Caius Traian Dragomir, médico psiquiatra e escritor, foi embaixador da Romênia em Paris, é o presidente do Partido Liberal romeno e foi candidato à Presidência da República nas últimas eleições. Atualmente dirige a mais importante revista cultural romena, Viatsa Romaneasca, que publicou esta entrevista em novembro de 1998.
— Fale-nos sobre a sua formação, sobre as influências dominantes que moldaram o seu espírito.
Desde muito cedo, notei que o chamado “progresso do conhecimento” consiste quase exclusivamente em acumular registros – livros, teses acadêmicas, discos, fotografias, dados computadorizados -, que vão constituindo, ao lado ou em cima do mundo físico onde vivemos, uma segunda camada, um segundo mundo tão complicado quanto o primeiro e às vezes mais ininteligível do que ele. A “cultura” deixa de ser um patrimônio espiritual, um bem interior possuído pelos homens, e passa a constituir-se de objetos, de coisas, tanto quanto o é o mundo físico. Considera-se que um país é culto não porque tem muitos homens verdadeiramente sábios, mas porque tem muitas universidades, muitos institutos científicos, muitos museus, muitas galerias de arte, enfim: muitos depósitos de registros materiais. A cultura perde assim sua força explicativa e iluminante e se torna um amontoado opaco, necessitado, por sua vez, de explicação.
Muito jovem, decidi que meu caminho não seria o de participar dessa produção industrial de registros, mas de contribuir, de alguma maneira, para a inteligibilidade do conjunto, resgatar o sentido da cultura como atividade interior e não como produção material.
Esse foi o motivo de eu ter-me dedicado ao ensino direto, face a face com o aluno, e só ter estreado em livro aos 47 de idade – uma das estréias mais tardias das letras brasileiras. O preço desta opção é que a maior parte de minha obra ainda circula apenas sob a forma de apostilas e gravações de aula.
Mas, antes de me dedicar ao ensino, tive de me ensinar a mim mesmo. A questão que isso me colocava era a de como adquirir conhecimento na maior quantidade possível sem perder o elo entre conhecimento e consciência. Dito de outro modo: nunca permiti que entrasse na minha mente um conhecimento que fosse “meramente” funcional ou pragmático: tudo o que entrava tinha de ser pensado, analisado, avaliado, comparado com os conhecimentos anteriormente adquiridos, enfim personalizado. Inspirou-me nisso a frase de Piaget: “Quando o coelho come alface, não é o coelho que se torna alface, mas a alface que se torna coelho.” Parecia-me que, no ensino universitário, se fazia precisamente o contrário: as pessoas amoldavam-se facilmente ao linguajar, aos conceitos e ao modus ratiocinandi das disciplinas que aprendiam, mas não adaptavam esses conhecimentos ao seu próprio ser pessoal, de modo que eles formavam em volta das suas almas uma casca estranha, jamais assimilada, a cuja forma a sua consciência tinha de se amoldar, comprimindo-se e mutilando-se. Era como o aprendizado de um papel social no qual não acreditamos e que nem levamos a sério; que apenas usamos como um instrumento nas horas de trabalho, abandonando-o na soleira da porta quando retornamos para casa onde podemos voltar a ser nós mesmos. Era, com toda a extensão do termo, uma ciência sem consciência.
Isso acontecia mesmo no ensino de filosofia. O aluno amoldava-se ao linguajar e aos cacoetes mentais da filosofia ensinada, e tão logo conseguia falar como os professores, pensar como os professores, sentia-se realizado e seguro como um menino que, ao conseguir imitar os adultos mesmo sem compreendê-los, se sente adulto.
É evidente que esse vício não afeta só o ensino, mas o próprio modo de fazer ciência e de produzir cultura: produz-se uma ciência que é, no fim, inconsciente dos fundamentos da sua própria ininteligibilidade. Ora, uma ciência sem consciência logo se torna uma ciência sem outro valor científico que não o meramente convencional.
Desde cedo senti que esse tipo de ciência, esse tipo de cultura, seria o meu inimigo jurado, e decidi não descansar enquanto não o ferisse de morte, pelo menos na escala da cultura nacional brasileira. Vi nele o inimigo por excelência da consciência humana e a raiz de todas as tragédias do século XX: comunismo, racismo, nazismo, alienação, etc.
Toda a educação nacional estando comprometida com uma concepção da cultura coisificante e alienante, a questão de minha própria educação teve de ser resolvida por mim mesmo, por meios que eu próprio inventei.
Logo compreendi que a questão da inteligência, da consciência e da natureza do conhecimento seria para mim, ao mesmo tempo, um problema teórico e prático, isto é, que eu teria de investigar a natureza do conhecimento no próprio processo de ir adquirindo conhecimento. A teoria do conhecimento nada valeria se não fosse, ao mesmo tempo, uma ética e uma pedagogia, ou melhor, uma psicagogia ou guiamento da alma. Conhecer e aprofundar a natureza da inteligência era uma só e a mesma coisa que tornar-se inteligente, assumir as responsabilidades da inteligência, colocar a inteligência no centro e no comando da personalidade.
