Apostila do Seminário de Filosofia
Anotação para desenvolvimento oral em classe
(Continuação do tema “Ser e Conhecer”)
17 de fevereiro de 2000
Este assunto será tema da próxima aula do Seminário de Filosofia em São Paulo e no Rio (fevereiro de 2000). Divulgo aqui este rascunho para que os alunos possam estudá-lo com antecedência. — O. de C.
Kant diz que o espaço não pode ser percebido empiricamente porque o simples ato de situarmos alguma coisa “fora” de nós já pressupõe a representação do espaço. O espaço não é portanto uma propriedade das coisas, mas uma forma sobreposta às coisas pela minha intuição delas.
Mas aí o espaço está identificado com o “fora”, com a exterioridade, e não posso, só com base na pura representação da exterioridade, dizer que algo está fora de mim: esta afirmação é claramente a de uma relação entre o fora e o dentro, e pressupõe portanto a representação de ambos. Só que o “dentro”, para Kant, é o puramente temporal e inespacial: o espaço é a forma a priori da exterioridade como o tempo é a da interioridade. Ora, se só possuo uma representação espacial do fora, enquanto do dentro tenho somente uma temporal, não posso, rigorosamente, dizer que nada em particular está fora de mim, porque a existência espacial em geral já consiste em estar fora. Dizer que algo está fora é, então, apenas dizer que não tem uma existência puramente temporal, mas que além de existir no tempo tem alguma outra determinação especificamente diferente. Em que consiste essa determinação? Parece impossível defini-la exceto negativamente, isto é, dizendo que na coisa percebida fora há um algo que não é tempo.
A pura existência temporal, inespacial, — que Kant identifica com a interioridade — apresenta similar dificuldade. Se tentamos dizer em que consiste, temos de nos contentar com excluir o espaço, e aí se torna impossível distinguir entre a inespacialidade e a simples inexistência.
Essas dificuldades provêm da identificação entre “espaço” e “fora”, entre “tempo” e “dentro”. Sem admitirmos um “espaço interior” e um “tempo exterior”, não temos como dizer que alguma coisa está fora de nós, porque isto resulta em excluí-la do tempo, nem dentro, porque resulta em excluí-la do espaço, suprimindo em ambos os casos sua existência empírica, que segundo Kant consiste precisamente em estar no tempo e/ou no espaço.
Sem a mediação entre espaço e tempo, nenhuma percepção é possível. Mais ainda, essa mediação não pode ser puramente racional, mas tem de estar imbricada na estrutura mesma da percepção, porque caso contrário o ato de situar algo dentro ou fora seria a conclusão de um raciocínio e não um ato de percepção, que é precisamente o que Kant diz que ele é. No entanto, o conceito dessa mediação é incompatível com a redução kantiana do espaço e do tempo a formas a priori da sensibilidade projetadas sobre as coisas; porque a exclusão mútua do dentro e do fora constitui, para Kant, a estrutura mesma do ato de percepção: se houvesse um território intermediário entre tempo e espaço, esse território seria ele próprio a suprema forma a priori da sensibilidade, abrangendo e distinguindo espaço e tempo. Mas não há em Kant menção a esse terceiro fator: além do espaço e do tempo, há só as categorias da razão.
Ora, esse fator mediador é absolutamente necessário, e a partir do momento em que o admitimos já não podemos aceitar a doutrina de que espaço e tempo são formas projetadas, pela simples razão de que o “dentro” e o “fora”, portanto o espaço e o tempo, perderam seu caráter absoluto de categorias e, tornando-se relativos a um terceiro fator, se contaminaram perigosamente de um componente empírico.
Ou é impossível distinguir dentro e fora, ou essa distinção tem algo de empírico e portanto espaço e tempo não são formas a priori.
