Olavo de Carvalho
Época, 28 de abril de 2001
Pela primeira vez um homem de esquerda percebe que no Brasil não existe direita
Quem imagina que a imprensa se alimenta de novidades não tem a menor idéia do que se passa na cabeça de jornalistas. Eles gostam mesmo é da novidade-padrão, indefinidamente requentável com pequenas variações. O motivo é simples: ela é fácil de escrever e de efeito garantido. Denúncias de corrupção, fofocas do beautiful people, taxas de desemprego, brigas de políticos infundem no redator aquela segurança do mágico que vai brilhar com o mesmo truque, pela milésima vez, ante uma platéia que já o esqueceu 999 vezes. Quando você tem pressa e o trabalho é muito – duas condições que jamais falham nas redações –, a melhor notícia é aquela que já vem escrita.
A novidade autêntica, inédita, sem nome no catálogo, é um problema, um abacaxi: o sujeito não sabe nem por onde começar. Faltam-lhe os esquemas verbais, os lugares-comuns, os argumentos de apelo automático sem os quais mesmo o redator mais talentoso fica desamparado como uma tartaruga sem casca. O inédito, o esquisito, o incatalogável requer meios de expressão também inéditos. Exige algo mais que técnica jornalística: exige uma inventividade literária que raramente consente em dar o ar de sua graça no alvoroço do “fechamento”. Por falta de meios de expressão, às vezes aquilo que é mais interessante, mais urgente, mais útil vai para a lata de lixo, inapelavelmente condenado pela fatalidade da regra wittgensteiniana: “O que não se pode falar, deve-se calar”. E, quando casos desse tipo se acumulam, a imprensa deixa de cumprir seu papel de abrir para o leitor as janelas do mundo. Torna-se um repressivo “guardião do portal”, incumbido de lacrar os horizontes e manter a imaginação popular presa do repetitivo e do convencional.
Por isso mesmo é uma alegria ler o que li na coluna de Zuenir Ventura da semana passada. Pela primeira vez um jornalista reconhecidamente “de esquerda” dá uma espiada no mundo e, ao voltar, repara que desembarcou num país anormal – num país onde não existe direita. Normalmente, seria preciso ser direitista para notar isso, mas no Brasil nem os direitistas são direitistas o bastante para chegar a tamanho atrevimento de percepção. Em geral admitem o uso consagrado que faz do direitismo uma modalidade de crime hediondo e dizem que são “de centro”, sentindo-se mais ou menos como as prostitutas quando dizem que são massagistas.
Mas a criminalização da direita não se produziu sozinha. Ela é o resultado de meio século de “revolução cultural” – a ocupação esquerdista de todos os espaços, que inclui, como área privilegiada, o espaço verbal. E isso vai muito além do domínio sobre a linguagem dos jornais e das escolas. Os mestres soviéticos de desinformação recomendavam especial empenho na redação de dicionários. A partir dos anos 50, os principais dicionários em circulação no Brasil são verdadeiros receituários de semântica esquerdista, a qual assim se integra no uso corrente como se fosse a coisa mais normal e apolítica do mundo, rejeitando para o limbo do indizível, portanto impensável, tudo o que escape da ortodoxia consagrada. Passadas duas gerações, a anormalidade da situação transfigurou-se em normalidade postiça, e aí, mesmo quando o sujeito viaja, não lhe ocorre reparar numa diferença como aquela que Zuenir assinalou: pois o indizível e impensável se torna também imperceptível, mesmo quando nos posa diante dos olhos da cara com a sutileza de um hipopótamo.
É preciso ser muito inteligente e muito sincero para romper o cerco da repetição dessensibilizante e, num relance, perceber algo que está fora da pauta mental admitida. Quando os homens dormem, dizia Heráclito, eles se fecham cada qual em seu mundo; quando acordam, voltam todos ao mesmo mundo. Não fica bem a gente criticar ou elogiar, nas páginas de uma revista, os colegas de redação. Mas Zuenir ajudou o leitor a emergir da hipnose brasileira para voltar ao mundo de todos os homens. Que mais se pode exigir de um jornalista?