Isso ligava-se de perto a uma segunda questão: a inteligência é por natureza sistêmica, unificante, orgânica. Ela repele o inorgânico, o disperso, o fragmentário, que é morto. Logo, era preciso buscar a unidade do conhecimento na unidade da consciência, e vice-versa. Isto colocava enfim a questão do conhecimento como sistema orgânico, ou da unidade do conhecimento. Quando digo que essa unidade deve ser de tipo sistêmico – e não apenas “sistemático” -, subentendo que não pode tomar a forma de um sistema dedutivo, como no racionalismo clássico, mas sim a de uma unidade vivente que se identifica, em última análise, com a unidade de um ente vivo e consciente: o indivíduo humano real, unidade psicofísica e espiritual, é o padrão da unidade do conhecimento. O homem, o indivíduo humano, é o portador do conhecimento efetivo. O conhecimento enquanto bem social é apenas conhecimento potencial, é coleção de registros e convenções que, para tornar-se conhecimento efetivo, deve ser efetivado, atualizado na consciência do indivíduo vivente.
Mais ainda, só no plano do indivíduo autoconsciente é que o conhecimento pode adquirir validade: só na consciência individual vivente se realiza a prova apodíctica, só o indivíduo tem acesso efetivo às verdades universais, enquanto a coletividade deve se contentar com fórmulas mais ou menos convencionais — ou consensuais — de uma verdade meramente potencial.
Essa foi a inspiração originária de todo o meu esforço filosófico. É claro que, partindo dessa base, fui descobrindo, nos livros e nas aulas, muitos desenvolvimentos possíveis. Até agora, só publiquei uma parte ínfima de minhas notas de aula, sobretudo em Aristóteles em Nova Perspectiva e em O Jardim das Aflições; a maior parte de meus livros publicados trata apenas de crítica cultural, com uma filosofia subentendida mas não muito explicitada.
— Fale das influências recebidas.
Em filosofia, as influências determinantes que recebi foram a de Husserl (principalmente o de Lógica Formal e Lógica Transcendental e o da Crise das Ciências Européias), e a de Aristóteles. Do primeiro, recebi a noção da lógica pura como teoria da ciência; do segundo, a noção da organicidade do sistema das ciências, que depois submeti a uma reinterpretação ainda mais radicalmente organicista e até “holista” no livro Aristóteles em Nova Perspectiva.
Devo muito, no entanto, aos estudos de religião comparada e simbólica tradicional (René Guénon, Frithjof Schuon, Titus Burckhardt, Seyyed Hossein Nasr) e às noções de alquimia natural e espiritual que recebi de dois amigos, Juan Alfredo César Müller e Michel Veber. O primeiro foi um gênio da psicologia clínica, que, além de me revelar todo o mundo do pensamento analógico e simbólico também me abriu os olhos para a obra de L. Szondi, o grande psiquiatra húngaro, o único pensador que conseguiu dar um sentido prático e clínico à dialética da liberdade e do destino. Do segundo, um instrutor de artes marciais doublé de artista plástico e aliás o mais importante escritor inédito do Brasil, recebi ensinamentos vitais sobre a alquimia espiritual na tradição chinesa.
Recebi ainda o impacto decisivo da doutrina vedantina, da qual tomei conhecimento por Swami Dayananda Sarasvati, diretor da Academia de Estudos Védicos de Bombaim, que eu e alguns companheiros trouxemos ao Brasil para dar conferências e se tornou um grande amigo do nosso país. Ele me pôs na direção certa em que devem ser lidas as obras de Shankaracharya, provavelmente o mais alto espírito metafísico que já habitou este mundo.
Um pouco mais tarde, descobri, esquecidas do mundo, as obras do grande filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, que fez um esforço de gigante para reordenar o conjunto das ciências filosóficas à luz de uma nova teoria do conhecimento fundada nos números pitagóricos, compreendidos não como quantidades, mas como categorias lógicas e ontológicas.
— Como v. interpreta o problema das relações entre civilizações hoje em dia? Há descontinuidades históricas ou geográficas no campo da civilização, ou só podemos falar de evolução contínua e suas nuanças?
A chamada civilização ocidental pôs sua pata sobre o mundo inteiro, e não existe nenhuma outra em condições de se opor a ela. A resistência islâmica é quixotesca, e tão contaminada de ocidentalismo que, na Arábia Saudita, para cumprir a lei tradicional que proíbe um homem de ficar sozinho num recinto com mulheres estranhas, as classes femininas assistem às aulas por um circuito interno de TV. Quem teve essa idéia imaginou estar pondo a técnica moderna ocidental a serviço da tradição, mas na verdade subjugou a tradição às exigências de uma civilização técnica avassaladora.
