José Maria e Silva
Opção, Goiânia, 2 de julho de 2000
Literatura e filosofia têm, provavelmente, a idade do homem. Não a tenra idade moderna, datada no homem por Foucault, mas a idade do homem real, descoberto pela antropologia. É pouco provável que o homem de Altamira, exímio demiurgo de bisões rupestres, não fosse também capaz de poetizar o mundo e inquiri-lo. Por isso, quando a Universidade Católica de Goiás propôs-se a realizar o I Colóquio de Filosofia e Literatura, no Auditório do Básico, na Praça Universitária, pareceu que as onze horas de discussão previstas seriam quase nada perto do muito que filósofos, críticos, professores e escritores teriam a dizer sobre esses dois saberes que confluem desde tempos imemoriais. E era de se esperar que a platéia permanecesse atenta até o último minuto de cada conferência, saboreando palavra por palavra, refletindo conceito por conceito. Afinal, discutia-se não só a literatura, mas a filosofia, que, segundo a pensadora uspiana Marilena Chauí, “é o mais útil de todos os saberes”. Em Convite à Filosofia, um best-seller com dezenas de edições, ela afirma que “o primeiro ensinamento filosófico é perguntar: O que é o útil? Para que e para quem é o útil?”. Nada mais justo, portanto, do que aplicar sua máxima a um colóquio que associa a literatura ao “mais útil de todos os saberes”, a filosofia.
Obviamente, não se trata de perguntar se um colóquio do gênero é útil, porque, a se crer em Marilena Chauí, a utilidade é a essência mesma do pensamento filosófico. Trata-se apenas de saber para quem ele foi útil. Mas, à luz do chauísmo, a resposta soa como um paradoxo ” o colóquio não serviu a ninguém. Foi inútil. Ao menos é a impressão que se tem, ante uma platéia que não aplaudia os conferencistas ” agradecia, educadamente, o final das conferências. E as intervenções do público, especialmente no primeiro dia do colóquio, corroboraram ainda mais essa impressão. Quase todos os que pediram a palavra denotaram distanciamento dos assuntos tratados. Uma aluna, que disse ter sonhado com o seminário, tal a sua ansiedade em debater o encontro da literatura com a filosofia, chegou a conceituar ao microfone: “Literatura é amor! Filosofia é amor!” Essa fala tão afetiva pareceu deslocada num colóquio tão douto, mas o deslocamento verdadeiro não foi dela e, sim, dos conferencistas ” fisicamente no Básico da Católica, mas mentalmente no Collège de France.*
Aberto na manhã de 20 de junho, com a palestra do doutor em filosofia José Ternes, da UCG, o evento reuniu professores de várias universidades, entre eles o filósofo Roberto Machado, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor de importantes obras sobre Foucault, Nietzsche e Deleuze, Roberto Machado acaba de lançar Foucault, a Filosofia e a Literatura (Jorge Zahar, 2000, 188 páginas). Já Maria Teresinha Martins, autora de Luz e Sombra em Lúcio Cardoso (Editoras da UCG e UFG), sua tese de doutorado, aproximou o escritor mineiro de Deleuze e Blanchot. Deleuze foi retomado por Orlando Bezerra, doutor em filosofia pela UFRJ, enquanto a conferência sobre Jacques Derrida coube ao baiano Evando Batista Nascimento, professor visitante na Universidade Federal do Espírito Santo e autor de Derrida e a Literatura (Editora da UFF, 1999, 364 páginas). Mestrando em filosofia política na UFG, Fábio Ferreira de Almeida falou sobre Bachelard. Luiz Fernando Medeiros, professor na Universidade Federal Fluminense, discorreu sobre a poesia de Armando Freitas Filho. Exceção à francofilia foi a conferência de Maria Aparecida Rodrigues, doutoranda na Umesp, que fez um paralelo entre o existencialismo do alemão Martin Heidegger e as obras de Graciliano Ramos e Clarice Lispector.
