Publicada em O Tempo, Belo Horizonte, 15 de agosto de 2001

Estive esta semana em Belo Horizonte, onde, a convite do Grupo Inconfidência, fiz uma conferência para uma platéia de 400 pessoas no Círculo Militar. Na véspera, o diário O Tempo publicou esta minha entrevista. – O. de C.

O sr. é um filósofo “outsider”, fora da academia. Isso foi uma opção pessoal ou se deveu a alguma circunstância alheia à sua vontade?

Não foi nem uma coisa nem a outra. Foi pura coincidência. Sempre estudei só para minha orientação pessoal, sem nenhuma ambição — ou rejeição — de carreira acadêmica. Só comecei a dar conferências porque fui convidado. Gostei e continuei. Mas aí já não tinha mais sentido pensar em profissão acadêmica, porque eu já tinha meu campo de estudos definido, e ele era muito alheio aos interesses acadêmicos do dia.

Considerando que o diálogo intelectual é uma condição essencial para o exercício filosófico, qual é a sua relação com seus colegas, os demais filósofos brasileiros, acadêmicos ou não?

O diálogo é certamente importante, mas, numa situação anormal como a brasileira, a área de diálogo é muito restrita. Se quero falar sobre a filosofia de Eric Voegelin, de Xavier Zubiri, sobre as últimas pesquisas em torno de Aristóteles ou sobre religiões comparadas, quase não há com quem conversar no ambiente acadêmico paulista e carioca. Não posso ter diálogo com uns coitados que só leram Marx, Nietzsche e Derrida, e que acreditam, para valer, que Florestan Fernandes é um grande pensador. O ambiente acadêmico é provinciano, limitado, inculto, fanatizado, padronizado e, por autodefesa de fracote, arrogante. Não há conversa inteligente que possa subsistir aí.

O sr. tem assumido publicamente posições que o vinculam à vertente ideológica conservadora. Esse fato pode ser deduzido de sua perspectiva filosófica, ou se trata exatamente do contrário?

Você deveria perguntar isso àqueles que “me vinculam” a essa corrente. Da minha parte, asseguro que não sou um ideólogo de maneira alguma. A crítica radical que faço à ideologia dominante nos nossos meios intelectuais não implica a filiação a qualquer outra ideologia. Aliás, a crença mesma de que uma ideologia só possa ser criticada desde outra ideologia é um dogma comunista perfeitamente inaceitável. Para além das ideologias há a ciência e a filosofia, e elas dão base suficiente para uma crítica supra-ideológica de qualquer ideologia. Pessoas que dizem o contrário não têm experiência pessoal suficiente da ciência ou da filosofia, já entraram na vida adulta intoxicadas de ideologia e imaginam que, fora do poço que habitam, não existe nada.

A propósito, existe um pensamento de direita no Brasil (cuja origem passaria por nomes como Francisco Campos, os militantes do Centro Dom Vital e, contemporaneamente, Roberto Campos e José Guilherme Merquior)? O sr. se filia a essa corrente?

“Essa corrente”? Qual? Não há aí corrente nenhuma. Somente na imaginação comunista poderia haver algo de comum entre um fascista como Campos, os conservadores católicos do Centro Dom Vital e os liberais voltaireanos Campos e Merquior. Aí há três correntes inconciliáveis: uma diz que o poder deve ficar com o Estado, outra com a Igreja, outra com o livre mercado. As três coincidem apenas no anticomunismo, mas há milhões de razões para ser anticomunista, e elas não formam entre si a unidade de uma ideologia. A fantasia comunista é que, ignorando essa pluralidade de pontos de vista possíveis, constrói um espantalho de “unidade direitista” e depois se esconde embaixo da cama, com medo. Ser comunista é ser idiota, e usar as categorias comunistas de pensamento sem ser comunista é ser ainda mais idiota.

Sobre Merquior, atribuem-se aos seus livros e ensaios os fundamentos de uma retomada do pensamento convervador brasileiro. Teria ele desempenhado um papel assim tão capital?

Outra confusão. Merquior nunca foi conservador. Foi um liberal-progressista, como Campos. Conservador foi João Camilo de Oliveira Torres, foi Gilberto Freyre.