O Ocidente unificou o mundo, mas o unificou por baixo, pela técnica e pela economia, não por cima, pelo espírito e pelos valores. Não digo isso como quem lamenta, mas como quem constata um fato. Nos últimos séculos, toda superioridade material é obtida mediante a perda dos valores que dão sentido à vida. Isso acontece com as culturas e nações em particular e com a humanidade em geral. Veja por exemplo o caso dos judeus: tornaram-se poderosos política e militarmente, mas já não são mais judeus, no sentido espiritual do termo: esqueceram Jeová e se tornaram adoradores de si mesmos. Do mesmo modo, a civilização ocidental, cristã na sua inspiração originária, dominou as outras civilizações, mas já não é mais cristã. E tenho motivos para duvidar de que o fundamentalismo islâmico seja realmente fundamentalista; ele me parece ser antes uma inovação revolucionária, uma politização da tradição, sem verdadeiro fundamento espiritual, uma espécie de “teologia da libertação” islâmica. Todos perderam o sentido dos valores espirituais, com a diferença de que os ocidentais e os judeus tiveram um ganho material em troca, e os demais nem isso.
Em todo caso, não podemos esquecer que, quando o Império Romano unificou o mundo então conhecido, ele o fez também só pela força material desprovida de espiritualidade, e que logo em seguida veio o cristianismo insuflar vida nova no corpo da civilização romana, ao mesmo tempo que o poder político-militar romano se desfazia. Provavelmente, dentro de alguns séculos, ou talvez décadas, a civilização mundializada que hoje conhecemos virá a receber um novo influxo dos céus, ao mesmo tempo que se desfará em cacos a estrutura político-militar e midiática que hoje está sendo montada para sustentá-la.
Por via das dúvidas, acho que, longe de estar entrando num período de decadência, a americanização do mundo mal começou. O ciclo que o mundo vive hoje é o da Revolução Americana que se mundializa, e isto não está no fim: está no começo.
Os intelectuais de esquerda — a gente mais estúpida e ridícula que existe no mundo — acham que combatendo o liberalismo e propagando a socialdemocracia estarão se opondo à expansão do império americano. Isso é loucura. Os Estados Unidos são hoje uma socialdemocracia, onde a privatização da economia é compensada por uma intromissão cada vez maior do Estado nos outros setores da vida, a começar pela vida privada, pela alma dos cidadãos: o neoliberalismo da economia vem junto com um crescente socialismo da psique e da cultura; quer se lute em favor de um ou de outro, quem acaba favorecido no final é o Império mundial, o Império americano, cujos dois braços são a esquerda e a direita.
Quanto à socialdemocracia, é perfeitamente compatível com o neoliberalismo, como se vê no caso da Suécia, onde 95 por cento do capital industrial estão nas mãos de grupos privados e onde não obstante o Estado controla toda a economia através do sistema financeiro e previdenciário, assim como controla toda a vida social e psíquica através da espionagem interna, da doutrinação maciça, da estupidificação das massas pela educação estatal, do controle totalitário da vida privada e até da vida física dos cidadãos. A luta aparente entre neoliberais e socialdemocratas, que se observa hoje em toda parte, terá como único resultado transformar o mundo numa imensa Suécia de língua inglesa.
Se querem entender o que está se passando por trás dos conflitos aparentes, perguntem a si mesmos por que os grandes organismos internacionais, que são o núcleo do futuro governo mundial, favorecem, na economia, a adoção de princípios neoliberais, ao mesmo tempo que ajudam com verbas e apoio publicitário todos os movimentos esquerdistas e revolucionários, como por exemplo os “Sem Terra” no Brasil e os movimentos de imigrantes nos países europeus. É porque sabem que as duas linhas de ação irão convergir para um resultado único: o fortalecimento do poder mundial e da síntese “sueca”: privatização da economia, estatização de tudo o mais.
No meu país, os intelectuais de esquerda dizem que sou de direita, porque combato projetos ditos “progressistas” como o direito ao aborto, as quotas preferenciais de empregos para determinadas raças, etc. Não entendem que esses projetos estão enquadrados na política geral globalizante e que, ao defendê-los, servem ao Império Americano que ingenuamente imaginam combater. Sem perceber, a esquerda tornou-se serva do que antigamente ela denominava “imperialismo”.
Mais ridícula ainda é a luta pelo “multiculturalismo”, que, defendendo os direitos de determinadas raças ou culturas, imagina estar se opondo ao projeto globalizante, sem perceber que o multiculturalismo é a estratégia globalizante para a neutralização das diferenças. O negro que proclama seu direito de viver na América vestido de africano imagina exaltar a cultura africana, mas só faz provar a flexibilidade e a força do sistema americano: ele prova, de certo modo, a superioridade da cultura ocidental, ao mostrar que ela pode assimilar culturas africanas e não pode ser assimilada por elas.
— A civilização atual tem um potencial destrutivo que ameace a humanidade?
