Por Alceu Garcia


18 de março de 2002

George Orwell escreveu seu memorável romance 1984 para protestar contra a revolução semântica perpetrada pelas ideologias coletivistas da sua época, sobretudo o comunismo. A perversão da linguagem e da lógica por regimes totalitários levou o grande escritor inglês a inventar um termo para esse controle político-ideológico das palavras e do raciocínio: newspeak. No Brasil de hoje, subjugado pela mesma ideologia contra a qual Orwell lutou, naturalmente não há falta de colunistas e acadêmicos versados no uso do newspeak, autênticos virtuoses nessa arte nefasta. O articulista do JB Emir Sader não é um desses virtuoses. Seu estilo primitivo carece de sutileza, embora não se possa negar que ele se esforce. De todo maneira, é uma pena que ninguém tenha tido a idéia de criar um software específico para a tradução do newspeak, o que facilitaria muito o trabalho de quem deseja inferir o verdadeiro intuito de autores oblíquos em seus textos melífluos. Como esse software ainda não existe (e provavelmente nunca existirá), o jeito é analisar artesanalmente o artigo de Sader publicado no último domingo e procurar traduzir para o português claro o seu tosco newspeak. Este consiste em inverter o sentido das palavras e inserir premissas falsas sub-repticiamente nos encadeamentos dedutivos, de modo a levar o leitor a conclusões viciadas. Examinemos, pois, algumas das proposições do Emir do Newspeak:

1.     O presidente da Venezuela Hugo Chávez está enfrentando um projeto de desestabilização dirigido pelas elites venezuelanas, que aparentemente conta com amplo apoio da classe média e até dos meios populares.

O pressuposto que não ousa dizer seu nome nesse trecho é o seguinte: Hugo Chávez representa inequivocamente os interesses das camadas populares, mas suas políticas favoráveis ao povão não são aceitas pela perversa elite da Venezuela, a qual conseguiu alienar a classe média e até parte desse mesmo povão por meios ideológicos e falazes. Nada disso está correto, como fica evidente quando o raciocínio é exposto com clareza. Chávez é um reles caudilho, tipo infelizmente muito comum na história latino-americana. Ascendeu à notoriedade graças a uma tentativa mal-sucedida de golpe de estado. Tudo o que ele almeja é o poder absoluto, à exemplo de seu modelo Fidel Castro. Como todo caudilho, Chávez não dá a mínima para os interesses da população, simples massa de manobra para seu projeto ditatorial. Ele foi eleito com amplos poderes para reduzir a corrupção que contaminava a sociedade política de seu país. Não só não fez nada contra a corrupção, pois ele próprio é corrupto ao extremo, como passou a cortejar ditadores cubanos, iraquianos e que tais, sem falar no apoio que deu aos terroristas das Farc. Não foi para isso que os venezuelanos lhe confiaram um mandato.

2.     O movimento contra Chávez é ilegítimo, uma vez que o presidente sempre seguiu os trâmites da democracia liberal desde sua eleição até a edição de um recente pacote de leis econômico-sociais, aprovado pelo Parlamento.

Sader pretende persuadir o leitor de que Chávez é um democrata sincero e nada deseja senão o bem-estar dos pobres, confinando sua atuação benevolente ao cumprimento estrito da Constituição e das leis vigentes. Contra esse generoso estadista se opõe a infausta elite privilegiada e exploradora. Ora, o “democrata” de hoje é o golpista de ontem. Seus antecedentes não são favoráveis. Convém suspeitar de um homem ávido de poder e disposto a todo tipo de demagogia para conseguir apoio suficiente para um outro golpe. Que diferença essencial existe entre Chávez e Fujimori? Nenhuma. Porém, como Chávez se declara de esquerda e idolatra Fidel Castro, tudo lhe é perdoado por Sader.

3.     A legislação promulgada por Chávez é inegavelmente favorável aos excluídos da Venezuela, posto que objetiva abolir o latifúndio, garantir o controle estatal da exploração do petróleo, reservar o litoral até 3 milhas da costa exclusivamente para os pescadores artesanais, outorgar crédito subsidiado pelos bancos estatais às pequenas empresas e trabalhadores e disciplinar o uso da terra na zona costeira de modo a preservar o meio-ambiente e evitar a especulação imobiliária.