O economista Roberto Campos é outro intelectual “orgânico” (no sentido gramsciano) do conservadorismo, que tem oferecido algumas contribuições originais à reflexão sobre a sociedade e o homem brasileiros. Em que medida ele lhe serve de modelo?

Gosto muito do dr. Roberto, tenho o maior carinho e admiração por ele, mas seu pensamento não me influenciou em absolutamente nada. Dos economistas liberais, só devo algumas idéias a Ludwig von Mises e Eugen von Böhm-Bawerk. Também não recebi influência alguma do Merquior. Os únicos brasileiros que influenciaram de algum modo o meu pensamento foram Gilberto Freyre, Mário Ferreira dos Santos e Miguel Reale, o primeiro um conservador, o segundo um anarquista, o terceiro um social-liberal (se fosse possível defini-los politicamente e se suas obras não fossem muito mais ricas do que suas respectivas identidades políticas). Mas não sou, sob qualquer aspecto pensável, um seguidor de nenhum deles.

O sr. atribuiu tinturas comunizantes ao ex-candidato á presidência dos EUA, Al Gore. O sr. não estaria exagerando ao ceder, assim, a um raciocínio típico da “teoria conspirativa da história”?

Apelar à expressão “teoria conspirativa da história”, no caso, é um autêntico “argumentum ad ignorantiam”. “Argumentum ad ignorantiam” é você deduzir, do seu próprio desconhecimento de uma coisa, a inexistência da coisa. Baseado nesse raciocínio, as ligações comunistas de Al Gore só podem mesmo parecer uma hipótese esquisita, e até conspirativa. Mas relatar um fato não é fazer uma teoria, muito menos uma teoria conspirativa. E o fato é que a carreira política dos Gore, pai e filho, foi sempre sustentada pelo dinheiro de Armand Hammer, que era um dos coordenadores financeiros do Comintern e o maior lavador de dinheiro soviético de todos os tempos. Dizer isso náo é “atribuir tinturas comunizantes” a Albert Gore: é afirmar um simples fato.

Seu nome costuma aparecer na mídia associado ao do ex-delegado e ex-deputado Erasmo Dias. O sr. coincide com os pontos de vista dele a respeito da eliminação sumária de criminosos recalcitrantes e outras proposições igualmente polêmicas daquele militar que vão de encontro a uma visão, digamos, humanística da sociedade?

Nunca vi meu nome associado ao desse senhor, do qual a única coisa que sei é que ele prendeu minha esposa, Roxane, quando ela era militante estudantil. De onde você tirou essa idéia? Aliás, colocar a discussão da criminalidade entre a “eliminação sumária” e uma “visão humanística” é estereotipar demais, você não acha? Sabemos perfeitamente bem que os pretensos defensores de “direitos humanos” são, ao mesmo tempo, adeptos do regime cubano, que, este sim, pratica a eliminação sumária não só de bandidos, mas de dissidentes políticos. Evidentemente o que está em jogo aí não é uma “visão humanística”, mas um simples pretexto retórico para paralisar a ação policial e facilitar o advento de uma revolução comunista que implantará um regime totalitário e mandará fuzilar imediatamente aqueles mesmos marginais que usou como instrumento tático, exatamente como fez Lenin. Quem quer que se oponha a esse jogo é rotulado de adepto de execuções sumárias, mas isso é um truque verbal muito canalha, não lhe parece? Hoje em dia, quem quer que defenda o simples direito de um policial à defesa própria já é chamado de “adepto de execuções sumárias”. Graças a essa propaganda, o Rio de Janeiro é hoje recordista mundial de mortes de policiais. A linguagem de todo esse debate está viciada.

O que acha do sucesso de Paulo Coelho? O sr. concorda com a análise que se faz na França, atribuindo seu êxito ao fato de ser ele o único escritor que traz hoje uma mensagem positiva para os que naufragaram com o ideário de 68 e perderam o leme com a derrocada do “socialismo real”?

Só li os dois primeiros livros do Paulo Coelho, “O Alquimista” e “Diário de um Mago”. Eram histórias muito interessantes, mas, se bem me lembro, achei que ele confundia esoterismo com mera psicoterapia. Não sei a que se deve o sucesso dele, mas certamente ele não é o único escritor otimista do mundo.

