Debate entre Olavo de Carvalho e Alaor Caffé Alves – Parte II
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 19 de novembro de 2003.
OLAVO DE CARVALHO : Muito bem. Agradecendo muito a Thiago Magalhães e a seus colegas pelo convite, constato, em primeiro lugar, que o meu interlocutor é bem menos marxista do que me disseram, o que de certo modo facilita o trabalho, porque a análise do marxismo é sempre um problema quase impossível de resolver, pela multilateralidade dos seus aspectos. Vocês vejam que o marxismo é uma filosofia, é uma teoria econômica, é uma ideologia, é uma estratégia revolucionária, é um regime político, é um sistema ético-moral, é uma crítica cultural, é uma organização política da militância: ele é tudo isso ao mesmo tempo. Ora, vocês não encontrarão em todo o mundo, em toda a história humana, nenhum fenômeno parecido: não existe nenhum outro fenômeno que abarque de maneira unificada tantos aspectos ao mesmo tempo. Isso quer dizer que o marxismo nos coloca desde logo o problema de que não sabemos a que gênero de fenômenos ele pertence.
Se buscamos a definição do marxismo, segundo o velho critério aristotélico do gênero próximo e da diferença específica, nós já nos esborrachamos no primeiro degrau da escada por não haver um gênero próximo. Isso significa que toda a tentativa de discussão do marxismo imita aquele célebre caso dos cegos com o elefante, em que um pega a perna e diz que o elefante é um poste, outro pega a tromba é diz que é uma cobra, outra pega a orelha e diz que é uma folha de papel, e assim por diante. Aqueles que analisam o marxismo no terreno econômico – o pessoal liberal tem a mania de fazer isso, o que é até covardia, porque a crítica liberal da economia marxista é tão arrasadora que este é o campo mais fácil para discussão –, quando pensam que estão ganhando a discussão, o marxista passa para outra clave (por exemplo, a da crítica moral do capitalismo) e pronto: aquele belíssimo trabalho que o liberal fez está perdido. Se nós atacamos o materialismo e o anticristianismo do marxismo, também quando estamos quase vencendo a discussão, o marxista tira do bolso do colete a teologia da libertação, dizendo que é mais cristão do que nós. Então, realmente estamos lidando com um ente proteiforme e indefinido. É evidente que a análise e a crítica racional esbarram em dificuldades tão imensas que, sinceramente, não vale a pena prosseguir nesta direção. A sucessão de críticas ao marxismo que se fizeram desde o século XIX até hoje, não digo que seja inútil, mas pega somente detalhes e partes às vezes insignificantes do problema.
Nós não vamos sair disso se não conseguirmos subir um grau na escala de abrangência e de abstração, e conseguirmos dizer, afinal de contas, o que é o marxismo. Então, abreviando quinze ou mais anos de estudo que me levam a esta conclusão, vamos começar por definir o marxismo pelo seu gênero próximo. Eu tenho a pretensão de ter encontrado esse gênero próximo: o marxismo não é uma filosofia política, não é uma economia, não é um partido político, não é nenhuma dessas coisas isoladamente, mas é uma cultura , no sentido antropológico do termo. Uma cultura significa um universo inteiro, um complexo inteiro de crenças, símbolos, discursos, reações humanas, sentimentos, lendas, mitos, sentimentos de solidariedade, esquemas de ação e, sobretudo, dispositivos de autopreservação e de autodefesa. Para toda cultura existente, o desafio número um é a sua autopreservação. Isto quer dizer que o marxismo, ao longo de sua história, desenvolveu uma infinidade de meios de autopreservação cujo funcionamento, inclusive material, dificilmente é objeto de curiosidade das pessoas. Não deixa de ser estranho que o marxismo, que professa tudo analisar pela sua base econômica, jamais seja estudado pela base econômica da sua própria expansão. Portanto, nós temos a impressão de que as idéias marxistas, exatamente como as idéias do antigo idealismo, se propagam no ar sem nenhuma ajuda humana e sem nenhuma sustentação econômica.
