Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 18 de julho de 2008
Antigamente o jornalismo era uma variante menor da ciência histórica. Documentando o presente, aplanava o caminho para os historiadores, dando-lhes um retrato aproximativo do “clima de opinião” da época e ao mesmo tempo indicando-lhes por alto as fontes primárias onde poderiam conferir a diferença, se houvesse, entre os fatos e sua imagem pública. Os métodos de pesquisa e averiguação usados por um bom repórter eram em essência os mesmos do investigador histórico, apenas praticados em escala mais modesta, apressada e superficial.
Desde que entrei na profissão, em 1965, ela mudou demais. Trocou de modelo. Já não imita a historiografia, mas o show business , a propaganda e o ativismo político. O pouco de pesquisa que resta é instrumento auxiliar subordinado a esses três fins supremos: o jornal deve atrair e seduzir como um show erótico, gerar hábitos como uma campanha de marketing, moldar e controlar as mentalidades como uma escolinha de militantes, uma madrassa do PT. O fato mesmo de que esses três objetivos concorram entre si acaba criando uma impressão geral de equilíbrio, que o leitor toma como sinal de credibilidade, sem notar que todos os critérios antigos de veracidade – que as novas gerações nem chegaram a conhecer – foram cinicamente suprimidos do conjunto e que, na ordem do jornalismo atual, a última coisa que interessa é contar o que está acontecendo.
A mudança, ao menos no Brasil, não foi espontânea. O instrumento para realizá-la foi a obrigatoriedade do diploma universitário, que, colocando sob a batuta de uma reduzida elite de professores-doutrinadores a formação dos jornalistas, tornou praticamente inevitável a uniformização da sua mentalidade e a institucionalização de uma rede de cumplicidades solidárias, ao ponto de já não haver fraudes jornalísticas isoladas: os jornais e noticiários de TV mentem em uníssono, berrando ou silenciando em coro, com ritmo perfeito.
Ao longo dos meus artigos, tenho assinalado e documentado a infinidade de descalabros, de atentados à mais elementar exigência de veracidade, que se tornaram não só a prática usual mas a norma obrigatória no jornalismo nacional, incluido prêmios para os mentirosos devotos e castigos para os relapsos e recalcitrantes.
Sem mencionar de novo o caso do Foro de São Paulo – decerto a mais bem articulada operação-silêncio já registrada na mídia continental, conditio sine qua non da eleição de Lula em 2002 e de sua reeleição em 2006 –, ocorrem-me de memória alguns exemplos notáveis:
(1) A reportagem-denúncia de Caco Barcelos sobre um crime alegadamente cometido por militares do Exército, a qual, depois de bem provada a sua falsidade, recebeu não um, mais dois dos mais reputados prêmios jornalísticos nacionais (v. A vaca louca da história nacional).
(2) O “Observatório de Mídia da USP”, montado com dinheiro público sob o pretexto de fiscalizar a objetividade do noticiário, mas que acabou se revelando apenas uma peça de um gigantesco esquema de propaganda esquerdista (v. Observatório de Mídia da USP: bilionário esquema de poder).
(3) A falsificação obstinada, pertinaz e grosseira de dados estatísticos para favorecer as campanhas apoiadas pela mídia, como desarmamentismo, aborto e gayzismo (v. A arte de mentir, Para além da covardia e Aritmética da fraude).
O pior de tudo é que, mesmo entre os leitores de elite, quase nenhum percebe a diferença entre esse estado de coisas e a quota de safadeza estrutural mínima, inerente ao jornalismo de todas as épocas. Mas a diferença é enorme. As fraudes jornalísticas antigas eram, por assim dizer, de iniciativa privada: cada jornal mentia conforme os interesses que lhe eram peculiares. A concorrência neutralizava os abusos mais vistosos e forçava as empresas a respeitar uma certa margem de profissionalismo idôneo. Hoje em dia as grandes campanhas de falsificação atendem a pressões de interesses globais que se sobrepõem até mesmo às fronteiras de nações, quanto mais às disputas entre empresas, e que, para maior uniformismo ainda, coincidem no todo e nos detalhes com os anseios da militância esquerdista nas redações. Mentir descaradamente em favor de causas como abortismo, gayzismo, anticristianismo, desarmamento civil, aquecimento global, indigenismo, etc., não é escolha desta ou daquela empresa individual: é imposição que vem muito de cima, dos organismos internacionais, das fundações bilionárias, e se espalha por toda parte através da rede onipresente de ONGs. É a mentira total, avassaladora, cínica e prepotente, imune aos clamores mais justos e mais óbvios da consciência moral.