Certamente. O presente ciclo histórico, inaugurado no século XVIII, baseia-se na concepção prometéica de que o homem, em vez de apenas governar o mundo, deve reinventá-lo. O número de “receitas de mundo” que os filósofos inventaram nos últimos séculos é impressionante, e mais impressionante ainda é o número de vítimas que são imoladas no altar do suposto “mundo melhor”: a Revolução Francesa, em um ano, matou quase um milhão de pessoas – mais gente do que a Inquisição matou em cinco séculos. Daí por diante o preço do futuro em vidas ceifadas no presente não cessa de crescer, até chegarmos aos cem milhões de vítimas do comunismo. A monstruosidade do fenômeno comunista é tanta, que a mente humana se recusa a tomar consciência dele. Atônita, faz de conta que de nada sabe. Mas o comunismo matou mais gente do que duas guerras mundiais, somadas ao número de vítimas de todas as epidemias, terremotos e desastres aéreos e às de todas as ditaduras de direita. O comunismo foi, em suma, a coisa mais mortífera que já aconteceu à humanidade desde o dilúvio bíblico. Supor que tudo isso possa resultar de simples desvios acidentais de um ideal que permanece nobre em essência é, para dizer o mínimo, ingenuidade. A meu ver, o ideal comunista – a construção deliberada de uma “sociedade mais justa” – é intrinsecamente mau. Não existe justiça nenhuma em planejar de antemão a vida das gerações futuras, obrigando-as a arcar com o peso de milhares de decisões que não tomaram e com as quais talvez não venham a concordar. É monstruoso decidir hoje, de maneira irrevogável, a vida dos homens de amanhã. A idéia de uma intervenção global dos reformadores sobre a sociedade é monstruosa em si, independentemente do conteúdo das suas propostas (ou pretextos). Nenhum homem, a não ser que esteja investido de autoridade profética – atestada por milagres – deve ter tamanho poder.
Ora, a idéia central da nossa civilização (e não só do comunismo) é precisamente a busca da sociedade perfeita, do Estado perfeito, que implica necessariamente a moldagem planificada do futuro, a supressão fatal da liberdade de decisão das gerações futuras.
Essa idéia produz necessariamente a extensão indefinida da capacidade legisferante do Estado, que hoje, em certos países, regula até mesmo as relações íntimas entre seres humanos, os olhares e os sentimentos. Se o comunismo foi a versão mais radical dessa tendência, nem por isto ela deixa de ser crescente nas sociedades ditas democráticas, onde, se o Estado dá mais liberdade para a atividade econômica, para compensar vai suprimindo rapidamente todas as outras liberdades, como acontece na Suécia e nos Estados Unidos, onde o cidadão, livre para ganhar dinheiro, é cada vez mais fiscalizado e policiado em sua vida privada. O Estado procura inclusive jogar os indivíduos e os grupos uns contra os outros, para melhor imperar sobre todos: ele promete proteger os filhos contra os pais, as esposas contra os maridos, os pobres contra os ricos, os gays contra os heterossexuais, os não-fumantes contra os fumantes, e vice-versa, enfim, todos contra todos, e ninguém se pergunta como ele poderá fazê-lo sem o crescimento desmesurado do seu próprio poder. A ampliação dos chamados “direitos humanos” resulta, em última instância, num crescimento do poder, num crescimento da tirania. O pior é que os povos vão se habituando a isso e, enganados pela propaganda que os lisonjeia pelos maravilhosos direitos adquiridos, não se lembram de fazer a conta dos direitos perdidos. Fala-se, por exemplo, em direitos da mulher. Ora, durante toda a história do Ocidente a mulher teve o direito de não ser diretamente atingida pelas guerras; as batalhas travavam-se fora ou em torno das cidades, justamente porque dentro delas havia mulheres e crianças que deviam ser preservadas. Esse direito era líquido e certo. Hoje ele não existe mais: não apenas as guerras matam indiscriminadamente homens, mulheres e crianças, mas todos os Estados vão inventando instrumentos legais para obrigar as mulheres (quando não as crianças) a prestar serviço militar. Outro exemplo: hoje já se aceita como coisa normal e legítima o uso de instrumentos subliminares para o controle de comportamento das multidões, que quatro décadas atrás era denunciado como monstruosa intrusão da autoridade tirânica.
Não digo que isso é um potencial destrutivo apenas: é a destruição em marcha.
Se me perguntarem o que se deve fazer, respondo que não sei, de modo geral, mas que uma coisa é certa: é preciso absolutamente deter a fúria planificadora dos governantes, é preciso acordar do delírio prometéico, é preciso reconhecer que nenhuma geração é sábia o bastante para resolver os problemas das gerações futuras, é preciso absolutamente anular as decisões que mutilem gravemente a liberdade de decisão dos que ainda não nasceram. Mas hoje a ambição prometéica é tão alucinada que já não quer só legislar sobre todas as coisas, mas pensa até em predeterminar geneticamente a vida das gerações futuras. Nossos governantes já não querem ser apenas profetas-legisladores: querem ser deuses. Primeiro equipararam-se a Moisés, depois ao próprio Jeová.
— V. atribui às civilizações sul-americana ou leste-européia algum estatuto distinto ou elas têm que ser consideradas como partes integrantes de outras unidades culturais e históricas ?
A situação hoje é bem clara: uma civilização, muitas culturas. É evidente que emprego os termos no velho sentido de Spengler: civilização como uma superestrutura técnica, econômica e administrativa, cultura como um modo de ver e sentir próprio de um determinado povo.
