Olavo de Carvalho
Época, 30 de junho de 2001
O abuso da palavra sofisma tornou-se hábito consagrado nos debates nacionais
Dois instrumentos usuais da patifaria intelectual são o entimema erístico e o sofisma. Entimema é um silogismo do qual uma das premissas, considerada óbvia ou de domínio público, vem omitida. Por ser leve e prestar-se bem à expressão literária, é o meio preferencial da persuasão retórica, a argumentação jornalística por excelência, que, não podendo demonstrar o certo ou o razoável, se contenta com o verossímil, isto é, com aquilo que, por afinar-se com as crenças do público, é aceito como verdadeiro sem maiores discussões. O verossímil, com freqüência, é também verdadeiro, mas às vezes não o é. O único meio de testá-lo é explicitar a premissa oculta, transformando o entimema num silogismo completo. Ao fazer isso, não raro descobrimos que a premissa oculta não era óbvia nem de domínio público, mas sim alguma estupidez infame, encoberta para poder extorquir a anuência sonsa da platéia distraída. Neste caso o entimema é dito erístico: erística é a arte da argumentação capciosa, a retórica pervertida dos charlatães.
Já o sofisma é um silogismo aparentemente perfeito, mas construído sobre premissas falsas difíceis de impugnar ou ardilosamente desviado na passagem crucial das premissas à conclusão.
Um público afeito à discussão vulgar, mas sem treino filosófico específico, engolirá sem a menor objeção doses maciças de entimemas erísticos, porém, diante de qualquer raciocínio lógico mais elaborado, facilmente será persuadido a armar-se de desconfiança caipira e a rejeitar como “sofismas” as provas mais sérias e fundamentadas, pelo simples fato de serem mais sutis que seu alimento discursivo habitual. Daí a freqüência com que o rótulo de “sofisma” é usado levianamente pelos patifes para impugnar qualquer raciocínio que leve a conclusões que os desagradem.
Nesses casos, caracteristicamente, jamais a acusação de sofisma vem acompanhada da devida indicação dos erros que a justificariam. Ou o rótulo vem sozinho, solto no ar como uma fórmula mágica, na esperança de que exerça automático efeito difamatório, ou sustenta-se em alegações que nada têm de uma refutação em regra e não passam em geral da expressão sumária de uma opinião antagônica à do argumento rejeitado, isto quando não são, elas próprias, entimemas erísticos da mais baixa qualidade.
Sofisma é termo técnico de lógica e seu uso legítimo requer a explicitação dos erros sofísticos correspondentes. Se, em vez disso, alguém o emprega informalmente como figura de linguagem, só pode ser para rebaixar como sofisma algo que não é sofisma.
Um exemplo recente é o do jovem redator de editoriais num grande jornal, que, nomeando-me “rei do sofisma”, dispara sobre mim a seguinte cobrança: “Por que, em vez de quantificar o placar das mortes, Olavo de Carvalho simplesmente não condena todas as ditaduras (chinesa, cubana, brasileira, chilena etc.)?”
Bem, a resposta é que não faço isso porque regimes de força que matam 300 pessoas em 20 anos, como a ditadura militar brasileira, e regimes que matam 3.200 pessoas por dia – tal foi a média da China comunista – simplesmente não são espécies do mesmo gênero, malgrado a comunidade do nome que os designa. O termo “ditadura”, indicando uma estrutura formal de governo e não o concreto modus agendi pelo qual esse governo se impõe e se mantém – numa gama de opções que vai do simples golpe parlamentar ao holocausto –, não dá conta de uma diferença essencial.
Correspondendo à de autoritarismo e totalitarismo, essa diferença é consagrada na distinção entre homicídio e genocídio, entre a violência esporádica e a extinção planejada de uma raça, classe ou nação. Deduzir da pura coincidência de nomes a identidade de fenômenos tão diversos é óbvia trapaça erística, tanto mais perversa se usada para legitimar o nivelamento moral de males incomensuráveis, clássico expediente erístico da propaganda totalitária.