Olavo de Carvalho
18 de julho de 2001
Nos meus escritos, os termos gnose, gnosticismo e heresia gnóstica designam em geral (e guardadas as exceções devidas a eventual negligência) três fenômenos distintos:
Gnose – O conhecimento espiritual em sentido genérico.
Gnosticismo – O fenômeno descrito por Eric Voegelin, que assinala uma continuidade entre as heresias gnósticas dos primeiros séculos da Era cristã e os modernos movimentos ideológicos de massa.
Heresia gnóstica – As seitas gnósticas dos primeiros séculos do cristianismo.
Já o sr. Orlando Fedeli usa os três termos para designar um só e mesmo fenômeno. As heresias dos primeiros séculos, o hinduismo, o budismo, o judaísmo, o islamismo e as ideologias modernas – tudo, para ele, são partes ou aspectos de uma mesma entidade, braços de um mesmo monstro: a Gnose, gnosticismo ou heresia gnóstica, religião do diabo.
Para legitimar esse uso do termo, ele usa da definição geral de gnose aceita por alguns estudiosos, mas dando-lhe uma aplicação que vai muito além do que qualquer deles jamais admitiu e que implica dar foros de verdade científica à hipótese de uma universal conspiração gnóstica contra a Igreja Católica, reunindo budistas, comunistas, muçulmanos, judeus, hinduístas, nazistas, gnósticos no sentido antigo e, evidentemente, eu.
Nem Hans Jonas, nem H.-C. Puech, nem Hans Urs von Balthasar, nem Voegelin, nem qualquer outro estudioso, por mais ampla que fosse sua definição de gnose, jamais a usou para sustentar essa hipótese, a qual aliás nem sequer mencionam porque, mais que à história, ela pertence ao domínio da psicopatologia.
É o sr. Fedeli que faz dela esse uso, fingindo escorar-se na autoridade desses eruditos. Mais ainda: fingindo que semelhante uso é universal, consensual e indisputado.
A origem da doutrina fedeliana da gnose, com efeito, não está em nenhuma dessas fontes, mas numa outra, bem pouco acadêmica: está na teoria da Revolução e Contra-Revolução do dr. Plínio Corrêa de Oliveira, segundo a qual só há duas correntes históricas no mundo, a revolucionária e a católica. Esta abrange os que interpretam o catolicismo no sentido estrito da TFP; aquela, todos os demais seres humanos, descontados os inocentes úteis e inúteis. Absorvendo a teoria ao mesmo tempo que renegava o autor — com quem competira em vão pela liderança da TFP –, o sr. Fedeli simplesmente trocou o termo “revolucionário” por “gnóstico”, mas nada acrescentou de substancial à concepção de seu primeiro mestre e posterior bête noire.
A única diferença é que o dr. Plínio, um aristocrata de temperamento, não desceria a bravatas pueris na defesa da sua teoria, por mais absurda que fosse; ao passo que o sr. Fedeli, que tudo quanto sonhava na vida era ser o dr. Plínio quando crescesse, infelizmente não cresceu.
No conteúdo, a idéia de ambos é a mesma.
A hipótese aí contida é tão ampla, que ela não pode ser provada nem impugnada no prazo de uma vida humana ou de infinitas vidas humanas. Cientificamente, ela é por isso mesmo inaceitável. Fatos inumeráveis não lhe darão consistência, refutações sem fim não a farão recuar. Ela é uma escolha, um ato de fé, que o sr. Fedeli, abusivamente, procura confundir e identificar com a própria fé católica, de modo a poder condenar como herético quem quer que, na sua divisão dualista do mundo, não cerre fileiras com ele — ou com o fantasma do dr. Plínio — no seu combate contra tudo o mais. Isto implica, naturalmente, estender sobre todos os “gnósticos”, no sentido amplíssimo do termo, a acusação de heresia que a Igreja fez pesar sobre os gnósticos dos primeiros séculos. Mas isto já não é teoria: é loucura.
O sr. Fedeli tem todo o direito de defender sua idéia, mas nem mesmo a alegação de insanidade lhe dará o direito de sugerir ou insinuar que ela corresponda a alguma cláusula do dogma católico tal como definido pelos Papas e Concílios. Nenhum Papa ou Concílio subscreveu jamais essa doutrina. Nenhum jamais afirmou a identidade substancial de todas as espiritualidades não-cristãs com a heresia dos primeiros séculos, identidade que, para o sr. Fedeli, é a verdade das verdades.
Abusando das fontes científicas que cita, abusando da fé católica em cujo nome acusa e condena, o sr. Fedeli não faz senão impingir a seus discípulos um catolicismo de sua própria invenção – dele ou do dr. Plínio Corrêa de Oliveira.
Não correspondendo, no conteúdo, à doutrina da Igreja, nem na forma àquilo que se entende por teoria científica, a doutrina dualista da Revolução e Contra-Revolução, seja na sua versão originária, seja na sua adaptação fedélica, não é nem religião nem ciência: é ideologia, no sentido estrito do termo.
Daí o atrativo que exerce sobre jovens que buscam, não o conhecimento, nem a purgação de seus pecados, mas uma causa – uma causa em nome da qual possam, sem o mínimo abalo de sua boa consciência, mentir e pecar.
Avaliado pelos critérios dessa ideologia, devo ser efetivamente um gnóstico e um herético, mas não vejo que importância possa ter isso desde o ponto de vista de uma Igreja e de uma ciência que ignoram solenemente o sr. Fedeli, o dr. Plínio e as idéias de ambos.
Todos os esforços que Fedelis e fedelhos façam para provar a acusação que me imputam são aliás desnecessários e redundantes, visto que ela já está provada ex hypothesi nos termos mesmos que a enunciam, sendo “gnósticos” por definição todos os que, rejeitando o dualismo absoluto de Revolução e Contra-Revolução, não se alinhem resolutamente com esta última no sentido em que a entende o sr. Orlando Fedeli – coisa que, de fato, não posso fazer.
Custei um pouco a entender isso, pois, partindo da crença espontânea na normalidade de meus interlocutores, com total boa fé, não atinei senão aos poucos com a lógica circular em que se baseava sua argumentação, irrefutável porque psicótica.
E não pensem que com isso eu esteja proferindo um insulto. Atenho-me ao terreno científico, reconhecendo com estrita objetividade, no argumento fedélico, aquela estrutura circular, fechada e autoprobante que, segundo o clássico estudo La Fausse Conscience, de Joseph Gabel (um judeu! que horror! um gnóstico!), é a marca inconfundível e comum do discurso ideológico e do discurso psicótico.
Assim, não vejo por que prosseguir esta discussão. Contento-me em não ser um gnóstico na acepção tradicional e voegeliniana do termo. Se o sou ou não no sentido especial que a coisa tem no mundinho fechado da seita montfortiana, é um problema com o qual o sr. Fedeli e seus meninos, que já perderam por mim tantas noites de sono, podem perder todas as que lhes restem. Isso não será jamais da minha conta.