Democracia normal e patológica - II

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de outubro de 2011

Não é preciso dizer que situações especiais podem induzir quaisquer das duas facções maiores a inverter sua política habitual, em vista das conveniências e oportunidades. O governo petista adotando controles monetários ortodoxos para escapar a uma crise econômica, a administração Bush criando um sistema de vigilância interna quase socialista depois do 11 de setembro, são exemplos notórios. Fatos como esses bastam para demonstrar que a democracia saudável é a administração bem sucedida de um conflito insolúvel, destinado a perpetuar-se entre crises e não a produzir a vitória definitiva de uma das facções. Desde o início, a democracia tem encontrado no equilíbrio instável a regra máxima do seu bom funcionamento.

Basta compreender essas noções para perceber, de imediato, que a democracia brasileira é um doente em estado quase terminal. O jogo normal de esquerda e direita, que permite a continuidade do processo democrático e mantém os extremismos sob rédea curta, foi substituído por um sistema de controle monopolístico não só do poder estatal como da cultura e da mentalidade pública; controle tão eficiente que já não é percebido como tal, de modo que, quanto mais patológica é a situação, mais confortavelmente todos se acomodam a ela, acreditando piamente viver na mais pura normalidade democrática.

A facção que domina o governo controla também o sistema de ensino, as universidades e instituições de cultura, o meio editorial e artístico e a quase totalidade dos órgãos de mídia. A mais mínima falha nesse controle, o mais leve sinal de descontentamento, mesmo parcial e apolítico, desperta ou alarma as hostes governistas, que então se apressam a mobilizar seus militantes para o combate a “ameaças golpistas” perfeitamente inexistentes.

A facção dominante compõe-se da aliança indissolúvel entre a esquerda e a extrema esquerda, sendo esta última, então, legitimada como parte da esquerda normal, digna do respeito e da consideração dos eleitores. Tão perfeito é o controle hegemônico que essa aliança exerce sobre a sociedade, que já nem a esquerda nem muito menos a extrema esquerda têm de se apresentar francamente como tais: os eleitores tornaram-se como peixes que, jamais tendo estado fora da água, ignoram a existência de algo que não seja água e portanto não distinguem entre a água e o universo em geral. Nessas condições, está perfeitamente realizado o ideal de Antônio Gramsci, em que o Partido revolucionário desfruta “da autoridade onipresente invisível de um imperativo categórico, de um mandamento divino”. Tão paradoxal é a situação, que os únicos que insistem em exibir sua identidade de esquerdistas, com muito orgulho disso, são justamente os membros da “oposição”, colhidos entre facções da esquerda moderada ou entre oportunistas sem ideologia nenhuma. Uns e outros têm com o governo divergências pontuais e, é claro, disputa de cargos. Nada mais.

Nesse panorama, a ostensiva colaboração política do partido governante com organizações terroristas, por sua vez associadas a gangues de criminosos locais, é incapaz de provocar qualquer escândalo, pelo simples fato de que não se conseguiu provar nenhuma ajuda financeira vinda dos bandidos aos políticos de esquerda. Isto é, só se concebe uma aliança criminosa sob a forma do financiamento ilegal, da “corrupção” no sentido mais genérico e apolítico do termo. A articulação de partidos legais com organizações criminosas para fins de vantagem política mútua não é, em si, considerada um crime ou motivo de alarma. O “direito” à conquista do poder absoluto por quaisquer meios possíveis e imagináveis é aceito como um procedimento democrático normal, desde que não envolva “corrupção”.

Nesse quadro, a direita, como tal, não existe mais. Os ideais que a caracterizavam são cada vez mais criminalizados como extremismo, espalhando entre os políticos o medo de encarná-los em público por um instante sequer, para não ser tachados de golpistas, racistas, nazistas, o diabo.

A anormalidade da situação não deixa de ser percebida pela própria esquerda dominante que, na ausência de uma oposição direitista, tem de inventar uma, toda composta de ficções e de figuras de linguagem, para dar a impressão de que está lutando contra alguma coisa. Essa necessidade é tanto mais premente porque a esquerda brasileira forjou sua reputação explorando o papel de “minoria perseguida” adquirido no tempo dos militares, e sente a necessidade de continuar a representá-lo em público quando já não há mais ninguém que a persiga e, ao contrário, só ela dispõe dos meios de perseguir. A “ameaça direitista” é construída, então, mediante os seguintes expedientes:

1. Explorar, com renitência obsessiva, a recordação dos feitos malignos do regime militar, ampliados até à demência, de tal modo que trezentos terroristas mortos assumam as proporções de um genocídio mais vasto que a matança de cem mil cubanos, dois milhões de cambojanos, quarenta milhões de cidadãos soviéticos e setenta milhões de chineses. O fato de que aqueles terroristas fossem, em maior ou menor medida, todos colaboradores do genocídio comunista é descontado como se fosse um nada, e os personagens são transfigurados em heróis da democracia. A menor tentativa de recolocar os fatos nas suas devidas proporções é rejeitada, inclusive nas universidades, como um sinal ameaçador de golpismo iminente. Se isso não é uma psicose, toda a ciência da psicopatologia está errada.