Ora, a civilização que se denomina Ocidental afasta-se cada vez mais de suas bases culturais mais amplas (greco-latina, judaico-cristã) para se tornar cada vez mais estreitamente moderna, tecnológica e anglo-saxônica. É uma tragédia que isso aconteça precisamente no momento em que essa civilização se mundializa e começa a imperar materialmente sobre todas as culturas. Nos Estados Unidos, país que está na liderança do processo civilizador, as elites se mostram cada vez mais incapazes de absorver o legado da cultura Ocidental e se fecham em concepções improvisadas, em arranjos de ocasião fundados nas contingências e interesses tecnopolíticos do momento. Nas universidades norte-americanas, ganha prestígio uma tese monstruosa chamada “autonomia filosófica”, segundo a qual é desnecessário estudar as filosofias anteriores ao ciclo intelectual iluminista, isto é, ao nascimento das concepções atualmente vigentes nos Estados Unidos. A filosofia, nesse sentido, começaria, no máximo, com Descartes. Em suma, a cultura norte-americana parece tornar-se cada vez mais limitada e provinciana (provinciana inclusive no sentido temporal do estreitamento da consciência histórica), ao mesmo tempo que crescem a importância e o poderio dos EUA como líderes da civilização mundial.
Os países da Europa Ocidental, ainda que mais apegados a suas raízes culturais, americanizam-se rapidamente e não parecem ter vigor para reagir à nova barbárie. A causa disto é que, acostumadas a identificar prestígio cultural e poderio político-econômico, tendem a inibir-se intelectualmente ante o país mais forte e deixar-se guiar por ele. Acostumadas a carregar numa mão o báculo (símbolo da autoridade espiritual), na outra o cetro (símbolo do poder monárquico), ao perder o cetro inibem-se de usar o báculo e acabam perdendo, junto com o poder material, toda autoridade espiritual.
É aí que culturas como a sul-americana (especificamente a brasileira) e a leste-européia (e especificamente a romena) podem exercer um papel benéfico e fundamental para o rumo das coisas no mundo. Nossos países jamais foram senhores do mundo, e por isto entre nós a elevação cultural e espiritual não esteve jamais associada ao poder material. Por esta mesma razão, estamos muito mais próximos das nossas raízes respectivas (e, a fortiori, das raízes gerais da cultura Ocidental) do que os EUA e a Europa Ocidental podem estar. EUA e Europa estão demasiado identificados ao momento histórico para poder transitar livremente pela atmosfera espiritual de outras épocas: tendem a julgá-las desde o ponto de vista cronocêntrico, que faz do hoje o topo e o juiz da História, e que é uma grande ilusão. Nós, ao contrário, sul-americanos e leste-europeus, podemos estar à vontade em Roma ou na Idade Média. Nós ainda compreendemos o que os homens dessas épocas queriam dizer e temos, por isto, um sentido muito mais agudo dos valores eternos e supra-históricos. Somente nós podemos, hoje, impedir que esses valores se percam para sempre no torvelinho globalizante que as nações mais poderosas nos impõem de maneira apressada e inconseqüente. Somente nós podemos exigir dos senhores do dia a obediência a valores espirituais que eles, arrastados na voragem do prometeanismo reformador, já nem sequer entendem mais. Eles são como um rei muito poderoso e semi-enlouquecido na contemplação eufórica do seu poder quase ilimitado. Nós somos o velho sábio asceta que pode devolver ao rei o uso da razão, porque nós vemos as coisas na perspectiva de um tempo mais longo e avaliamos melhor as conseqüências dos atos humanos.
Além disso, é preciso levar em conta os tesouros da psicologia nacional, que cada um de nossos povos conserva como um legado de sabedoria instintiva, que a civilização globalizada desconhece.
Os romenos, por exemplo, têm a arte de sobreviver num mundo cruel sem comprometer-se intimamente com a crueldade. Vocês se livraram de seus nazistas e de seus comunistas sem persegui-los, sem fuzilá-los, mas simplesmente absorvendo-os numa nova situação da qual eles participam por hipocrisia mas sem prejudicá-la seriamente. Isto é de uma sabedoria admirável, num mundo onde se considera que é absolutamente necessário punir crimes políticos cometidos quarenta ou cinqüenta anos atrás. É sabedoria comparável à de Maomé, que dizia aos fiéis: “Os hipócritas são nossos amigos, não nossos inimigos”, e que, ao invadir triunfante a cidade que o expulsara, puniu cinco e não mais de cinco inimigos, perdoando todos os demais. O purismo imbecil que quer aplicar a lei a ferro e fogo é pior que a hipocrisia: é o fingimento total, a mentira total. Que sentido existe em punir um Maurice Papon porque perseguiu judeus cinqüenta anos atrás e continuar exaltando ao mesmo tempo os comunistas que, apoiando o pacto germano-soviético, se tornaram cúmplices do crescimento nazista? Na verdade, quem grita pedindo a condenação de um criminoso está em geral encobrindo outro criminoso, ou vários.