Quando tive a curiosidade de perguntar isso pela primeira vez eu era um jovem militante do Partido Comunista e, à medida que fui descobrindo os dados a respeito, eu vi que o próprio marxismo era um fenômeno econômico dos mais interessantes. Quando digo que o marxismo é um fenômeno sui generis , que nunca houve um complexo cultural assim tão vasto, há um outro ponto no qual o marxismo também é recordista. Quando na União Soviética se fundou a entidade chamada NKVD, que depois veio a se chamar KGB – mudou de nome inúmeras vezes –, este era um serviço de uma abrangência que aqui nós dificilmente conseguimos imaginar. A KGB, já entre as décadas de 50 e 60, tinha quinhentos mil funcionários, sem contar toda a militância comunista espalhada pelo mundo (o que era um serviço auxiliar também obrigatório), com o que se pode somar mais dez ou vinte milhões; então, quinhentos mil funcionários mais vinte milhões de auxiliares. As verbas da KGB superavam em muito as de todos os serviços secretos ocidentais somados, sendo que, por exemplo, os Estados Unidos não tiveram um serviço secreto para atuar no exterior senão durante a Segunda Guerra – os Estados Unidos desconheciam isso. Isto quer dizer que a ação da KGB na intelectualidade européia começa já na década de 20, havendo ali um festival de compra de consciências como nunca houve na história humana. A respeito disso, recomendo um livro de Stephen Koch, Double lives (“Vidas Duplas”), que trata exatamente da apropriação da intelectualidade européia pela KGB, através não só de mecanismos normais de persuasão mas realmente da compra de consciências, de chantagens etc. Isso já na década de 30. A respeito também deste período há um outro livro que eu lhes recomendo: chama-se Hollywood Party , de Kenneth Billingsley, sobre o Partido Comunista no cinema americano. Vocês já ouviram falar da expressão “lista negra”? Ela se tornou famosa no mundo quando alguns comunistas foram convocados a depor pela Câmara dos Deputados (as pessoas pensam que foi Joe McCarthy, mas nenhum artista de Hollywood jamais compareceu perante a comissão McCarthy e sim perante uma outra comissão totalmente diferente na Câmara dos Deputados): havia uma lista negra no cinema americano desde quinze anos antes, que se compunha das pessoas que não colaboravam para o Partido. Tudo isso tem aparecido nos últimos anos dez ou doze anos graças à abertura dos arquivos de Moscou.
Eu digo isso para vocês terem uma idéia do sustentáculo econômico e organizacional da difusão das idéias marxistas. Nenhuma outra no mundo jamais teve isto a seu serviço. Notem bem que a eficácia desse mecanismo ainda nos atinge no Brasil. Onde quer que haja cinco ou seis professores marxistas – não no sentido do prof. Alaor Caffé, pelo amor de Deus, porque já vi que ele é um homem sensato –, mas no sentido de um militante efetivamente comprometido, há uma equipe de cães de guarda fielmente empenhada em proibir o acesso ao que quer que não interesse ao Partido (qualquer que seja o nome do partido, chame-se Partido Comunista, Worker’s Party, como quiser). Eu vou lhes dar um exemplo de como se faz isso: este livro chama-se Dicionário Crítico do Pensamento da Direita . É uma obra feita por 140 professores universitários brasileiros; portanto, é representativa de uma classe. Esses 140 professores trabalharam durante seis anos, com verbas do CNPq e mais dois patrocínios privados, para nos dizer o que é o pensamento de direita. Ora, depois de ter sido militante do Partido Comunista, eu me dediquei durante vinte ou trinta anos a estudar também o pensamento de direita e tenho a pretensão de conhecê-lo. Muito bem, nenhum dos filósofos direitistas que eu estudei está aqui: nem Russell Kirk, nem Leo Strauss, nem David Horowitz. Em suma, todos os pensadores que fizeram a cabeça do movimento conservador nos Estados Unidos e na Inglaterra estão totalmente ausentes. O que representa o pensamento de direita aqui? Por exemplo, Goebbels, Julius Streicher (este era um maluco pedófilo que nem o partido nazista suportou: ele foi expulso do Partido Nazista por pedofilia e consta como pensador de direita!). Então, você compra uma obra baseado na confiabilidade acadêmica de seus autores e tem ali um bloqueio total do que quer que lhe possa dar uma idéia do adversário que não combine com a idéia precisa que este grupo de militantes quer impor às pessoas. Esse procedimento não é exceção. Após a abertura dos arquivos de Moscou, nós temos uma documentação enorme sobre o uso desses métodos no mundo inteiro. Ora, isto nos cria mais uma dificuldade para estudar o marxismo, porque entre seus mecanismos de defesa existe também o mecanismo de escamotear sua própria história e a história do adversário. Ressalto: nunca houve uma organização de tamanho comparável, dedicada a fazer isso no sentido extramarxista ou antimarxista. Todos os movimentos, até anticomunistas, que existiram no mundo são esporádicos, locais, de curta duração e, pior, absolutamente incompatíveis entre si. Para vocês terem uma idéia, o sujeito pode ser anticomunista porque é judeu ortodoxo e pode ser anticomunista porque é nazista: vocês não vão querer que o anticomunismo sionista e o anticomunismo nazista se dêem as mãos. Por causa disto, nós dizemos que a versão marxista das coisas se apresenta de maneira tão disseminada e tão impossível de se localizar que todo o debate neste sentido falha logo de início.
