Mensagem muito valiosa que recebi do antropólogo Mércio Gomes, ao qual muito agradeço. Comentarei o seu conteúdo mais tarde.
Caro Prof. Olavo de Carvalho,
Me chamo Mercio Gomes, sou antropólogo, ensino na UFRJ, autor de alguns livros entre os quais O Brasil Inevitável (Topbooks, 2019) e Democracia em Convulsão (KDP 2020). Fui colaborador de Darcy Ribeiro no último governo Brizola (1991-94) e presidente da Funai (2003-2007).
Fui amigo e discípulo de Luiz Sérgio Coelho de Sampaio e ao redor dele e a propósito de seu livro Aristóteles em nova perspectiva: Introdução à teoria dos quatro discursos, é que tomo seu precioso tempo para lhe apresentar algumas questões sobre a filosofia no Brasil.
Seu livro sobre Aristóteles é certamente um marco extraordinário no panorama filosófico brasileiro e mundial. Sua intuição de verdade, certamente que derivada de um grande conhecimento e familiaridade com o Estagirita, e sua argumentação sobre os quatro grandes livros dele comporem elementos constitutivos e complementares de uma lógica me parecem de grande valor. Custo a crer que não esteja sendo discutido no Brasil, que pouca importância lhe tenha sido dada (e a pouca foi negativa, no caso da polêmica canalha na revista Ciência Hoje), e imagino que se tivesse traduzido para o inglês, alemão ou francês haveria discussões em torno de sua argumentação preciosa e original. Transparece no seu livro um certo nível de especulação, como não poderia deixar de ser, pela tessitura que você compõe com os quatro livros. Enfim, me parece, não sendo eu filósofo, mas mero antropólogo interessado em filosofia, um grande livro.
Sobre L.S.C. de Sampaio, tomo como possível que você o tenha conhecido no Rio de Janeiro, nos idos de 1980-1990 e já neste século, se não pessoalmente, quiçá por estarem escrevendo com vigor sobre temas críticos que se assemelham bastante, bem como por via de amizades mútuas, tais como a de Almir Andrade e Miguel Reale, que fizeram a Academia Brasileira de Filosofia. Sampaio morreu em 2003 deixando publicada apenas uma pequena parte de sua obra. Os livros Lógica Ressuscitada (1998) e Lógica da Diferença (2001), ambos pela EdUERJ, e Filosofia da Cultura, por uma editora que não mais existe, são livros muito instigantes que demonstram a profundidade de uma filosofia/lógica bastante robusta e com aplicações práticas e empíricas em temas dos mais variados, como física, matemática, economia, psicologia, cultura e até teologia. Quisera que você os pudesse ter lido. Mas, nessa ausência, queria expor o tema central da filosofia de Sampaio para chegar ao ponto que queria instigá-lo com algumas questões.
Sampaio define lógica como uma espécie de ciência do pensamento em suas várias modalidades de reconhecer e conceituar um objeto qualquer. A lógica humana forma um sistema de cinco lógicas, sendo as duas primeiras chamadas fundamentais, quais sejam, a lógica da identidade (anotada como log I) e a lógica da diferença (log D), a partir das quais, por um processo de sintetização ascendente se formam as três lógicas seguintes: lógica dialética (log I/D), lógica sistêmica (log D/D) e a lógica hiperdialética (log I/D/2), esta última, englobando as quatro lógicas básicas, faz cada um exercer sua tarefa de acordo com a necessidade que o objeto transparece, unifica o todo num sistema transcendente e aberto que é capaz de ir além da ciência, abrindo possibilidades de novos conhecimentos, mas sabendo-se limitada ao homem e muito aquém de lógicas superiores que espelham na imaginação do cristianismo entes como anjos e demônios e o Absoluto. Se o homem é hiperdialético, isto é, carrega em si uma lógica de valor quinquintário, Deus ou o Absoluto estaria no nível septidecintário, ou algo assim.
Muito do modo como Sampaio explica o reconhecimento dessas lógicas está presente em alguns diálogos de Platão, em especial, o Teeteto, Parmênides, Sofista e Crítias. Nesses diálogos vê-se Platão tentando demonstrar o que é o ser através de quatro vertentes em que ele se manifesta, as quais, para Sampaio, são precisamente as quatro lógicas básicas contidas em seu sistema. São estas, em Platão, o ser como Um, o múltiplo, o mesmo e o múltiplo do múltiplo (ou o ser com os outros). Este último viria a ser identificado por Aristóteles como o sistema nas Analíticas e nos livros do Órganon.
A lógica I, da identidade, teria sido primeiramente intuída poeticamente por Parmênides, quando ele define que o “ser é”, e que o não-ser não é. Isto é, ele define que o ser existe, que as coisas existem, que a verdade é clara e cristalina por si só, como a poesia o é. Para Sampaio, é com Parmênides que a verdade surge como áletheia, como pura realidade ou existência. A Log D surge com Heráclito, na mesma época, quando este diz que o ser e o não-ser são e não são o mesmo; isto é, que a ambiguidade, a indefinição, o contínuo, o passageiro, o movimento existe lado a lado, por assim dizer, com o ser em si. Essas duas lógicas, consideradas fundamentais, seriam autônomas, cada qual definindo uma modalidade do ser. Mas, na verdade, a log D subsume e pressupõe a existência da lógica I. Isto é, a diferença resguarda desde já uma identidade abscondida ou talvez recalcada. (Estou tentando explicar nos meus termos, não necessariamente nos termos mais axiomatizado de Sampaio.)
