Merquior para idiotas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 21 de agosto de 2015

          

Sempre que aparece algum intelectual conservador ou liberal, a Folha de S. Paulo se apressa a infundir nos seus leitores a impressão de que se trata de fenômeno inusitado, anormal, necessitado de explicação.
Nisso consiste uma das principais missões das suas páginas ditas “culturais”: alimentar a crença de que as pessoas inteligentes e cultas são normalmente de esquerda. A premissa subjacente, sem a qual essa idiotice não teria a menor credibilidade, é que os diretores e redatores da porcaria são, eles próprios, não apenas inteligentes e cultos, mas o padrão e medida da cultura e inteligência alheias.
Só que para acreditar nessa premissa é preciso ser inculto e burro.
Numa era que produziu Chesterton e Yeats, Bernanos e Mauriac, Eliot e Hopkins, Borges e Lawrence, Papini e D’Annunzio, Faulkner e Céline, Broch, Hofmansthal, George, Solzhenitsyn e uma infinidade de outros gênios reacionários, acreditar que a alta cultura vem predominantemente da esquerda só pode ser coisa de consumidores de literatura lowbrow – exatamente como a plateia de estudantes e professores universitários brasileiros a que se dirige a Folha de S. Paulo.
A Folha não é um caso isolado: praticamente toda a “grande mídia” brasileira é cúmplice dessa palhaçada. O jornal do sr. Frias apenas capricha mais na performance.
Mas, quando a superioridade intelectual de um autor direitista é visível demais, ou quando ele faz mais sucesso do que a padrão da decência esquerdista pode admitir, então é preciso apelar a um de dois remédios desesperados. O primeiro é suprimir totalmente o nome da criatura, na esperança de que desapareça da memória popular. Adotaram esse tratamento com pelo menos quatro dos maiores escritores brasileiros: Gustavo Corção, Antônio Olinto, João Camilo de Oliveira Torres e o embaixador J. O. de Meira Penna. Quando o procedimento falha, não logrando fazer com que ao sumiço do nome se siga a desaparição das obras nas prateleiras das livrarias, então a única saída é o gerenciamento de danos: proclamar que o cidadão, sendo tão manifestamente genial, não podia ser, no fundo, bem no fundo, tão reacionário quanto parecia. Talvez fosse até um pouquinho esquerdista.
O caso mais extremo e mais significativo é José Guilherme Merquior. Decorrido quase um quarto de século da sua morte, ainda é preciso recorrer a esse expediente para atenuar o desconforto sem fim que sua existência provoca nas almas sensíveis da esquerda chique.
A isso dedicou-se o repórter Marco Antônio Almeida na edição do último dia 23, concedendo ao escritor, com generosidade olímpica, o estatuto de “conservador civilizado”, e separando-o, mediante essa idiossincrasia sublime, da horda de bárbaros e trogloditas onde avultam os nomes de Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Oliveira Lima, Ruy Barbosa, Eduardo Prado, Gilberto Freyre,  Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues, João Camilo, Gustavo Corção e tantos outros, dos quais o autor destas linhas é com certeza o menor e o mais canibal.
Por desencargo de consciência, o repórter, antes de escrever essa coisa, me enviou sete perguntas, de cujas respostas, num total de três páginas, ele aproveitou exatamente duas linhas, tendo-me feito trabalhar para o sr. Frias não somente de graça, mas em vão.
Reproduzo aqui essas respostas, na íntegra, para que o leitor confirme por si mesmo que elas já neutralizavam antecipadamente a trapaça auto lisonjeira do esquerdismo folhístico, motivo aliás perfeitamente razoável para que não fossem publicadas.
1) Como o senhor avalia o legado da obra de Merquior hoje? É um nome importante na história do pensamento liberal brasileiro?
– Fundamental sob todos os aspectos. Ninguém no Brasil sintetizou melhor a essência do “argumento liberal” – como ele mesmo intitulou um dos seus livros – nem mostrou mais claramente o antagonismo que existe entre os ideais liberais e as modas intelectuais “pós-modernas”.
2) Merquior escreveu no prefácio de “As Ideias e as Formas”: “é possível atacar o marxismo, a psicanálise e a arte de vanguarda sem ser reacionário em política, ciências humanas e estética? ”. Você acha que ele conseguiu equilibrar esses fatores?
– Críticas ao marxismo, à psicanálise e à arte de vanguarda são, quase que por definição, independentes de qualquer tomada de posição ante as correntes políticas do dia. Não vejo a menor necessidade de “equilibrar” uma coisa com a outra.
Por outro lado, é certo que, na sua fase “liberal” ele não escreveu nada de tão bom quanto Saudades do Carnaval, produto ainda da sua formação esquerdista.
3) Podemos, talvez com alguma simplificação, dividir a obra de Merquior em dois grupos – os livros de crítica literária e os livros de crítica cultural/filosofia/política. Hoje, qual desses grupos teria mais relevância?
