Por José Nivaldo Cordeiro
2 de Junho de 2002
Sou aficcionado por filmes de guerra. A guerra é um momento crucial na existência, seja dos indivíduos, seja dos coletivos. É um fenômeno caracteristicamente humano e quando nos referimos à Natureza usando o vocábulo “guerra” é apenas força de expressão, uma metáfora, uma projeção antropomórfica pura. Guerra e História formam uma unidade indissolúvel. Não
podemos ser contra a guerra, da mesma forma que não podemos ser contrários ao nascer do sol. Nesse sentido, o pacifismo é coisa de ignorantes, uma estupidez. Podemos estudá-la, analisá-la, odiá-la, mas jamais podemos negá-la como realidade e necessidade histórica. É um fato da vida.
A guerra é sobretudo um fenômeno psicológico, uma loucura coletiva que sacrifica homens no altar do deus da morte. Será talvez o instante em que o mal é mais palpável, mais objetivo: quem dela participa vê o fundo dos olhos de Mefisto e é tomado por seu fascínio macabro. Na vida civil o que mais se aproxima desse instante nefando é o crime e a constelação dos que vivem à sua volta: a polícia, a o sistema Justiça, o sistema prisional. Há uma dialética que une profundamente os que praticam a delinqüência e os que punem. Quantas taras e quanta maldade se escondem por trás dos homens que punem, que supostamente praticam a Justiça? Quanto de carrasco de inocentes não compõe a psique de um promotor, um juiz e um policial? Temo que freqüentemente o agente da lei possui uma psique muito mais criminosa e muito mais perigosa do que aqueles que são flagrados em delito. Sobretudo agora que vivemos tempos de relativismo moral e jurídico.
Infelizmente, na justiça estatal não há lugar para o perdão e para a redenção, apenas para o castigo, para a vingança e para a subjugação do indivíduo. Como na guerra.
Por isso que gosto tanto de filmes de guerra e de filmes com temática policial. Se os filmes são artisticamente bem feitos, eles encantam porque conseguem retratar em profundidade a psique humana. Toda obra de arte de valor – e não apenas as do cinema – devem ter como ponto focal a redenção humana, o que equivale a abordar sem medo e sem nenhuma pieguice o mal
metafísico. São filmes que poderíamos chamar de religiosos, no sentido que tratam do drama humano mais específico, a sua relação com o bem e com o mal, com Deus, em resumo. Talvez algumas pessoas se escandalizam por eu escrever isso, mas eu realmente penso assim.
Malgrado a malvadeza e a crueldade da guerra, ela acaba por ter um lado benéfico, que foi reconhecido e estudado por muitos autores importantes. Voegelin, por exemplo, afirma a sua necessidade para o restabelecimento do equilíbrio perdido na sociedade política. A guerra também acaba por se tornar uma terapia coletiva, exorcizando o mal que acomete a coletividade
humana, não obstante o seu elevado preço e a sua estupidez. Dito de outra forma, a guerra serve não apenas para moldar o caráter dos homens e impor o devido respeito pelas coisas do Além (a guerra e a morte são irmãs gêmeas), reafirmando a pequeneza humana diante da Eternidade. Serve também para curar as patologias psíquicas coletivas que, de outra forma, não poderiam ser resolvidas. Outra não é a visão de Jung quando analisa as Grandes Guerras do século passado. Como criminosos da dimensão de um Hitler e seus sequazes poderiam ter sido destruídos?
O curioso é que na História do Brasil registramos muito poucas guerras, sempre episódicas e de pequena dimensão. Nosso povo jamais viveu o que a Europa, os EUA, o Japão, a Rússia, o Continente africano viveram. Se foi uma dádiva para as gerações passadas, desconfio que esse fato pode ter gerado
uma maldição para as gerações futuras: as tensões psíquicas acumuladas no coletivo brasileiro podem estar aguardando o tempo devido para a sua erupção, na forma de um conflito devastador. E talvez esse tempo não esteja distante, a se tomar como medida o que vemos acontecer no corpo político e
na vida privada brasileira. A cizânia psíquica pode ser percebida pela divisão esquizofrênica no mundo político, pelo afrouxamento dos costumes, pela perda de senso moral das massas, pela exaltação do que é caracteristicamente baixo e infame e o aviltamento das coisas do alto, sagradas.
E, claro, o primeiro sacrificado em tudo isso é a razão. Quem vive no Brasil de hoje pode compreender a plenitude do significado da expressão do livro de Eclesiastes: “Muito conhecimento, muito desgosto; quanto mais conhecimento,
mais sofrimento”. E muita solidão de alma, acrescento.
Para aqueles que não se deixam enganar pelo remanso suave da maré e sabe queo maremoto se aproxima, só resta fazer como o general que comanda os soldados no campo de batalha, personagem do filme “Platoon”, de Oliver Stone, que ao ver o inimigo invadir o seu quartel-general ordena que a Força
Aérea despeje suas bombas no campo em que ele está com seus comandados. Ao desligar o telefone em que dá a ordem de bombardeio, ele exclama: “Que guerra fantástica!”.