Mas a principal ênfase do I Colóquio de Filosofia e Literatura recaiu sobre Michel Foucault. Além das abordagens diretas de Roberto Machado e do mestrando em ciência política na UFG, Dênis Borges Diniz, a obra de Foucault suscitou mais debates, permeando todo o seminário. Sem dúvida, devido ao estranhamento causado por suas idéias a respeito de literatura. Foucault prega a morte do sujeito e, conseqüentemente, a do autor, fazendo com que a relação entre a literatura e a filosofia saia do costumeiro terreno das indagações existenciais para situar-se no arcabouço de um discurso autofundante. Essa a causa primeira da impossibilidade do diálogo entre a especializada plêiade de professores da mesa e a difusa massa de leigos da platéia, pontuada por um e outro professor, mesmo assim, dificilmente capazes de penetrarem tão profundamente ” como o seminário exigia ” na obra de um Foucault, de um Deleuze, de um Derrida. Apenas Foucault, um autor fecundo e desconcertante, por ser diferente até de si mesmo, já bastaria para desnortear o público. Em 1970, ao se candidatar a uma cátedra no legendário Collège de France, Foucault custou a ser compreendido até pelo relator de sua candidatura, Jules Vuillemin. Conta Didier Eribon, em Michel Foucault (Companhia das Letras, 1990), que Foucault saiu batendo a porta do apartamento de Vuillemin, porque Vuillemin continuava achando obscura a noção de enunciados em Arqueologia do Saber, mesmo depois de várias explicações, de viva voz, da parte do próprio Foucault.
O escritor Osman Lins (1924-1978), que antecipou muitas das percucientes críticas do filósofo Olavo de Carvalho às academias, ainda que no seu ambiente específico, as letras, demonstrou, de modo incontestável, o absurdo que é a transposição da última novidade acadêmica européia ou norte-americana para cursos de graduação brasileiros, em que os alunos padecem de um precária formação básica. Ainda que os mestres e doutores que participaram do I Colóquio de Filosofia e Literatura tenham o direito (e até o dever) de comunicar os resultados de suas pesquisas específicas sobre um ou outro autor, o ideal é que adubassem o solo da filosofia geral, antes de plantar a semente de um Derrida ou um Foucault. Isso, provavelmente, evitaria o explícito descompasso entre conferências e intervenções e, sobretudo, entre as conferências e a quase indiferença da maioria do público. Maria Teresinha Martins, observando que os alunos quase nada sabem sobre Lúcio Cardoso, foi a exceção, situando o escritor no contexto geral da literatura brasileira, inclusive com alguns dados biográficos. E Maria Aparecida Rodrigues, pelo próprio tema que abordou, as relações entre Clarice Lispector, Graciliano Ramos e Heidegger, também esteve mais próxima do universo dos alunos. Já Roberto Machado, conciliando profundidade e clareza, a mesma que se encontra em Foucault, a Filosofia e a Literatura, soube ajustar, na medida do possível, o Auditório do Básico ao Collège de France.
Entretanto, não se pode medir a importância de um seminário filosófico com base em sua receptividade junto ao público. Seria levar a sério demais o panfletarismo de Marilena Chauí e transformar a melhor filosofia (geralmente difícil) no pior jornalismo (o de maior audiência). Ao contrário do que pensa a autora de A Nervura do Real (possível mãe de uma nova corrente filosófica, o confusionismo), a filosofia não pode ser “o mais útil de todos os saberes”, pela simples razão de que ela só começa onde outros saberes acabam. A dona de casa sofrida que abraça a teologia carismática tem nela um conhecimento mais utilitário do que todas as filosofias juntas, de Sócrates a Heidegger. Em sua vida de escassas alternativas, o abandono do dogma em favor do conceito haveria de levá-la ao desespero, ao deslindar as causas de seu sofrimento e ver que elas não se assentam no céu mas na terra e que, mesmo assim, é impossível mudá-las. Por isso, o I Colóquio de Filosofia e Literatura foi útil mesmo não estabelecendo uma relação mais profícua com o seu público. Toda vez que departamentos distintos das universidades se abrem ao diálogo interdisciplinar, como propuseram José Ternes, Albertina Vicentini e Goiamérico Felício, os organizadores do colóquio, tanto alunos quanto a própria sociedade beneficiam-se da iniciativa, que contribui para enfraquecer as muralhas quase intransponíveis da especialização.