Não pretendo, evidentemente, resolver este problema, que está infinitamente acima de minha capacidade, mas creio que um primeiro passo é fazer com que essa figura nebulosa e proteiforme do marxismo seja substituída por uma figura mais reconhecível. Daí a minha definição do marxismo como uma cultura. Sendo uma cultura, a sua própria preservação tem prioridade absoluta e, em nome dessa prioridade, literalmente, vale tudo. Por exemplo, vou ler aqui um trechinho de um livro de Antonio Negri (vocês devem saber quem ele é), em que ele relata um debate que teve com Norberto Bobbio, a respeito da teoria jurídica do marxismo. Bobbio dizia que, no fim das contas, o marxismo não tinha teoria jurídica alguma, e Negri dizia que tinha. Diz Antonio Negri:
“O problema foi que o objeto da discussão não era o mesmo, nem para os dois participantes, nem para os espectadores, nem para os partidários dos dois lados. Para Norberto Bobbio, uma teoria marxista do Estado só poderia ser aquela que derivasse de uma cuidadosa leitura da obra do próprio Marx, e ele não tinha encontrado nada disso. Para o autor marxista radical (isto é, ele mesmo, Antonio Negri), no entanto, uma teoria marxista do Estado era a crítica prática das instituições jurídicas e estatais desde a perspectiva do movimento revolucionário – uma prática que tinha pouco a ver com filologia marxista, mas pertencia antes à hermenêutica marxista da construção de um sujeito revolucionário e à expressão do seu poder”.
O que nos está dizendo Antonio Negri? Ele está querendo dizer que, embora não haja realmente uma teoria marxista do Estado nos escritos de Marx – existem apenas observações mais ou menos esporádicas e deduções que os discípulos podem tirar delas –, existe uma crítica marxista que está de certo modo embutida na própria prática revolucionária e na afirmação do seu poder. Ou seja, se queremos saber qual é a teoria marxista do Estado não adianta ler Marx: é necessário observar a história do movimento comunista, ver como ele se desenvolveu e ler a crítica jurídica que está embutida ali. Está compreendido? Muito bem, só que em seguida ele diz: “ Se havia algo em comum entre Bobbio e seu interlocutor era que ambos consideravam o socialismo real (Sabem o que é socialismo real? É o socialismo cuja existência foi documentada na União Soviética, na China, na Hungria etc., com oitenta anos de história.) como um desenvolvimento amplamente externo ao pensamento marxista. A redução do marxismo à história do socialismo real não faz nenhum sentido ”. Ora, mas o que é o socialismo real? Ele não foi precisamente a cristalização histórica do resultado da tal “prática da criação do sujeito revolucionário e a afirmação do seu poder”? Se a teoria marxista do Estado não está nos escritos de Marx e também não está no resultado da prática revolucionária, onde diabos ela está? Resposta: ela está na prática que naquele mesmo momento Antonio Negri está promovendo. É esta prática que é a legítima, as anteriores não. Isto é uma constante na história do movimento socialista.
Tão logo enunciados os princípios do marxismo no Manifesto Comunista de 1848, a primeira coisa que os comunistas fizeram foi colocá-los em revisão. O revisionismo é o segundo capítulo da história do marxismo após a sua fundação, de modo que, aos revisionistas (Bernstein, Kautsky e outros), a associação que o próprio Marx estabelecia entre marxismo e violência era ilegítima. Não nos façamos ilusões: Karl Marx sempre disse que a revolução somente se faria por meio da violência, ele rejeitava qualquer possibilidade de implantar o marxismo por meio da educação ou qualquer outro meio pacífico e inclusive dizia, lamentando-se, que “para implantar o socialismo no mundo nós temos de destruir no caminho uns quantos povos inferiores”, sic. Para os revisionistas, esse apelo de Marx à violência não fazia parte da essência do marxismo, mas era uma espécie de excrescência devida a alguma perturbação na cabeça do próprio Marx. No terceiro ato, volta-se à ortodoxia marxista através de Lenin, acreditando-se que é absolutamente necessário fazer a revolução através do uso da violência; e, através do uso da violência, constitui-se a duras penas, com sacrifício de milhões de militantes, sobretudo milhões de inimigos e dissidentes, o Estado Soviético. Uma vez pronto isto, o que diz a geração seguinte? “Isto não é representativo, isto não é o verdadeiro marxismo”.