2. Como não é possível, ao mesmo tempo, manter a população sob o temor de um golpe iminente e continuar exibindo como única prova desse risco acontecimentos de meio século atrás, o establishment de esquerda e extrema esquerda tem de produzir constantemente novos indícios da existência e periculosidade de uma direita que ele mesmo conseguiu eliminar por completo. Um dos recursos usados para esse fim é dar ares de feroz oposição ideológica direitista a qualquer hostilidade pontual e mínima que surja nas hostes da esquerda moderada, que constitui a quase totalidade da oposição presente. Quando um social-democrata tucano aponta um sinal de ineficiência administrativa ou de corrupção no governo, logo aparece algum Paulo Henrique Amorim bem pago para denunciar aí o golpe de direita que, é claro, se prepara a olhos vistos. A única reação dos acusados, em geral, é exibir sua certidão de bons serviços prestados à esquerda, para eliminar suspeitas.

3. O mais extremo dos expedientes é apontar indivíduos isolados ou grupos minoritários de dimensões irrisórias como se fossem forças ameaçadoras que se levantam no horizonte, ameaçando esmagar a esquerda nas eleições ou fuzilar todos os comunistas. Organizações ridiculamente pequenas, de trinta ou quarenta membros, sem financiamento ou qualquer suporte político, são aí tratadas como militâncias multitudinárias, capazes de assombrar as noites dos governantes acuados. Vozes solitárias, amputadas de qualquer possibilidade de ação política não só pela completa falta de recursos como também pelas divergências insanáveis que as isolam umas das outras, são tratadas como se constituíssem um bloco único e temível, a “direita” ressurgente, pronta, como em 1964, para dar um golpe e anular maldosamente todas as ”conquistas populares”. Não é preciso dizer que, nessas circunstâncias, grupos ultraminoritários de extrema direita, como a Resistência Nacionalista, inflados pela propaganda negativa que recebem da esquerda, passam a se sentir mais importantes do que são e vislumbram, excitados, as mais belas oportunidades de futuro, sem perceber que elas, tanto quanto eles próprios, só têm a existência fantasmal das sombras de um delírio. Como a existência de uma direita é um requisito estrutural da normalidade democrática, sua supressão faz com que as formas patológicas de direitismo se sintam chamadas à missão sagrada de recolocar as coisas em seus lugares, como se sua própria existência não fosse baseada na desordem. Também não é de espantar que o medo auto-alimentado que viceja na alma da esquerda a leve a não contentar-se com o combate verbal mas, num paroxismo de temor paranóico, a tomar medidas práticas para defender-se de adversários microscópicos, tomando coelhos por leões e julgando que privar um Júlio Severo dos meios de sustentar sua mulher e filhos é um feito heróico, uma vitória espetacular contra a ameaça reacionária rediviva. Também não é de estranhar que os descalabros cometidos nessa luta contra fantasmas acabem produzindo no povo alguma hostilidade real contra o governo, extravasando em movimentos repentinos e sem nenhum conteúdo político-ideológico substantivo, como a Marcha para Jesus ou a Marcha Contra a Corrupção, e fazendo com que a esquerda creia ter encontrado – por fim! – a prova da realidade de seus piores pesadelos, sem notar que ela própria os produziu por excesso de precaução louca.

A coexistência pacífica das instituições democráticas formais com a total supressão da concorrência ideológica que define as democracias saudáveis, eis precisamente o que caracteriza a situação brasileira atual. É um quadro nitidamente psicótico, onde tudo é mentira, fingimento e pose. A farsa existencial com que a esquerda governante inventa inimigos para camuflar seu controle hegemônico tornou-se a norma e padrão para o país inteiro, invadindo as consciências e expelindo cada pensamento para longe da realidade. Quem quer que, num momento de sanidade, ouse enxergar as coisas como são, sente-se imediatamente aterrorizado, ansioso para mergulhar de novo no oceano turvo de alucinações que assumiu o nome de “normalidade”.

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