiros – os Magnolis, os Saders e tutti quanti — macaqueiam essas tolices ao mesmo tempo maliciosas e pueris mostra que a nossa classe letrada, em matéria de inteligência, está abaixo de qualquer redneck , de qualquer caipirão americano, daqueles que circulam pelas estradas em camionetes dos anos 50 com uma calibre 12 na cabine, ou de qualquer daqueles negões de dois metros que ficam rindo à toa e exibindo suas proteínas nos shopping centers com um CD-player na orelha, calça pela canela e camiseta até o joelho. Aqui, 55 por cento do povão, segundo pesquisas recentes, perceberam na hora o engodo. No Brasil, cem por cento das mentes iluminadas acreditaram em tudo. Ou pelo menos desejam ardentemente que você acredite.
Louca? Loucos somos nós
A sra. Heloísa Helena, pré-fabricada no Foro de São Paulo para ser a nova encarnação da moral e dos bons costumes na hipótese da desbeatificação de São Lulinha (detalhes em http://www.olavodecarvalho.org /semana/050904zh.htm ), vem-se destacando como peça importante no esquema montado às pressas, em escala mundial, para apresentar o sr. Olivério Medina como vítima inocente de uma trama fascista e impedir que ele seja entregue pela Polícia Federal às autoridades colombianas.
O sr. Medina, como ninguém ignora, é aquele emissário das Farc que, numa festinha de políticos em Brasília, contou ter trazido uma polpuda contribuição ilegal da narcoguerrilha colombiana à campanha eleitoral do PT.
Na época, a central petista de gerenciamento de danos, ativíssima na mídia brasileira, apelou à linda explicação de que tudo não passara de uma bravata com que o convidado estrangeiro tentara impressionar políticos interioranos. Mas, se o PT ameaçava processar o deputado Alberto Fraga, que apenas divulgara a denúncia de segunda mão, por que se absteve de fazer ameaça idêntica à fonte mesma de onde brotara a acusação presumidamente falsa? Quem, em seu juízo perfeito, processa o cúmplice acidental ao mesmo tempo que poupa o autor principal do delito, se não tem para isso motivos ocultos? Mais ainda, como seria possível que as Farc, a tropa armada e assassina mais rica e poderosa do continente, que alimenta pretensões de ser aceita mundialmente como força política legítima, continuassem confiando num fanfarrão leviano, sem nem cogitar em removê-lo das altas funções de representante seu num país cuja proteção e amizade são essenciais para o futuro da organização?
O fato é que, estupidificada por décadas de intoxicação esquerdista, a opinião pública brasileira, tão suspicaz contra miúdos Joões Alves e Juízes Lalaus, se acostumou a curvar-se com credulidade beócia ante qualquer desculpa esfarrapada que venha de bocas ungidas pela bênção de Che Guevara.
Agora, a operação “Tirem o Medina da Encrenca” tem sólidas razões de ser. Se alguém tem provas de que as Farc deram ou não deram dinheiro do narcotráfico para o PT, é ele. E a diferença entre esse cidadão estar no Brasil ou na Colômbia é a mesma que se viu no caso análogo do sr. Fernandinho Beira-Mar. Lá, interrogado pelo Exército, o rapaz cantou como um canário com dor de corno, explicou com detalhes como injetava anualmente no mercado brasileiro duzentas toneladas de cocaína colombiana em troca de armas contrabandeadas do Líbano. De volta ao Brasil, foi levado para estrear um show no Parlamento, onde humilhou as excelências todas com respostas atravessadas que não diziam absolutamente nada, sendo depois transportado para um presídio de segurança máxima que lhe garante, sobretudo, a máxima segurança contra perguntas incômodas. Até agora, naturalmente, nada mais disse nem lhe foi perguntado.
E se o sr. Medina não for apenas um sonso boquirroto? E se ele for o agente sério e eficiente que as Farc, tão ingênuas, coitadinhas, continuam enxergando nele? Neste caso, a declaração feita em Brasília adquire um peso bem diferente e o sr. Medina se torna uma prova viva, não só dos delitos petistas, considerados na escala menor da pura corrupção local, mas da existência de uma máquina criminosa de dimensões continentais, empenhada em subjugar dezenas de países por meio do narcotráfico, do morticínio, da fraude e da mentira organizada. Neste caso, o risco de que ele venha a ser interrogado pelos oficiais colombianos que arrancaram aquela história escabrosa do sr. Fernandinho é realmente temível e tem de ser evitado custe o que custar. Sinceramente, acho que esta hipótese é bem mais verossímil — principalmente porque casos idênticos já se observaram inúmeras vezes no mundo – do que as explicações desesperadoramente postiças inventadas até agora para encobrir as relações PT-Farc. Parece mesmo que a fábrica de explicações já desistiu de teimar na negação peremptória, a qual nem a credulidade brasileira pode continuar levando integralmente a sério, e passou à etapa seguinte: o amortecimento do fato consumado. Até a coluna do sr. Alcelmo Góes no Globo já admite que a contribuição ilegal das Farc aconteceu mesmo, só que – acrecenta o colunista — a direção do partido não sabia de nada. Decerto ela é ainda mais ingênua que o comando das Farc.
Quanto à sra. Heloísa Helena, como explicar que a autora de tantos discursos histéricos contra a corrupção do PT passe a empenhar-se com tamanho vigor no esforço de impedir que a possível testemunha máxima da criminalidade petista continue caladinha no Brasil em vez de ir cantar na Colômbia? A forma da pergunta já traz em si a resposta: uma coisa é armar um teatrinho local, afetando indignação contra o governo para salvar, como expliquei no artigo citado acima, o projeto revolucionário da esquerda, no qual, sem dúvida, os denunciados do momento viriam a ser reaproveitados amanhã ou depois, em cargos menores, talvez, mas ainda honrosos. Outra coisa é permitir que as investigações assumam magnitude internacional, com a previsível revelação de crimes incomparavelmente mais graves do que tudo o que tem vindo à tona no Brasil até agora. O furor ético da sra. Heloísa Helena parece ter os seus limites – os limites da conveniência estratégica. Se for esse o caso, não será injusto concluir que, como Dom Quijote, ela é “ loca, si, pero no tonta .”