Alguns críticos atribuem ao sr. uma posição simetricamente equivalente, do lado ocidental, à dos fundamentalistas muçulmanos e de outros ideólogos totalitários, ou seja, contrários à visão pluralista da cultura e da sociedade? Como o sr. responderia a essa crítica?

Que ela é uma estupidez, enunciada por semi-analfabetos que nem leram as minhas obras nem sabem o que quer que seja dos fundamentalistas islâmicos. Aliás, você acredita mesmo que os comunistas, adeptos do mais sangrento dos totalitarismos, defendam “uma visão pluralista da cultura e da sociedade”? Você já viu o controle férreo que essa gente exerce sobre as opiniões no meio acadêmico e jornalístico? Qualificar a mim como totalitário e a eles como pluralistas é uma completa inversão da situação real. É impressionante como essas mentirinhas pueris circulam e acabam sendo aceitas como verdades.

Um de seus temas mais caros é a crítica ao ensino acadêmico no Brasil. Qual seria a origem dos males apontados e como combater o estado de coisas atual?

A origem remota é a fragilidade geral das elites intelectuais brasileiras, a cuja formação ninguém deu a mínima atenção, desde o século passado. A origem próxima é a apropriação da universidade pela propaganda totalitária rasteira. Hoje o brasileiro só entra numa universidade para aprender a recitar slogans maoístas e fidelistas dignos de inteligências de galinha. Os partidos de esquerda são diretamente responsáveis pela redução da universidade brasileira à barbárie.

A imprensa brasileira luta para alcançar mais leitores, mas prende-se aos limites estruturais de um país semi-alfabetizado e a estratégias de marketing que pregam a popularização. Parece-lhe que essa imprensa vem cumprindo adequadamente seu papel?

A imprensa é hoje o produto de um conluio entre os interesses comerciais das empresas e os interesses políticos dos grupos esquerdistas que dominam as redações. As empresas, em troca de dinheiro, deixam os jornalistas-militantes fazer propaganda ideológica, e estes, em troca de espaço para enganar o leitor com propaganda ideológica, lutam pelo crescimento econômico das empresas. Isso é tudo. Graças a esse estado de coisas, notícias fundamentais, como por exemplo o julgamento do clã Pol-Pot no Camboja (certamente o fato judicial mais importante desde o tribunal de Nuremberg), são cinicamente sonegadas ao povo. Simplesmente não há mais jornalismo no Brasil, com exceções que se contam nos dedos de uma só mão. O que há, em geral, é manipulação e desinformação.

Como o sr. vê a questão do racismo no país e as relações sociais que camuflam os conflitos e traumas históricos, negando-os ou relativizando-os positivamente diante de realidades, como a norte-americana, onde as reivindições dos afro-descendentes são postas de maneira muito mais afirmativa?

O racismo brasileiro, se existe nas proporções com que intelectuais a soldo de fundações americanas querem nos fazer crer que existe, deve ser mágico, pois se dissemina sem propaganda, sem livros, sem cartazes, sem sites na internet, sem partidos racistas, e, enfim, por meios puramente telepáticos. A diferença de padrão econômico entre a população branca e a negra e mestiça resultou de um fato muito simples: entre a abolição da escravatura e o primeiro surto de industrialização, passaram-se quarenta anos. Durante esse tempo a população negra e mestiça cresceu sem que crescessem as vagas no mercado de trabalho. Quando abriram as vagas, veio a guerra e elas foram ocupadas pelos imigrantes, que vinham com melhor formação profissional. Então, fatalmente, “negro” virou sinônimo de pobre, de brega, de desempregado. Isso é menos um preconceito do que a expressão de uma situação social de efetiva desvantagem. Temos de tirar essa gente dessa situação deprimente, mas não será com injustas acusações de racismo ao restante do povo brasileiro que vamos conseguir isso, sobretudo quando essas acusações são pagas com dinheiro americano. Esse debate está viciado por uma conjunção acidental de interesses entre entidades norte-americanas que querem debilitar nossa identidade nacional e forças esquerdistas locais que querem aproveitar a onda antibrasileira para fazer demagogia revolucionária.

Comments

comments