Quando Cristo disse “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça”, quis enaltecer aqueles que buscam ser justos, que buscam abster-se de fazer injustiças, não aqueles que querem espalhar cadeias, guilhotinas e cadeiras elétricas pelo mundo a pretexto de fazer justiça. Acho que esse sentido da fragilidade – e às vezes da absurdidade – da justiça humana é particularmente desenvolvido no povo romeno e na cultura romena.
Quanto aos brasileiros, que foram poupados às grandes tragédias do século, eles têm um senso muito agudo da pessoa humana concreta, que tem mais valor do que sua ideologia, sua classe, seu grupo racial, sua herança cultural etc. No Brasil é coisa muito comum, banal mesmo, milionários terem amizade com homens do povo, pessoas de uma raça se casarem com as de outra. Quanto aos grupos religiosos, já éramos ecumênicos muito antes que essa palavra entrasse na moda. Meu pai freqüentava ora o culto católico, ora o protestante, e ninguém via nisso a menor contradição. Mesmo pessoas radicalmente diferentes podem conviver, mais que em paz, num ambiente de verdadeira e sincera cordialidade. Veja você: minha mãe, que sempre foi muito católica e durante décadas trabalhou no escritório do Arcebispo de São Paulo, ficou escandalizada quando um casal gay (um travesti com seu “marido”) se mudou para o seu prédio. Passadas algumas semanas, começou a achar graça e levar a coisa para o lado cômico. Depois de uns meses, vou visitar minha mãe e encontro-a tomando chá com a travesti, conversando animadamente como velhas amigas. Uns anos depois a travesti morreu de Aids e minha mãe chorou copiosamente, repetindo: “Ela era tão boa amiga…” O mais extraordinário de tudo é que, em tese, minha mãe ainda continua até hoje absolutamente contrária à legalização dos casamentos gays. Não era portanto por convicção ideológica que ela aceitava a travesti sem discriminações ou preconceitos: era por legítima afeição humana, que se sobrepunha a todos os abstracionismos ideológicos. São coisas maravilhosas que só existem no Brasil.
— V. ainda considera importante o papel histórico das revoluções ?
Há na cultura mundial de hoje toda uma mitologia, toda uma idealização das revoluções, como se não fossem acontecimentos separados, mas sim etapas de uma caminhada em direção à liberdade crescente. Pode-se discernir, de fato, um sentido geral e unitário na sucessão de revoluções — mas ele não aponta na direção da liberdade crescente e sim no do crescimento do poder, no do aumento da distância entre o poderoso e o homem comum. Na Idade Média, as armas do senhor de terras não eram muito diferentes daquelas que um camponês enraivecido poderia usar em caso de necessidade: espada, machado, maça. Ademais, o senhor feudal vivia entre os camponeses, participava do seu cotidiano e estava ao seu alcance. O poderoso de hoje dispõe de armas que estão até mesmo acima do que o homem comum pode imaginar, e pode, à distância, destruir cidades inteiras. Ele dispõe também de uma rede de informantes que, por meios eletrônicos, podem fiscalizar o cidadão vinte e quatro horas por dia sem que este perceba. O Estado pode hoje, instantaneamente, saber tudo sobre a vida econômica, profissional, social, sexual e mental de qualquer cidadão. A vida do homem comum tornou-se indefesa e transparente, enquanto a autoridade se tornou opaca, invisível e onipresente. É absolutamente ridículo pretender que os pequenos direitos conquistados pelo cidadão compensem esse crescimento desproporcional da autoridade.
As revoluções foram o instrumento por excelência do processo de extensão ilimitada do poder. Luís XIV, para recrutar soldados, tinha de ir pessoalmente de cidade em cidade, implorando que os nobres e a plebe se alistassem. Conseguiu juntar 140 mil homens, o maior exército da Europa. A Revolução instaura o recrutamento militar obrigatório e em poucas semanas reúne um milhão de soldados, número logo superado pelas tropas em luta — igualmente recrutadas à força — na Guerra Civil Americana, que completa a obra da Revolução da Independência consolidando o Estado americano. A Revolução Russa cria o recrutamento obrigatório de mulheres e crianças e instaura o maior Estado policial da História.
A força transformadora das revoluções provém menos da violência do que do caos e da nebulosidade em que se desenrolam, e no qual as pessoas perdem todo o senso dos valores e das proporções, sentindo-se desorientadas e dispondo-se a aceitar, para escapar da insegurança, toda exigência absurda que a nova autoridade lhes faça. A fraude que faz um povo aceitar a escravidão sob o nome de liberdade pertence à essência mesma das revoluções. E como as revoluções têm sido o meio essencial de transformação do mundo, é fatal que essa transformação vá sempre no sentido de um entorpecimento da consciência, no sentido de uma espécie de imbecilização que torna os homens escravos, dirigindo seu ódio contra inofensivos bodes expiatórios.
Mas é claro que não devemos chamar de “revolução” somente os processos violentos de tomada do poder. Qualquer aceleração intencional das transformações políticas, que ultrapasse a capacidade de compreensão do povo e o arraste numa sucessão de acontecimentos cujo sentido ele não pode captar, é uma revolução. Hoje assistimos a uma imensa revolução mundial, que vai instaurando um poder global cuja natureza pouquíssimas pessoas parecem compreender.