Então, de geração em geração, nós vamos nos perguntando: afinal, quando aparecerá o verdadeiro marxismo? A resposta pode ser dada já: nunca. Porque o verdadeiro marxismo não existe como nenhuma formulação explícita, que possa ser discutida racionalmente. O marxismo só existe como uma cultura, na qual a formulação doutrinal é apenas um elemento provisório e tático, que pode ser trocado quantas vezes se queira, de modo que o militante possa não somente mudar a história anterior, fazendo com que tudo aquilo que foi feito em nome do marxismo já não seja marxismo – e apareça um novo marxismo que ele tem na cabeça –, mas consiga também fazer até o milagre oposto: ele consegue não apenas limpar a memória de seus próprios crimes, mas consegue trazer para si os méritos do adversário. Vou lhes dar um exemplo de como se faz isso, exemplo que tirei do próprio Antonio Negri: ao falar da famosa prática da criação do sujeito revolucionário e da afirmação do seu poder, ele diz que “ isso faz parte da história de um conjunto de lutas pela libertação que os proletários desenvolveram contra o trabalho capitalista, suas leis e seu Estado, desde o Levante de Paris de 1789 até a Queda do Muro de Berlim ”. A Queda do Muro de Berlim integra-se na sucessão das lutas para a criação do sujeito revolucionário e para a afirmação do seu poder. Só falta então dizer que o único marxista autêntico daquela época era Ronald Reagan. O representante de qualquer religião, ideologia, partido político ou clube esportivo que se permita uma tamanha elasticidade será evidentemente condenado como charlatão ou internado como louco. Mas dentro do marxismo isto vale. Mais ainda, digo para vocês: não é desonestidade, pelo menos não desonestidade consciente. Isto é possível dentro do marxismo porque ele não é uma doutrina, não é uma teoria que se tenha de defender mediante uma discussão racional.
Marxismo é uma cultura e, na defesa da unidade e preservação de uma cultura, todos os meios são legítimos. Mesmo considerações de veracidade e moralidade não devem entrar na linha de conta, porque veracidade, ciência, cientificidade, moralidade e racionalidade são apenas expressões parciais da cultura, de maneira que fazer cobranças à cultura em nome delas parece uma insuportável revolta das partes contra o todo, uma quebra da hierarquia ontológica. Então, a cultura está sempre acima dos padrões de racionalidade que ela mesma cria. Sendo o marxismo uma cultura, todas as mentiras que ele venha a dizer não podem ser impugnadas no campo doutrinal, evidentemente. Porque, ou nós as impugnaremos no campo moral e, a cultura estando acima da moral, rejeitará nossa argumentação como irrelevante, ou nós argumentaremos em nome da ciência, da racionalidade etc., e a cultura como um todo jamais poderá se colocar sob a fiscalização da moral e dos bons costumes. É tão absurdo você discutir com um marxista sobre a sua cultura quanto seria você chegar numa tribo de índios do Alto Xingu e dizer a eles que algum de seus costumes é imoral. Ele não entenderá o que você diz, porque a moral para ele são exatamente os costumes da tribo, não existe uma moral supracultural a que ele possa apelar. Nós temos idéia de uma moral supracultural porque vivemos em enormes blocos civilizacionais multiculturais, recebemos o impacto de muitas culturas e podemos compará-las entre si. Isto, por um lado, nos induz ao relativismo e, por outro lado, nos induz à busca de um padrão de abstração e abrangência maiores, mais científicos.
Mas, dentro da cultura marxista só vigora o que ela própria criou, e qualquer produto externo só será admitido lá dentro uma vez trabalhado e modificado no seu sentido, de modo que se torne inofensivo. Por exemplo, o pensamento conservador todo será substituído por pensadores de direita de baixíssimo nível – de preferência psicopatas nazistas que se denunciem a si mesmos na primeira palavra, porque daí fica fácil lidar com eles. Ou então, às vezes, procede-se de maneira menos grosseira, escolhendo certos adversários que até são de alto nível, mas trabalham dentro de uma faixa teórica tão limitada que fica fácil vencê-los saindo de seu quadro categorial, puxando a discussão para um outro quadro. Por exemplo, a famosa discussão com Kelsen: Kelsen está apenas tentando definir o que é o Direito considerado em si mesmo. Se existe, dentro de uma sociedade, um complexo de fatores (direito, economia, moral, religião etc.), nada disso está separado, evidentemente. Porém, no que consiste cada um desses elementos? Se dissermos que cada um dos elementos não é nada, que só existe a mistura, será então a mistura de vários nadas que miraculosamente dá em alguma coisa. Na época de Kelsen, houve vários esforços em várias ciências totalmente distintas para conseguir definir seu campo de maneira, como eles diziam, “pura”. Houve o esforço de uma biologia pura com (?) e outros, houve o esforço de uma lógica pura com Edmund Husserl, e evidentemente ninguém entenderá uma palavra do que disse Kelsen se não o entender dentro deste movimento. Como o universo categorial conceitual de Kelsen é bastante limitado (e eu, particularmente, também acho que Kelsen está errado ao definir o Direito exclusivamente pela norma), é muito fácil, numa discussão com ele, apelar para conceitos sociológicos e históricos que estão infinitamente fora do quadro de referência dele e fazer de conta que o derrubou, quando simplesmente não se entrou no assunto. E assim se procede com praticamente todo mundo.
