Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 23 de dezembro de 1999

Os banqueiros e industriais que alegremente subsidiam a “revolução cultural” esquerdista não percebem estar ajudando a doutrinar o povo segundo os cânones de uma ética na qual o maior dos crimes é ser rico. Não excluo a hipótese de que colaborem nesse empreendimento movidos por um fundo de consciência culpada: cada um deles sente que sua riqueza não foi obtida por meios totalmente lícitos, e imagina que ajudando a falar mal da sua própria classe está, de algum modo, purgando seus pecados.

Acontece, porém, que ninguém pode livrar-se de suas culpas pessoais jogando-as sobre as costas da entidade coletiva a que pertence, na qual se misturam indistintamente os bons e os maus. Esse tipo de ablução fingida não se inspira numa sã moralidade, mas numa ética bárbara, doente e perversa.

Para piorar ainda mais as coisas, a destruição do capitalismo, a que essa conduta concorre da maneira mais ostensiva, não trará nunca a justa punição dos capitalistas desonestos, mas, como acontece em toda precipitação anárquica de uma onda revolucionária, distribuirá os efeitos da violência a esmo entre culpados e inocentes, despejando a mais pesada cota de sofrimentos precisamente sobre aqueles que não têm meios de defesa: os pobres. Entre os 100 milhões de vítimas do comunismo, chegava a 10 milhões o número de capitalistas, de ricos, de grandes proprietários? Talvez nem tanto. Não havia tantos ricos na Rússia, na China, em Cuba (se houvesse, o próprio número deles seria um fator de estabilidade conservadora capaz de deter a revolução). Noventa por cento ou mais das vítimas do comunismo não tinham onde cair mortas e por isto mesmo caíram no sepulcro dos pobres: a vala comum. O capitalista que financia comunistas não alivia em nada suas culpas pessoais, acumuladas ao longo de mil e uma concessões à força das circunstâncias: apenas acrescenta, à infinidade de seus “pecados úteis”, um crime inútil e sem sentido.

Mas não são só os capitalistas que se acumpliciam com esse crime. Um fenômeno desconcertante que, em circunstâncias intelectuais normais, deveria ter chamado a atenção dos sociólogos, mas que no momento lhes passa totalmente despercebido, é que no Brasil o apoio às esquerdas cresce justamente nas alas mais prósperas da alta classe média, e cresce, por incrível que pareça, na razão mesma dessa prosperidade. Em parte alguma isso é mais visível do que nos bairros bem arborizados de São Paulo onde se concentram os eleitores do dr. José Gregori.

Não há nenhum meio de explicar isso senão pela insegurança do homem que prospera no meio de uma multidão de concorrentes menos felizes e, por isto mesmo, forçosamente mais invejosos. A inveja tem o poder de acionar, no cérebro das vítimas, um conjunto de reações automáticas destinadas a exorcizá-la, que constituem todo um complexo ritual de camuflagem: o homem próspero de classe média resguarda-se do olhar perfurante do invejoso desviando-o para alvos genéricos – “o capitalismo”, “a sociedade de consumo”, etc. – e o neutraliza aliando-se com ele no ataque comum a um bode expiatório que, tendo ademais a reconfortante vantagem de estar distante demais para poder ser atingido, garante que toda a operação não passará dos efeitos verbais. O invejoso, se é por sua vez invejado por outro menos próspero ainda, pode passar adiante o mesmo jogo de impressões, e assim ad infinitum .

Ninguém parece se dar conta de quanto essa eterna vigilância contra a inveja mútua alimenta a própria inveja na medida em que a consagra como mola mestra das ações e reações humanas. Esse estado de coisas reduz a vida da nossa classe média alta a um permanente jogo de simulações que termina por corromper todos os sentimentos humanos e rebaixar as consciências ao nível da insensibilidade mais pétrea. Que um personagem tão manifestamente postiço como o cardeal Arns passe nesses meios como um emblema das virtudes já mostra o quanto, aí, o autêntico e o falso se tornaram absolutamente indiscerníveis.

Também não é de estranhar que, tanto nesses meios quanto nas camadas mais populares que deles copiam seus padrões de conduta, a virulência do discurso moralista cresça na razão direta da geral dessensibilização moral. Os símbolos convencionais de moralidade e bom-mocismo ganham prestígio na mesma proporção em que desaparece a capacidade espontânea para o julgamento moral direto.

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