Olavo de Carvalho
O Globo (Rio de Janeiro), 17 nov. 2001
Jean-Sévillia, em “Le Térrorisme Intellectuel de 1945 à nos Jours” (Paris, Perrin, 2000) apresenta o seguinte quadro da hegemonia esquerdista nos meios de comunicação franceses:
“A censura acabou? Não. Ela mudou de natureza. Num país eleitoralmente partilhado meio a meio entre esquerda e direita, as eleições sindicais mostram que 80 por cento dos jornalistas dão seus votos às organizações de esquerda… Fatalmente esse desequilíbrio se faz sentir na mídia. A escolha dos assuntos, o modo de tratamento, as personalidades convidadas correspondem à orientação predominante nas redações.”
Esse diagnóstico do redator-chefe do “Figaro Magazine” poderia aplicar-se igualmente ao Brasil, se não fosse por um detalhe: nos sindicatos da classe, não são oitenta por cento os jornalistas que votam à esquerda. São cem por cento. Nas eleições não há nem mesmo chapas de direita. Na mais pluralista das hipóteses, aparecem duas de esquerda.
Idêntica homogeneidade, só em Cuba. E ainda há quem se recuse a crer que algo de anormal e tenebroso acontece no jornalismo brasileiro. Mas ninguém, neste país, publicaria um livro como “Le Térrorisme Intellectuel” e continuaria redator-chefe de um grande semanário. Justamente porque a situação local é muito mais grave e opressiva que na França, a possibilidade de discuti-la com liberdade é incomparavelmente menor. Aqui, mal se tolera algum anticomunista na página de opiniões, perdido e invisível entre dezenas de esquerdistas. No comando, sua presença seria denunciada como perigo fascista: ele não duraria uma semana no cargo. Quanto mais vasto o poder da casta dominante, mais ela enxerga como ameaça insuportável qualquer detalhe que a contrarie.
Também o “modus operandi” do controle ideológico é diferente na França e no Brasil. Lá, diz Sévillia, “o fenômeno não obedece nem a uma linha oficial, nem a instruções ocultas, nem a uma estratégia organizada: ele provém do consenso reinante num microcosmo”. Aqui, embora o efeito geral conte também com o infalível automatismo do consenso, certamente os oitocentos jornalistas que a CUT confessa ter na sua folha de pagamento não são deixados sem instruções quanto ao que devem escrever ou omitir. Não obstante constitua talvez a maior compra de consciências já observada na história do jornalismo mundial, a presença desse exército de “agentes de influência” é aceita nas redações com a maior tranqüilidade, sem que ninguém sinta abalada sua boa consciência de fiscal da moralidade pública. É que o esquerdismo mais estrito se tornou, nesse ambiente, uma espécie de lei natural, corriqueira e improblemática como a rotação da terra ou a fisiologia da respiração. Como num meio ideologicamente homogêneo todos estão em família, a mais dogmática intolerância pode aí subsistir numa atmosfera amigável onde ninguém se sinta pressionado ou intimidado. É claro: quem poderia sentir-se assim está longe. E o traço mais típico da mentalidade intolerante é não saber que é intolerante: ela exclui do seu horizonte visível todos os que não tolera, e então se acha muito tolerante porque tolera os demais.
Somem aos homens da CUT os ativistas partidários e a colaboração espontânea de “companheiros de viagem”, oportunistas e idiotas em geral, e terão a precisa distribuição de espaços vigente na mídia nacional: páginas noticiosas integralmente pautadas pela esquerda, cadernos de cultura e “show business” dedicados por inteiro à glamurização de estrelas ativistas, colunas e mais colunas assinadas por ídolos do esquerdismo letrado, empenhados em dar ares de dignidade intelectual a uma filosofia de cabos eleitorais.
O que possa restar de não-esquerdismo encontra abrigo nos editoriais, que a massa não lê, bem como em um ou outro artigo assinado, quase sempre de autores estranhos ao meio jornalístico — professores, técnicos, empresários –, que se atêm em geral a uma polidíssima defesa da economia de mercado, sem jamais atacar de frente o bom nome da linda ideologia cujos crimes acabam sempre absolvidos, paternalmente, como efusões de idealismo juvenil. Anticomunismo explícito, nem pensar. Investidas frontais como aquelas que a esquerda faz contra as Forças Armadas, contra a moral religiosa e contra as pessoas de seus desafetos, nem pensar. Investigações escandalosas, nem pensar. Até na linguagem o desequilíbrio é evidente: de um lado, insultos, vituperações, imputações criminais. De outro, recatadas ponderações acadêmicas e trêmulos apelos ao “diálogo”. No máximo, tapas com luvas de pelica na “esquerda burra”, como se o maior pecado de Stalin, Fidel ou Pol-Pot fosse a burrice.
De tal modo as idéias conservadoras desapareceram da mídia, que o público, ignorando-as por completo, não pode dar pela sua falta, e cai como um pato no engodo de chamar de “direita” a ala tucana e peemedemista imperante — a fina flor da oposição de esquerda no período militar –, cuja elevação ao poder permitiu que se consolidasse a vitória suprema da hegemonia gramsciana: fazer com que o debate interno da esquerda usurpasse todo o espaço do debate nacional, excluindo por inexpressáveis, impensáveis e por fim inexistentes todas as demais opiniões possíveis. Hoje não há mais democracia no Brasil exceto a “democracia interna”, o “centralismo democrático” do velho Partidão, onde a única direita admissível é a direita da esquerda: a socialdemocracia, o reformismo, a tucanidade enfim. O que quer que esteja à direita disso é fascismo. E, como tal, proibido.
Esporádicas e aparentes “viradas à direita”, em situações específicas nas quais o esquerdismo ostensivo arriscaria pegar mal, só servem para dar redobrado vigor ao discurso esquerdista quando, investido da superior autoridade de jornalismo idôneo, ele voltar à carga uns dias depois. Assim, a afetação geral de escândalo diante dos ataques de 11 de setembro foi usada para dar respaldo moral à onda de anti-americanismo que se seguiu, incluindo a rotação semântica de 180 graus nos termos “agressor” e “terrorista”, que, em uníssono, passaram com a maior naturalidade a designar o país atacado em vez do atacante.
Que de vez em quando se permita ecoar por instantes uma voz de exceção, em protesto inútil contra o estado de coisas, é apenas a quota mínima de risco calculado com que a intolerância vigente anestesia eventuais suspeitas dos leitores, consumando a obra-prima do dirigismo, que é a de fazer-se passar pelo seu contrário. O público, confiado na premissa tácita de que a distribuição das opiniões na mídia reflete mais ou menos o mapa das preferências nacionais, lê o artigo solto e, persuadindo-se ainda mais de que todo anticomunismo é aberração de esquisitões solitários, fica até admirado de que a nossa imprensa seja tão democrática, tão aberta, tão generosa, que chegue ao exagero de dar espaço a um tipo capaz de escrever essas coisas. Muitos chegam a indignar-se com tamanha libertinagem, exigindo a exclusão do intrometido. Não raro, são atendidos. Poucas publicações, como “O Globo”, se recusam a dar ouvidos a essa gente.