Muito bem, é claro que até o momento eu não disse nada internamente sobre o marxismo, muito menos sobre as teorias jurídicas do marxismo, que eu acredito piamente que não existem. Mas vamos examinar muito rapidamente alguns conceitos marxistas.
Primeiro, Karl Marx havia dito na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel que a realidade social dos homens condiciona a sua consciência; nas Teses sobre Feuerbach , ele vai um pouco mais além e diz “determina”. Isto quer dizer que você tem uma posição na sociedade que é definida pelo seu papel no sistema de produção e você tem um conjunto de idéias que é determinado por esta posição. Quanto é determinado? Isso ele nunca diz; o máximo que ele diz é que, em última instância, é determinado. Então, qual é exatamente a relação entre posição social e ideologia? Ou existe uma relação efetiva, como diz Marx, ou posição social é uma coisa e ideologia é outra completamente diferente. Se houvesse uma conexão efetiva, então o burguês tem de pensar como burguês, o proletário como proletário, podendo haver, é claro, exceções. Mas qual seria a possibilidade de que justamente o primeiro teórico da ideologia proletária não fosse um proletário? E o segundo também não? E o terceiro também não? E o quarto também não? E de que praticamente toda a liderança do movimento comunista, ao longo dos tempos e incluindo Antonio Negri, nunca fosse de proletários? Eles podem dizer que são burgueses esclarecidos e que aderiram. Mas se você tem a liberdade de aderir, outros também têm. Portanto, a conexão entre a sua condição social e a sua ideologia é de sua livre escolha, e a famosa conexão não existe.
Outro item (eu poderia dar uns cinqüenta, mas vou usar um que foi lembrado aqui pelo prof. Alaor) é o de que cada etapa histórica é marcada por um sistema de propriedade, e que dentro deste sistema existem forças de produção que crescem até um certo ponto e derrubam este sistema de propriedade – o prof. Alaor deu como exemplo o feudalismo. Então, o feudalismo tem lá um sistema de propriedade; quando a produção cresce, ela cria uma incompatibilidade e o feudalismo cai. Perguntem-me quando isso aconteceu. Respondo: nunca. O feudalismo caiu muito antes de que houvesse qualquer choque sério entre o sistema de propriedade e os meios de produção. O choque do feudalismo foi com a instituição real ou monárquica. O feudalismo foi derrubado quando o rei, que era um primus inter pares , decide derrubar os seus pares e tornar-se o primus “sem pares”. Para isso, no caso da França, constitui-se, pela primeira vez, uma imensa burocracia estatal, com a qual nem os senhores feudais nem muito menos os burgueses puderam competir de maneira alguma. Vejam até que ponto isto é absurdo: diz-se que na Revolução Francesa a burguesia tomou o poder. A burguesia são os capitalistas, não? Façam a lista dos líderes da Revolução Francesa e vejam quantos capitalistas havia ali. Resposta: um. Os outros eram todos padres, aristocratas frustrados, jornalistas etc. Se eles não eram burgueses ou capitalistas pessoalmente, eles podiam ter algum contato com entidades de capitalistas que lhes diziam quais eram seus interesses, interesses que queriam defendidos. Mas nunca houve este contato. Isso quer dizer que, se a ideologia da Revolução Francesa era a ideologia dos capitalistas ou da burguesia, curiosamente os burgueses se esquivaram de defendê-la: ela foi defendida por pessoas que não tiveram nenhum contato com burgueses e não houve nenhum burguês vindo-lhes pedir que fizessem algo.
Isso é para lhes dar uma idéia de até que ponto a teoria marxista da história é pura mitologia e charlatanismo em cada um dos seus itens. É claro que, se em meia hora o prof. Alaor não pode expor a parte dele (a qual vocês já estão acostumados a ouvir), muito menos posso eu provar toda essa novidade. Dêem-me alguns anos e eu provo isto com todos os detalhes.
MEDIADOR : Agora a réplica de trinta minutos do prof. Alaor Caffé Alves.