Ao longo de toda a história humana, só três constantes gerais foram observadas: a constante de Malthus, isto é, o aumento da população, a constante de Huntington (refiro-me ao geógrafo, Ellsworth Huntington, não ao politólogo, Samuel Huntington), isto é, a tendência à absorção de civilizações menores nas maiores, até à completa mundialização, e a constante de Jouvenel, isto é, a centralização do poder e aumento dos meios de dominação, um processo só aparentemente compensado pela democratização das instituições. A população jamais parou de crescer, os contatos entre civilizações jamais pararam de ser cada vez mais intensos, e o poder jamais cessou de se tornar cada vez mais forte e centralizado à custa da supressão dos poderes intermediários. Estes três processos, inicialmente independentes, começam a se interligar a partir do século XVIII, e as revoluções aceleram o processo global.
— V. falou sobre a globalização da ignorância. Como é que v. considera o fenômeno da globalização e que papel histórico tem a ignorância ?
“Globalização”, ou unificação financeira do mundo, não é um projeto. É um fato consumado. Mas para funcionar com pleno rendimento ela ainda tem de eliminar certos resíduos da velha autonomia dos poderes nacionais. É para isso que serve a esquerda, e para nada mais.
Na vasta estratégia concebida pelos senhores do mundo para a unificação econômica, moral, política e administrativa da espécie humana, cabe à chamada “esquerda” uma tarefa muito determinada, que ela cumpre com admirável subserviência e disciplina. Essa tarefa é tripla: em primeiro lugar, debilitar os Estados nacionais, despertando reivindicações que não possam ser atendidas com os recursos existentes dentro de suas fronteiras, mas requeiram ajuda externa que fatalmente os fará submeter-se cada vez mais às organizações internacionais. São características, nesse ponto, as reivindicações ligadas à ecologia, à distribuição da renda, aos direitos de trabalhadores imigrantes e de minorias étnicas, etc. Em segundo lugar, boicotar toda solução local ao problema do banditismo, de modo que este se agrave até requerer a intervenção de poderes transnacionais (unificação policial-militar do mundo). Finalmente, promover a destruição de todos os valores e símbolos associados à idéia de pátria, família, tradições – a base psicológica das autonomias nacionais. Neste tópico são decisivas a propaganda do aborto, a luta pela legalização das uniões gays e causas similares, que aos poucos vão acostumando os povos a novos padrões morais – uniformes em escala mundial – e a uma intervenção cada vez maior do Estado na vida privada: de modo que cada Estado nacional adquire tanto mais poder sobre seus cidadãos quanto mais se submeta, no plano externo, aos poderes internacionais. Num futuro que alguns analistas prevêem para muito breve, os parlamentos nacionais legislarão sobre trânsito e sobre uso dos banheiros públicos, mas não sobre economia ou política externa.
Quanto mais a esquerda lutar por esses três objetivos, mais ela contribuirá para tornar mais pleno e eficaz o domínio planetário exercido por aquelas poucas dezenas de banqueiros dos quais já depende, hoje, a sorte das nações.
Nos países em que o pathos esquerdista inclui o forte apego a um discurso nacionalista, este discurso não apenas se mostra inofensivo na prática, como ainda contribui para tornar ainda mais invisível, aos olhos da população e da esquerda mesma, o resultado global que os esforços esquerdistas vão favorecer em última instância. Ele ajuda a conservar os militantes no estado hipnótico de falsa consciência necessário, por definição, a todo inocente útil.
Que a unificação do mundo se fará sob o signo do capitalismo, é coisa que já não se discute. O problema é saber qual tipo de capitalismo e qual o lugar que, no quadro mundial, caberá a cada nação. O primeiro desses problemas não posso discutir aqui. Quanto ao segundo, nada impede que economias fortemente estatizadas se integrem bem no conjunto capitalista do mundo: basta que o socialismo local siga as normas do jogo internacional e reserve dentro de seu território um bom espaço para a livre atuação de empresas multinacionais. A China, aliás, vive disso. O poder mundial está disposto a negociar com as esquerdas dos vários países, vendendo apoio para a conquista do poder local em troca de bons serviços à globalização. Uma esquerda boazinha e obediente concentrará então suas forças no combate a poderes regionais, que, uma vez destruídos, cedam lugar a uma das duas forças que então restarão no tabuleiro: o Estado e as multinacionais. As invasões de terras no Brasil, por exemplo, tornam a agricultura uma atividade muito cara e perigosa que, dentro de algum tempo, só o Estado e as multinacionais terão condições de financiar. Eis aí por que é o MST (Movimento dos Sem-Terra) e não os proprietários de terras quem recebe dinheiro do Exterior: é salário por serviços prestados, nada mais.
