Em busca da cultura

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 4 de fevereiro de 2015

Em artigo escrito já há algum tempo, o publicitário Nizan Guanaes observa que às nossas classes altas falta, sobretudo, cultura. Pura verdade, mas por que somente às classes altas? Ao longo da quase totalidade da história humana, o conjunto dos homens mais cultos e sábios raramente coincidiu com o dos mais ricos e socialmente brilhantes.

“Livros e dinheiro são uma mistura perfeita para elegância, savoir faire e bom gosto”, diz Guanaes. É certo. Mas também é certo que elegância, savoir faire e bom gosto não são propriamente a alta cultura: são a vestimenta mundanizada que ela assume quando desce do círculo das inteligências possantes e criadoras para o âmbito mais vasto dos consumidores abonados, da sociedade chique. São cultura de segunda mão.

O que falta no Brasil não são apenas ricos educados. O que falta são intelectuais capazes de educá-los. Um indício claro, entre inumeráveis outros, é que nenhuma universidade brasileira, estatal ou privada, foi jamais incluída na lista de cem melhores universidades mundiais do Times Higher Education World Ranking de Londres. Não há nessa exclusão nenhuma injustiça. Rogério Cezar de Cerqueira Leite explicou o porquê em Produção científica e lixo acadêmico no Brasil.

Foi talvez sentindo obscuramente a gravidade desse estado de coisas que o próprio Guanaes mandou seu filho estudar na Phillips Exeter Academy, de New Hampshire, tida como a melhor escola preparatória americana, na esperança de colocá-lo depois em alguma universidade da Ivy League, como Harvard, Yale, ou Columbia.

Sem deixar de cumprimentar o publicitário pelo seu zelo paterno, observo que suas próprias ações provam antes o meu diagnóstico da situação do que o dele: se cultura faltasse somente aos homens ricos, bastaria enviar seus filhos a alguma universidade local ou fazê-los conviver com intelectuais de peso em São Paulo ou no Rio, e decorrida uma geração o problema estaria resolvido.

Mas aí é que está: faltam universidades que prestem, e os grandes intelectuais morreram todos, sendo substituídos por duas gerações de tagarelas incompetentes, cabos eleitorais e cultores da própria genitália, como documentei abundantemente em O Imbecil Coletivo (1996) e O Mínimo que Você Precisa Saber para Não Ser Um Idiota (2014), além de centenas de artigos, muitos deles neste mesmo Diário do Comércio.

Ricos e até governantes incultos não são, por si, nenhuma tragédia, desde que haja em torno uma classe intelectual séria, capaz de lhes impor certos padrões de julgamento que eles não precisam compreender muito bem, só respeitar.

Foi assim na Europa ao longo de toda a Idade Média e até épocas já bem avançadas dentro da modernidade, quando a casta nobre considerava que a única ocupação digna da sua posição social era a guerra, deixando os estudos para os padres e demais interessados.

O Imperador Carlos Magno só começou a aprender a ler – de má vontade – depois dos trinta anos. Afonso de Albuquerque, sete séculos depois, ainda considerava que saber línguas estrangeiras era coisa para subalternos. A alta cultura não era sinal de posição social elevada, era um ofício especializado. Daí a palavra clerc, “clérigo”, que não designava só os sacerdotes, mas, de modo geral, toda pessoa letrada.

Complementarmente, os homens de estudos eram o que podia haver de mais diferente do grand monde, dos ricos e elegantes. Até bem recentemente, mesmo nos EUA, os intelectuais, sobretudo universitários, primavam por uma vida austera, sem divertimentos nem confortos, a não ser que, por coincidência, viessem eles próprios de alguma família rica.
Tudo mudou nos anos 80, com o advento dos yuppies. Um yuppie é um jovem com diploma de universidade prestigiosa, um emprego regiamente pago em alguma cidade grande, um círculo de amigos importantes que se reúnem em clubes chiquérrimos e uma cabeça repleta de regras de polidez politicamente corretas, um conjunto formidável de não-me-toques que facilitam a aceitação social na mesma medida em que dificultam o pensamento. Foi aí que formação cultural começou a significar elegância, bom gosto e refinamento em vez de conhecimento e seriedade intelectual.