Nem todo mundo, é certo, se deixa enganar por essa endemia de fraudes. A expansão do jornalismo eletrônico reflete a desconfiança geral ante a “grande mídia”, mas seu poder é limitado, sobretudo porque a espontaneidade de milhões de reações isoladas vem sendo gradativamente substituída por tentativas de controlar o universo bloguístico desde os centros orientadores da mudança global, através de restrições legais, da concentração administrativa e da bem subsidiada malha de ONGs.
O resultado é que mesmo as classes cultas acabam ignorando os fatos mais decisivos, vivendo à margem da realidade. Vou lhes dar três exemplos. São, objetivamente falando, as notícias mais importantes da semana, pelas conseqüências históricas descomunais que acabarão fatalmente desencadeando mas cedo ou mais tarde. Mas vocês não as encontrarão, ao menos com o destaque devido, nem na Folha , nem no Globo , nem no Estadão , nem no Jornal Nacional , nem em parte alguma da “grande mídia” brasileira. Se vocês não têm por hábito pesquisar o jornalismo eletrônico e as fontes primárias, não ficarão sabendo delas – e de muitas outras – de maneira alguma, e atravessarão a história atual como sonâmbulos num bombardeio.
1. A Rússia ameaça reagir militarmente a um acordo que expande para a República Checa o sistema americano de defesas nucleares. A notícia saiu dia 9 na edição eletrônica do Times de Londres.
2. Está para entrar em discussão na ONU um regulamento que proíbe, sumariamente, qualquer crítica à religião islâmica em todo o mundo. Informalmente, essa proibição já está em vigor em alguns países, graças ao fato de que as organizações islâmicas, no Ocidente, recorrem usualmente aos meios judiciais para calar a boca de seus críticos, ao passo que, nas próprias nações islâmicas, qualquer ataque à religião oficial é punido com pena de morte (v. U.N. scheme to make Christians criminals).
3. Bradley LaShawn Fowler, um homossexual de 39 anos, de Canton, Michigan, está processando as editoras cristãs Zondervan e Thomas Nelson, pedindo uma indenização de 70 milhões de dólares pelo “sofrimento emocional” que a leitura de trechos anti-homossexuais da Bíblia lhe teria causado (v. ‘Gay’ man sues Bible publishers). Fowler não é um maluco isolado: ele tem um blog no site de campanha do senador Barack Obama e tudo sugere que outros militantes homossexuais seguirão o exemplo do seu processo, depois de tantos artifícios judiciais já usados, nos EUA, no Canadá e na Europa, para criminalizar primeiro a leitura em voz alta da Bíblia em recinto público, em seguida a sua simples publicação em livro.
A primeira notícia torna evidente que a Rússia ainda considera a República Checa um país-satélite e está disposta a partir para a guerra em defesa das antigas fronteiras soviéticas nominalmente abolidas. Pela enésima vez, confirmam-se os prognósticos que o ex-agente da KGB, Anatoliy Golitsyn, fez em 1984 no seu livro New Lies for Old . A Guerra Fria jamais terminou, exceto na mídia elegante e nas conversas de salão.
A segunda e a terceira notícias mostram que a campanha global anticristã está cada vez mais articulada e agressiva, caracterizando uma perseguição religiosa que ainda uns anos atrás pareceria inverossímil. Quando li pela primeira vez o anúncio dessa perseguição no livro de Don McAlvany, Storm Warning. The Coming Persecution of Christians and Traditionalists in America (Oklahoma City, Hearthstone Publishing, 1999), achei que era exagero. Depois li Persecution. How Liberals Are Waging War Against Christianity (Washington D.C. , Regnery, 2003) e pensei que estava na hora de fazer minhas próprias pesquisas. Coletei 280 páginas de notícias que eliminavam qualquer possibilidade de dúvida (Perseguição anticristã nos EUA: mostruário de notícias; o dossiê vai só até 2004, e já é de arrepiar os cabelos). Por fim li The Criminalization of Christianity , de Janet L. Folger (Sisters, Oregon, Multnomah Publishers, 2005) e entendi que não se tratava apenas de uma tendência geral, mas de um movimento articulado, poderosíssimo – e, por isso mesmo, obsequiosamente ausente das páginas do New York Times , da Folha ou do Globo . Quem quer que recuse atenção a este assunto ou o despreze com base no costumeiro argumentum ad ignorantiam , imaginando que o que não está na grande mídia não existe ou não tem importância, faz isso com risco próprio. Depois não diga que não o avisei.