As demais lógicas derivam de um processo de sintetização dialética generalizada ou aufheben. A log I contrastando com a log D resulta na sintetização dialética, daí a log I/D. Esta lógica subsume as lógicas constitutivas I e D, recalcadas, para formar uma nova entidade. A verdade da log I/D é vitória e sua principal característica é a formação da totalidade pela presunção que nada lhe escapa. Segundo Sampaio, a log I/D foi concebida por Platão através dos seus diálogos socráticos. Ela resolve a questão do Um e do Múltiplo, da episteme e da doxa pelo processo de síntese dialética que dá no eidos, a forma que está acima das meras realidades empíricas. Eidos aqui é concebido como o conceito, aquilo que unifica as diferenças, a multiplicidade, a empiria das coisas reais. A log I/D é a lógica do conceito platônico. Na modernidade é que vai se tornar a lógica do processo histórico via Hegel.
Já a log D/D, a lógica sistêmica, a lógica aristotélica propriamente dita, a lógica dos predicados e das categorias, do silogismo e da ordem crescente, a lógica da ciência, é criado precisamente por Aristóteles em suas Analíticas e outros livros contidos no Organon. Aristóteles reconhece e propõe que o ser é também ser do sistema, existe numa ordem, no espaço, no tempo, e em várias qualidades categoriais. (Nesse ponto, estou me espelhando no que entendi de suas palestras sobre categorias e no seu livro sobre Aristóteles).
Enfim, como se pode ver, as quatro lógicas propostas por Sampaio correspondem quase que ipsis litteris à sua proposta sobre os quatro discursos de Aristóteles que se constituem em modalidades do conhecimento. Na sua interpretação da Poética, a verdade surge como áletheia, como algo transparente em si, por si mesmo. Na sua Retórica, a imaginação transborda, a indefinição, o paradoxo e todas as possíveis mazelas do pensamento estão aí contidas em ebulição, em confronto, em indecidibilidade. Em seguida, a Dialética tal como você a vê é o confronto se aproximando de uma conclusão, de uma definição, mesmo que temporária; caso contrário, ficaria só numa eterna erística. E, pois, o seu modo de ver as Analíticas, fica mais que evidente a ideia de lógica tal como costumeiramente entendida, pelas argumentações silogísticas e ordenadoras (vide a ascensão espécie, gênero, classe, filo, etc).
No sistema lógico-filosófico de Sampaio, há uma quinta lógica, que surge para coordenar as demais lógicas, dar-lhe consistência e propósito maior, como se fora uma reitora das demais lógicas, capaz de instruir o ser humano a usar tal ou qual lógica para compreender tal ou qual objeto. Se for para entender a essência do ser, usa-se a log I; se for para ver suas variações e paradoxos, aí está a log D; se for para entender abstratamente algo de muita variação empírica, eis a log I/D; e para a ciência, a verdade por adequação, o estudo do recorte da realidade, está aguardando a log D/D. A quinta lógica se chama hiperdialética (anotada com I/D/D ou I/D/2) porque ela sintetiza as demais quatro lógicas de um modo abrangente, porém não se totalizando, mas deixando que cada uma delas funcione ao seu mister, como necessário.
A proposição da lógica hiperdialética e desse sistema é, naturalmente, feito de Sampaio. Ao que parece nenhum filósofo teria proposto deste modo a aventura de que o espírito humano deve ser percebido como transcendental e ao mesmo tempo bem capaz de se medir no campo terrenal, por assim dizer. Vale dizer que a inteligência dos animais e até das plantas também podem ser entendidas por este sistema, só que, naturalmente, em níveis muito mais baixos, como pré (pré-prén)-lógicas. Bem, há muitas mais consequências embutidas no sistema lógico hiperdialético de Sampaio, o qual pode ser visto no seu livro Lógica Ressuscitada.
Bem, agora chegamos no ponto crucial dessa singela missiva. Que imensa coincidência é esta entre uma de suas ideias e proposições máximas como filósofo e igualmente as ideias e proposições de Sampaio? De onde chegaram ao número quatro como nódulo da visão filosófica de Aristóteles, e cinco como intuição do pensamento humano? É interessante notar aqui que Aristóteles apresentou oito categorias que, acho, você sugeriu que podiam ser resumidas em quatro; e que além dos quatro elementos ele propôs o quinto, o éter, ou a quinta-essência.
Ultimamente tenho lido um biólogo inglês, Rupert Sheldrake, que, aliás, você cita, segundo meu amigo Cesar Gordon, em alguma de suas palestras, que trata da comunicação entre mentes por via de um meio que ele chama de “ressonância morfogênica”, a qual acontece principalmente entre seres próximos. Será que, tal como, independentemente um do outro, Leibniz e Newton descobriram o cálculo infinitesimal, você e Sampaio chegaram a visões semelhantes? Por outro viés, será que não seriam também ideias congênitas, já que ambos eram leitores admirados de Mário Ferreira dos Santos, que trata da “dialética concreta” como algo mais do que a dialética? Confesso que estou ainda tateando sobre a influência possível de Mário Ferreira dos Santos sobre ambos filósofo. Confesso que só recentemente comecei a ler alguns livros de Mário Ferreira dos Santos, inclusive estou lendo agora seu (Olavo) roteiro de leitura de Mário, onde pesquei sua menção sobre esse tipo de dialética, embora não a tenha lido e estudado ainda.
Por tudo isso, me pergunto se há uma explicação razoável e consequentemente um narrativa mais abrangente e inteligente sobre essa feliz coincidência. Este é o motivo dessa minha intempestiva comunicação. Se você puder me iluminar com dados ou interpretação seria muito importante não só para mim quanto para a filosofia brasileira, aqui representada por dois luminares.
Com expectativa positiva, sou, com respeito e alegria d´alma,
Mércio Gomes

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