Esse foi um dos danos maiores produzidos pela desastrosa administração Jimmy Carter. Até os anos 70 os EUA ainda tinham a melhor educação do mundo, toda ela fruto da iniciativa autônoma da sociedade. A intervenção estatal, associada ao império do esquerdismo chique e ao açambarcamento de toda atividade cultural pela burocracia universitária, iniciou o processo de degradação intelectual documentado por Russell Jacoby em The Last Intellectuals: American Culture in the Age of Academe e por Allan Bloom em The Closing of the American Mind, ambos de 1987.

No Brasil, a palavra “Harvard” ainda pode significar altíssima cultura, mas nos EUA ela evoca antes a pessoa de Barack Hussein Obama, que chegou a diretor da Harvard Law Review sem ter ultrapassado o nível das redações ginasianas e depois fez fama de autor com dois livros escritos inteiramente por Bill Ayers, um terrorista doublé de talentoso artista da palavra.

Nada mais expressivo do vazio intelectual de Harvard do que o sucesso de John Rawls, o qual, segundo a boutade de Eric Voegelin, escreveu uma Teoria da Justiça sem notar que se tratava de uma teoria da injustiça.

O que hoje resta da antiga pujança intelectual americana refugia-se em grupos autônomos, como o círculo de discípulos do próprio Eric Voegelin, as redações de New Criterion e Commentary, meia dúzia de editoras high brow ou o time seleto de scholars que compõem a equipe de Academic Questions, uma revista acadêmica dedicada ao estudo… da decadência acadêmica.

Em comparação com o que temos no Brasil, é muito, é uma abundância invejável, mas, para o antigo padrão americano, é quase miséria. Os EUA só continuam sendo o paraíso dos estudos superiores no sentido yuppie do termo. Não por coincidência, Guanaes cita como protótipo de pessoa culta a riquíssima, chiquíssima e politicamente corretíssima Ariana Huffington, fundadora do Huffington Post, um front de antijornalismo obamista empenhado em manter acesa a chama do “Yes We Can” contra todos os fatos, contra toda evidência e contra todo o descrédito geral.

Não quero me meter na vida da família Guanaes, mas mandar um filho estudar nos EUA – digo nas grandes universidades, e não nos círculos dos happy few – é um meio de defendê-lo contra a debacle cultural brasileira? Sim, se o que você quer para ele é uma carreira de yuppie e uma alta cultura constituída de “elegância, savoir faire e bom gosto”. Não, se você quer fazer dele um estudioso sério, capaz de compreender o Brasil e ajudar o país a sair do atoleiro.

Digo isso, também, por outro motivo. Cultura não é só aquisição de conhecimento, é a formação de uma personalidade ao mesmo tempo arraigada na realidade histórico-social concreta e capaz de transcendê-la intelectualmente.

Essa formação só é possível se ela começa pela absorção da cultura local na língua local e se prossegue nesse caminho até abarcar essa cultura como um todo e, então sim, tiver necessidade de ampliar o seu horizonte pelo contato mais aprofundado com outras culturas.
Se um jovem ignorante da sua cultura nacional é transplantado para o ambiente acadêmico de outro país, é melhor que ele fique por lá mesmo, pois, se voltar, dificilmente chegará a compreender o lugar de onde saiu.

O Brasil está repleto de diplomados de universidades estrangeiras, cujos palpites sobre a situação nacional superlotam as colunas de jornais com amostras de incompreensão que raiam a alienação psicótica. O projeto “Ciência Sem Fronteiras” está se encarregando de produzir mais alguns com dinheiro público.

Pode-se retrucar que, nas presentes condições, a aquisição da cultura brasileira se tornou inviável porque o jovem interessado não encontra guiamento nem na universidade, nem fora dela. Não tenho resposta pronta para isso, mas desde quando a dificuldade de resolver um problema torna desnecessário resolvê-lo?

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