O terceiro fator, que nos tira desse imbroglio, é, este sim, uma forma a priori da sensibilidade, e se chama existência (subentendendo-se: “existência versus inexistência”). Só se pode perceber como existente o que tem existência, e ter existência é estar inseparavelmente — embora sob aspectos distintos — no espaço e no tempo. Do mesmo modo, o inexistente é percebido como ausente do espaço e do tempo, e esta ausência ajuda a compor o quadro onde estão presentes as coisas presentes. O que quero dizer com “sob aspectos distintos” é que aquilo que é inespacial em essência e no seu puro conceito tem de se tornar espacial existencialmente e secundum quid para poder ser percebido, como por exemplo a tristeza ou a alegria que “em si” são pura temporalidade inespacial mas só podem ser vivenciadas em algum lugar do espaço (interno e externo), pela simples razão de que não vivenciamos empiricamente conceitos e essências puras, mas coisas e estados que existem no espaço e no tempo. Mutatis mutandis, o intemporal “em si” tem de se temporalizar existencialmente para existir ante a percepção.
Mas o mediador, para operar essas chaves da percepção, tem de ser supra-espacial e supratemporal. A forma a priori que denomino existência tem portanto dentro de si o quadro inteiro das distinções: temporal-inespacial, temporal-espacial, espacial-atemporal e espacial-temporal. Se não o tivesse, não poderia projetá-las sobre os dados da experiência. Mas, para que o tenha, é preciso que ela própria não dependa dessas distinções, e sim se estruture internamente segundo uma distinção muito mais abrangente, que é a do real e do irreal, o primeiro constituindo-se da dupla de polos temporal-espacial (isto é, a essência temporal que se espacializa existencialmente) e espacial-temporal (a essência espacial que se temporaliza existencialmente) e o segundo da dupla espacial-atemporal e temporal-inespacial, ambos constituídos de essências puras não existencializáveis, ou meras possibilidades. Por isto defino a metafísica como ciência da possibilidade (e impossibilidade) universal, isto é, como quadro delimitador não só do conhecimento mas do real mesmo. (1) Neste sentido, a estrutura da percepção já tem uma estrutura dedicidamente metafísica.
Kant admitiu o par existência-inexistência apenas como categoria da razão, mas obviamente ele está embutido já na estrutura mesma da percepção, na medida em que todo perceber tem uma natureza escalar e contrastante e consiste em notar não só as presenças, mas as ausências que lhes servem de pano-de-fundo. Os próprios juízos de existência seriam impossíveis se não houvesse, com anterioridade lógica se não cronológica, a percepção de existência, a qual por sua vez não pode ser concebida senão como oposto complementar da percepção de inexistência. O ver alguma coisa não pode ser concebido senão como não ver alguma outra coisa — por exemplo, o oco da sua ausência — no lugar dela.
Tempo e espaço são formas da existência, bem como — negativamente — da inexistência. Quando, através de sua manifestação espacial, percebo algo que em si não é espacial, como por exemplo uma melodia, o que estou percebendo é uma existência parcial e deficiente: a melodia não existe como substância no sentido físico do termo, mas como efeito da ação de determinados corpos — os instrumentos de música, por exemplo, ou os órgãos da fonação humana. Percebo, no mesmo instante, que essa melodia tem uma estrutura matemática, a qual por sua vez é independente do tempo e do espaço, e que neste sentido tem uma existência ainda mais deficiente, como mera potência que é. Se eu não pudesse perceber essas formas deficientes, também não poderia perceber as eficientes ou plenas que lhes fazem contraste e que são perceptíveis justamente por esse contraste.
Existência-inexistência é, pois, forma a priori da sensibilidade e não somente da razão. Já o tempo e o espaço não podem ser formas a priori, mas apenas o resultado da diversificação da experiência quando esta é enfocada sob a categoria existência-inexistência, donde resulta a percepção diferenciada do espacial-temporal, do espacial-intemporal, etc.
De outro lado, existência-inexistência não poderia ser uma forma a priori da sensibilidade se não fosse também uma forma a priori dos dados sensíveis em si mesmos, de vez que o mais simples ato de percepção depende de certas qualidades que têm de se apresentar nos objetos mesmos e sem as quais não poderíamos percebê-los. Existência-inexistência é ao mesmo tempo categoria gnoseológica e ontológica: é a forma da percepção dos objetos no espaço e no tempo e inseparavelmente a forma da presença desses objetos no espaço e no tempo.
Nota
(1) V. a apostila Breve Tratado de Metafísica Dogmática (aulas de 1991) logo mais nesta homepage.