É simples: o projeto neoliberal que se diz estar em curso de implantação no mundo não é liberal. É uma fusão de elementos neoliberais e socialistas, destinada a fazer microcosmicamente, no seio de cada sociedade que governa, uma divisão territorial entre esquerda e direita similar àquela que dominou o mundo desde o acordo de Yalta: a economia fica para os capitalistas, a cultura e a política para os socialistas. À liberdade de mercado, no setor econômico, se alia o dirigismo socialista em tudo o mais – na educação, na formação psicológica das massas, nas relações de família, na ecologia, na moral pública e privada, em tudo, enfim, que não interfira nas decisões econômicas das grandes empresas. Desviando para esses setores extra-econômicos o clamor reivindicante que antes ameaçava desaguar numa economia socialista, os poderes multinacionais dividem o mundo segundo a mais confortável das repartições: liberdade para o dinheiro, burocracia estatal para os seres humanos. É por isto que os governos hoje chamados neoliberais e direitistas, como o de Fernando Henrique Cardoso, ao mesmo tempo que se esforçam por privatizar empresas, apoiam entusiasticamente políticas esquerdistas e revolucionárias, como o aborto sob proteção do Estado, o fornecimento estatal de drogas à população, as leis de affirmative action, etc. a estatização das escolas, etc. É a fórmula perfeita, para cuja consecução hoje colaboram, com inconsciência ovina, os rebanhos de sem-terra, de militantes negros, de gays, de lésbicas e tutti quanti – falsos rebeldes, muito bem protegidos pelo pastor estatal e pelo ruidoso cão-de-guarda midiático. Alguém tem dúvida de que essa orientação global, tão idêntica em todos os países, tão conveniente à harmonia do mundo, provém das mesmas fontes da tão execrada receita econômica do FMI?
É preciso ser cego para não perceber essas coisas, por trás do tênue véu de filó que a mídia tece para escondê-las.
— Qual é o lugar que v. atribui à literatura, na cultura do presente?
Hoje como sempre, a função da literatura é explorar e estruturar verbalmente o mundo do imaginário, do possível. Junto com as outras artes, a literatura abre um campo de possibilidades que delimita o mundo imaginário onde vivem os homens de uma época. É nesse campo e não para além dele que os homens fazem suas escolhas, colhem suas idéias, criam suas teorias e suas técnicas. A literatura, em especial, delimita o imaginário verbalizável e predetermina assim o campo inteiro das discussões. Para mim, não há uma separação dual, mas uma perfeita continuidade entre as artes, a filosofia e a ciência: formam como uma árvore, onde as artes são a raiz e a ciência o fruto. As obras de filosofia e ciência, nesse sentido, fazem parte da “literatura” ou são uma extensão dela.
Mas é claro que, assim como as artes abrem o espaço do imaginário, podem também fechá-lo, limitá-lo, torná-lo repetitivo e compressivo. Boa parte da literatura de massas hoje em dia faz exatamente isso, dando ao povo a ilusão de estar-se tornando culto quando na verdade está apenas assimilando cacoetes mentais, esquemas de valor padronizados, etc.
— Sei que v. dá uma grande importância à obra de Constantin Noica. O Senhor quer falar na sua aproximação dele?
Não conheço profundamente a obra de Noïca, li apenas alguns de seus textos e ouvi alguns depoimentos a respeito, mas parece-me que esse grande pensador tem a proposta de uma nova Paideia capaz de formar homens à altura de compreender o que se passa no mundo e de chegar aos cumes da autoconsciência humana.
Nos últimos anos, li poucos livros que me entusiasmassem tanto quanto as Seis Doenças do Espírito Contemporâneo, que busca restaurar o sentido da filosofia como medicina do espírito e reconquista da unidade da consciência — um objetivo que é também o de toda a minha vida e que faz de mim, espero, um irmão menor de Constantin Noïca.
— Quais são, segundo sua opinião, as figuras humanas paradigmáticas deste fim de milênio ?
Os grandes homens do século XX estiveram no campo do saber, não no da ação. Edmund Husserl é maior que Hegel ou Kant. Poucos séculos tiveram homens espirituais da altura de René Guénon, Râmana Maharshi e Franz Rosenzweig.
Mas, para mim, a figura paradigmática por excelência é Viktor Frankl, o médico judeu que, no inferno dos campos de concentração, redescobriu a idéia do sentido da vida e, em troca da dor, devolveu ao mundo o caminho da felicidade em vez de lições de ressentimento.
— Como é que o senhor contrói hoje em dia sua futura obra política e filosófica. Organizada acerca de que idéias e situações?
Resumidamente, busco resgatar o valor da consciência individual humana como sede única do conhecimento universal e apodíctico, e empreender em nome dela a crítica radical da cultura consensual, versão acadêmica da cultura de massas.
Até o momento concentrei meu trabalho de escritor filosófico principalmente em duas áreas: a crítica cultural, que a meu ver é o começo e a motivação de onde emerge uma filosofia, e a teoria do conhecimento, que é o princípio da elaboração dessa filosofia. Como professor e conferencista, no entanto, abranjo uma área muito maior, que vai da filosofia da religião à Teoria do Estado.
De modo mais detalhado, descrevo o meu trabalho no documento “Esboço de um sistema de filosofia”, que no momento eu não saberia resumir.