Absolutamente nenhuma dessas leis favorece a população pobre da Venezuela. São medidas demagógicas de um tirano desesperado. A intenção última de Chávez não é de modo algum distribuir a terra aos agricultores modestos, e sim confiscá-la toda, instituindo um regime de superlatifúndio, como em Cuba, onde toda a terra pertence ao Estado. O domínio estatal da indústria petrolífera gerou um ambiente de corrupção espantosa, tanto que o povo venezuelano está mais pobre hoje do que estava antes dos violentos aumentos do preço do insumo, a partir de 1973. O que a população da Venezuela, um dos maiores produtores do combustível do mundo, ganhou com a hegemonia do governo nesse setor? Só perdeu. Quanto à reserva de mercado para os pescadores pobres, trata-se de uma providência realmente benéfica para esses pescadores, mas péssima para os consumidores pobres de pescado. A restrição causará a diminuição da quantidade de peixe ofertada no mercado e a inevitável elevação dos preços desse alimento. A politização do crédito via fomento por bancos públicos só pode acabar em corrupção e malversação de poupança escassa, prejudicando sobretudo os assalariados mais pobres. É só ver o que aconteceu e ainda acontece no Brasil com a Sudam, Sudene, Bndes, Banerj, Banespa, Banco do Brasil etc. A regulação draconiana do uso da terra costeira, além de constituir uma típica violação populista do direito de propriedade, acarretará a redução das atividads de construção civil, desempregando trabalhadores pobres, bem como a diminuição da oferta de residências, o que causa a subida dos preços dos aluguéis e dos imóveis já existentes, encarecendo a vida dos menos favorecidos.

4.     A grande mídia privada da Venezuela, dominada por magnatas corruptos, está movendo uma campanha terrorista para insuflar maldosamente as massas contra Chávez, conquanto o presidente esteja honestamente fazendo tudo o que pode para melhorar a sorte dos pobres.

Ninguém em sã consciência desconhece o poder e os recursos de que dispõe um governo para amordaçar a imprensa privada e alardear seus próprios feitos através de propaganda paga pelo contribuinte e isenta de riscos, ou subsidiar jornais de particulares para que tomem o seu partido. A fortiori quando o governante é um inescrupuloso candidato ostensivo à ditadura. Se a mídia particular ainda existe na Venezuela e consegue se opor ao presidente é porque dispõe de apoio popular suficiente para isso. Se o que a imprensa divulga é falso, o governo nada tem a temer. Basta mostrar a verdade, recorrendo ao judiciário, se necessário. Se, contudo, é o governo quem mente, a imprensa privada está prestando um serviço público da maior importância ao revelar as mentiras e tramóias dos governantes. Sader usa o termo “terrorista” aqui com o objetivo de confundir o leitor. Se a mídia fosse estatizada na Venezuela, nada que desagradasse Chávez seria publicado. Como em Cuba. É claro que Sader não dá a mínima para a liberdade de imprensa. Ele anseia é por mais uma ditadura totalitária no continente, e para isso vale tudo.

5.     Todos os governos que se opuseram aos Estados Unidos no continente foram derrubados, exceto Cuba. Esses governos (Getúlio, Perón, Jacobo Arbenz, João Goulart, Allende) cometeram o erro de seguir o processo democrático no seu afã de auxiliar a classe pobre, e foram destruídos pelas oligarquias locais ajudadas pelos norte-americanos.

Premissa oculta n. 1: todo governo que se opõe aos Estados Unidos é ipso facto favorável ao povo, e todo governo que apóia os Estados Unidos é contra o povo. Bem, nesse caso temos que incluir entre os benfeitores da humanidade Hitler, Mussolini, Stalin, Mao, Pol Pot e outros genocidas. Não que eu pense que os governos alinhados com a política norte-americana sejam necessariamente bonzinhos. No meu modo de ver, o bom governo é aquele que se limita a garantir os direitos individuais contra violações de bandidos nacionais e invasores externos, deixando o resto para as pessoas resolverem pela via da cooperação voluntária. Não importa a sua atitude em relação aos americanos, que não constitui de maneira alguma critério de julgamento de uma administração. Acredito, inclusive, que um governo de fato preocupado com os direitos individuais tem o dever de se opor a certos interesses do governo americano, propondo, para exemplificar, a imediata dissolução do FMI, do Banco Mundial, da ONU, do BID, da OMC e outros antros de burocratas parasitários transnacionais. Para os contribuintes americanos, que sustentam essa malta, seria uma vitória esplêndida.