– Os dois. Tudo o que o Merquior escreveu é indispensável à formação de um brasileiro que se pretenda letrado.
4) Como você situa “De Anchieta a Euclides” em relação a outras histórias clássicas de nossa literatura (Candido, Bosi, Wilson Martins, por exemplo)?
– É, de longe, a melhor de todas. Foi uma desgraça que o Merquior não tivesse concluído o segundo volume.
5) Merquior recebeu muitas críticas também. Algumas acusações feitas a ele por alguns críticos e acadêmicos, em uma breve pesquisa que fiz:
– excesso de citações (para alguns ele seria autor não de ensaios, mais de notas de leitura, tamanha a quantidade de notas em seus textos);
– ausência de ideias originais;
– estilo burocrático e árido, vulgar em certos aspectos (como ao usar o termo “lacanagem”).
O que acha disso?
– A primeira dessas três críticas é coisa de caipira. O quadro de referências do Merquior é o universo da erudição acadêmica, onde a citação meticulosa de fontes é obrigação elementar. Ademais, quando um escritor cita autores e livros que desconheço, agradeço-lhe a gentileza e imediatamente vou comprar os livros. Os que, em vez disso, o criticam pelo benefício que receberam, são ingratos, preguiçosos e invejosos. Non raggionam di lor…
A ausência de ideias originais é um fato, mas não vale como crítica. Não se critica um autor por não ser algo que ele nunca quis ser. O Merquior nunca foi um filósofo. Foi um historiador, crítico, erudito e ensaísta. Sua esfera preferencial de ação era a interpretação das obras alheias, do pensamento alheio. Que é que há de errado nisso? Além do mais, que ideias seus críticos produziram, além de ideias de jerico?
O terceiro ponto é interessante. O estilo do Merquior era eminentemente acadêmico, e ele procurava aliviá-lo introduzindo aqui e ali alguns arranjos do sermo vulgaris, mas são elementos soltos, que não se integram no todo por um esforço de síntese estilística. É só por isso que dão má impressão, embora alguns sejam de uma comicidade notável. O melhor, no meu entender, é “derrida ou desce”.
O verdadeiro ponto fraco do Merquior, do ponto de vista político, foi que, rompendo ideologicamente com a esquerda, ele continuou psicologicamente dependente de seus antigos companheiros de esquerdismo, aos quais cortejava com delicadezas de namorado enquanto eles o achincalhavam e difamavam. Ele queria convencê-los, não vencê-los, enquanto eles só queriam destrui-lo. Ele nunca percebeu a diferença.
6)  Outra crítica contundente diz que a visão de Merquior tendia ao conformismo, ao reacionário. Isso por conta da defesa que ele fazia da sociedade moderna. De acordo com essa visão, Merquior, em sua defesa da sociedade racional, capitalista, liberal e cientificista, não via razão para repulsa ou condenação diante do mundo atual. Ou seja, Merquior contesta a arte modernista, de vanguarda, mas não a sociedade que a produz. Indo até mesmo contra seus preceitos de interação entre arte e contexto histórico, ele dissociava a estética e produção vanguardista do meio que a produziu. O que você acha desta crítica feita a ele?
– Em primeiro lugar, quem disse que o reacionarismo é um defeito? Os críticos do Merquior partem dessa premissa como se fosse uma verdade auto evidente, o que só mostra que são bocós deslumbrados, “verdadeiros crentes” desprovidos de espírito crítico. Quase todos os grandes escritores e pensadores, de Homero a Shakespeare, Goethe e Dostoievski, de Platão e Aristóteles a Leibniz e Schelling, foram reacionários. Devemos jogar tudo isso fora só para agradar a algum semianalfabeto esquerdista que se acha intelectual?
É verdade que a argumentação do Merquior em defesa do liberal-cientificismo está cheia de erros, eu mesmo já assinalei alguns, mas aqui não é o lugar de discutir isso.
Em segundo lugar, associar os desvarios da vanguarda ao “capitalismo tardio” é uma bobagem descomunal inventada por Gyorgy Lukacs só para bajular o governo soviético. “A sociedade”, como tal, não produz arte nenhuma. Quem a produz são indivíduos autônomos, no mais das vezes pensando contra a sociedade. Só os medíocres e conformistas são “filhos do seu tempo”. Os gênios criadores são pais dele.
7) A identificação de Merquior como um liberal, um intelectual de direita, e a participação no governo Figueiredo prejudicaram a recepção da obra dele?
– Certamente. O Merquior tinha essa fraqueza de querer subir na hierarquia do funcionalismo público, e com frequência era um pouco puxa-saco de seus superiores. Isso pode ter queimado a sua reputação e até feito mal à sua saúde, mas não prejudicou em nada a sua produção intelectual. E não creio que aparatchniks, servidores profissionais de totalitarismos sangrentos, tenham a menor autoridade moral para criticar o Merquior nesse ponto.

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