Pena que a dificuldade do diálogo não se deu apenas entre conferencistas e público. Desacostumada ao debate, a universidade brasileira costuma limitar-se à leitura de autores estrangeiros, posteriormente expostos como quadros estanques de um salão. Em determinados momentos, o I Colóquio de Filosofia e Literatura assemelhou-se a um mural, em que cada conferencista anunciou um quartinho de fundos da filosofia na esperança de dividi-lo com outros sem-tetos do saber. Não que faltasse profundidade aos expositores, mas é que o saber concentrado em ilhas tende a fazer de cada membro da audiência uma garrafa de náufrago num oceano de conhecimentos. Em cada exposição, cápsulas de autores viajavam em universos paralelos, a ponto de não se ter resposta sequer para o próprio tema do seminário ” a confluência entre literatura e filosofia. Ante a pergunta de um dos presentes, que queria saber qual o solo comum entre os dois saberes, o filósofo José Ternes ” que em seu livro Michel Foucault e a Idade do Homem demonstra um medo bíblico de acrescentar qualquer palavra às escrituras sagradas de Foucault ” escapuliu: “Estabelecer regras de encontro é muito perigoso”. Para que, então, realizar-se um colóquio sobre filosofia e literatura senão para tentar dar uma resposta a essa questão? Quando um filósofo recusa a verdade pronta, pode estar abrindo um caminho, mas quando se acomoda na sua negação apriorística, caiu no abismo da ignorância letrada ” a pior forma de perplexidade.
É daí que nasce o solilóquio das especializações, por sinal um paradoxo ” o especialista nega a verdade de sua própria tese para melhor livrá-la do questionamento alheio e poder impô-la como um dogma. É o que faz o especialista em Sartre ouvir o especialista em Foucault falando da morte do sujeito e ficar indiferente (ou o contrário). Numa das tentativas de aproximação entre literatura e filosofia, Maria Teresinha Martins disse que considerava Fernando Pessoa um poeta filosófico. Ora, por que Fernando Pessoa seria um poeta mais filosófico do que outros senão pelos temas que aborda, entre eles a angústia do ser, de significação crucial para o sujeito? Dita entre foucaultianos, a frase de Teresinha Martins deveria soar como uma heresia. Entretanto, José Ternes e Dênis Borges Diniz permaneceram indiferentes a ela, mesmo sendo defensores da visão de Foucault de que a literatura não deve ser pensada sob o prisma de nenhuma teoria da significação. Apenas o escritor Goiamérico Felício, doutor em literatura, foi um pouco mais ousado na tentativa de provocar o debate, primeiro instigando Dênis Diniz a discorrer sobre a inevitável angústia do autor ante a tese que decreta sua morte e, depois (ante a insistência de Diniz em apenas repetir Foucault, afirmando que autor e sujeito morreram), lembrando-lhe que Maurice Blanchot tratara da questão.
Por outro lado, quem assistiu à unção terniana com que Dênis Borges Diniz abordou a literatura em Foucault, deve ter-se espantado ao ouvir de Roberto Machado que, num dado momento, a partir de 1966, Michel Foucault desinteressou-se completamente pela literatura, ainda que ela se mantenha como instrumento importante para a compreensão de sua filosofia, como o próprio Machado procura demonstrar em seu último livro. Por mais que Foucault pense ter matado o sujeito e seus discípulos queiram deificar apenas o seu discurso, é difícil não cobrar do filósofo de carne e osso a responsabilidade ética sobre o que disse em tinta e papel. Como observa Olavo de Carvalho, “a vida do filósofo está para sua filosofia como a jurisprudência está para os códigos”. Aliás, quanto mais se aferram ao discurso de Foucault, negando outros referenciais, mais os foucaultianos caem em contradição. Ao negar o sujeito e sua interação com as coisas, concentrando-se unicamente no discurso, apartados dos homens e do mundo, eles são capazes de falar horas inteiras ou escrever maçudas teses sem recorrer a nenhum outro mortal, senão a Michel Foucault. Com isso, pensam estar sendo fiéis ao mestre e matando o autor, quando na verdade estão criando um Deus ” o sujeito onipresente que nasce do discurso único.
José Maria e Silva
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