Apostila do Seminário de Filosofia
5 de maio de 2001
Pretendendo retomar no Seminário de Filosofia alguns temas do curso História Essencial da Filosofia, que lecionei no Rio de Janeiro em 1993 e 1994, reproduzo aqui um parágrafo da Introdução que estou preparando para a edição desse curso em livro, parágrafo que será objeto de comentários na próxima aula do Seminário em São Paulo e no Rio. – O. de C.
A noção de sabedoria abrange, numa síntese inseparável, ciência, essência, consciência e existência. O sábio não apenas possui o conhecimento do essencial, mas reconhece nele a essência da sua autoconsciência e o manifesta na sua existência enquanto forma humana do essencial. Uma existência na qual se torna visível a autoconsciência do essencial é, sob todos os títulos, uma imago Dei. Mas isto só pode ser plenamente reconhecido por quem seja também sábio ou por aqueles que, não o sendo, se coloquem na perspectiva adequada para enxergar a sabedoria em vista de realizá-la no futuro. São estes os que se denominam “filósofos”. Platão dizia-os “amantes de espetáculos”. Nem todo aquele que pode apreciar a prática de um esporte ou de uma arte está em condições de praticá-los pessoalmente. Mas a apreciação é condição indispensável para a prática futura. Aquilo que você não pode sequer ver, você não pode possuir e muito menos incorporar em você como qualidade pessoal. Filosofia é visibilidade de uma sabedoria a realizar.
O fato de que, ao longo da história, os elementos dessa síntese tenham se separado ao ponto de hoje ser difícil concebê-los juntos na identidade de um homem não modifica em nada a definição originária da filosofia, mas sugere apenas que o nome filosofia foi sendo atribuído a coisas que ficam muito aquém das ambições dos primeiros filósofos. A ciência e a essência, por exemplo, entraram em antagonismo desde que Kant proclamou a impossibilidade de conhecer o que quer que seja para além dos fenômenos ou aparências. Ciência e consciência também já não parecem ter nada a ver uma com a outra desde que se admitiu a noção de ciência como um conjunto de registros padronizados que podem ser adquiridos mediante puro adestramento de aptidões cognitivas isoladas, sem qualquer comprometimento da personalidade total. Isto produz como seqüela a ruptura de ciência e existência: a ciência torna-se o desempenho de um papel social nas horas de expediente, sem relação com a vida íntima da autoconsciência. E assim por diante.
Da filosofia antiga e medieval para a moderna e pós-moderna, isto é, na passagem da filosofia como antevisão da sabedoria para o conceito atual da filosofia como profissão e disciplina acadêmica, houve portanto uma troca da figura centrípeta, onde os quatro elementos convergiam na direção da sabedoria:
pela figura centrífuga, onde os quatro elementos se afastam uns dos outros e se negam reciprocamente.
Admite-se como coisa líquida e certa, hoje em dia, que essa mudança se explica e se justifica pelo progresso da inteligência crítica, que desmantelou as antigas pretensões do saber unificado e habituou as pessoas a buscar conhecimentos mais modestos e mais seguros em campos mais limitados do conhecimento.
Mas, se um juízo qualquer não pode se alegar verdadeiro pelo simples fato de ser ambicioso, não se tornará mais verdadeiro pelo simples fato de ser modesto. Ademais, os elementos separados que resultam do afastamento centrífugo nunca se tornam completamente independentes, pois o quadro unificado que lhes dá sentido permanece como plano de referência no fundo, apenas reduzido a um esquema normativo “ideal” e “irreal” que, se não pode ser dispensado de todo, nem por isto é reconhecido como conhecimento efetivo. Este não é o menor dos paradoxos da moderna ciência acadêmica, onde o esquema normativo sobre o qual se erguem os critérios de validade do conhecimento não é considerado ele próprio um conhecimento, muito menos um conhecimento válido.
De outro lado, uma evolução histórica não é, por si, prova da validade dos resultados a que conduziu. Que as coisas tenham tomado determinado rumo não significa que esse fosse o único ou o melhor rumo possível, se bem que o ensino universitário, ao mesmo tempo que professa aceitar a irredutibilidade kantiana do valor ao fato, deduz dessa mera sucessão de fatos um juízo de valor segundo o qual as vias de conhecimento que foram abandonadas no curso do tempo devem ser condenadas como inferiores, superadas ou mesmo pecaminosas.
Da nossa parte, vamos aqui ignorar solenemente esse preconceito, pois o que nos interessa não é aquilo em que a filosofia se tornou historicamente, no curso de uma evolução a que só um injustificável pressuposto metafísico poderia dar o caráter de coisa necessária e insuperável, e sim o que a filosofia tem de ser necessariamente, como essência supratemporal, para poder sofrer essa evolução ou qualquer outra evolução temporal concebível. Pois, das duas uma: ou aquilo em que a filosofia se tornou conserva algo do que ela era originariamente, e neste caso há uma essência que transcende e abrange essas duas formas temporais; ou as múltiplas coisas que hoje se denominam “filosofia” já nada têm a ver com a filosofia antiga e portanto a evolução que levou desta àquelas deve ser considerada uma simples sucessão empírica de fatos sem conhexão lógica íntima, e cujo conhecimento pouco ou nada nos revelará sobre o que é a filosofia, cabendo inclusive dissolver este conceito numa multidão de coisas díspares. Mas, neste último caso, não se vê como meros fatos intelectuais inconexos poderiam se erguer como critérios de valor para julgar e impugnar a filosofia antiga, mesmo em nome de uma suposta noção de “progresso”, que, nessas condições, perderia todo conteúdo conceptual identificável. Portanto, ou o estado atual da filosofia é apenas o resultado de uma evolução lógica (se bem que não necessariamente a melhor ou a única possível) do próprio conceito originário de filosofia, nada significando sem referência a este, ou então ele não tem nada a ver exceto empiricamente com a filosofia antiga e não pode servir de base para julgá-la. Em qualquer dos dois casos, o primado da essência da filosofia sobre suas manifestações temporais é resolutamente afirmado, ainda que inconscientemente ou a contragosto.
Para esclarecer essa essência, temos de partir da sua concepção originária como visibilidade da sabedoria ou contemplação da imago Dei.