A lista de estadistas “democratas” de Sader, ademais, inclui dois ditadores de corte fascista (Getúlio e Perón), enquanto que os outros três conduziram políticas esquerdistas contra a vontade da maioria de suas respectivas populações, tanto que foram depostos sem resistência. Eu não defendo a deposição deles, mas tampouco caio na esparrela de pintá-los como ingênuos e românticos líderes democratas. Pelo menos Allende e Arbenz ambicionavam a ditadura totalitária, e não faziam segredo disso.

Premissa oculta n. 2: Admitindo como válida a premissa oculta anterior, não resta outro caminho a um grupo político latino-americano disposto a ser “bom”, isto é, anti-americano, senão recorrer a meios violentos para a tomada e conservação do poder. A via democrática esbarra na resistência dos americanos conjuminados com as oligarquias locais. Somente e revolução e a supressão impiedosa dessas oligarquias abre o caminho para a soberania popular no continente. Como em Cuba. Completando o silogismo saderiano, concluimos que o ideal para a America Latina é um regime de partido único, sujeito à autocracia de um ditador cruel há mais de quarenta anos, que reduziu um dos países mais ricos do continente à miséria, que expulsou mais de 10% da população etc.

6.     O drama da Venezuela reflete a insinceridade da elite latino-americana e seu desapego à democracia, pois a possível derrubada de Chávez, como a deposição dos aludidos líderes populares no passado, evidenciará novamente a hipocrisia da classe dominante e a falência da decadente democracia liberal. Assim, só resta ao povo apoiar outra espécie de democracia, com conteúdo social, soberania popular e fé na utopia.

Elite no discurso de Sader são sempre os outros. Ele, Sader, malgrado ocupe cátedras nas mais renomadas universidades do país e publique artigos nos mais influentes jornais, embora organize e escreva livros de grandes vendagens sob o selo de prestigiosas editoras e aconselhe políticos de projeção nacional de um poderosos partido de extrema-esquerda, não é de elite nenhuma. Nem o arrivista Chávez e seus correligionários “bolivarianos”, Fidel e sua nomenklatura cubana, os ricos fazendeiros Getúlio e Goulart apoiados por uma vasta aristocracia sindical, integram uma elite. A palavra “elite” significa no contexto saderiano todos os grupos que Sader desaprova. Newspeak puro. A verdade é que Sader é o típico representante da mais sanguinolenta elite que já existiu: a “vanguarda do proletariado” leninista. Mataram mais de cem milhões. E que “outra” democracia com “conteúdo social” é essa? Alguém tem alguma dúvida? A democracia de Sader é a ditadura do “proletariado”. Democracia é ditadura, ditadura é democracia. Newspeak de quinta categoria. O afamado intelectuário uspiano ainda tem a cara-de-pau de acusar preventivamente o exército e a “elite” venezuelana por um possível golpe contra Chávez, como se o sujeito não estivesse tramando um putsch com o auxílio luxuoso de estrategistas de alto coturno emprestados por Fidel Castro. Na lógica paralógica de Sader todos os meios que o tiranete venezuelano utilizar para instaurar uma ditadura de esquerda são válidos, mesmo que contra a vontade da maioria da população, pois atendem os “intereses populares”, e tudo o que os setores da sociedade daquele país fizerem para se defender, não importa quã o amplo e majoritário seja o seu apoio, será ilegítimo, pois serve a causa das “elites”.

O newspeak na boca de Sader pode ser desmoralizado com uma simples comparação. No Brasil, onde a imprensa é privada e dominada por magnatas, Sader dispõe de tribunas nos grandes jornais para açoitar o “neoliberalismo” e pregar indiretamente o confisco da propriedade de seus próprios empregadores, quiçá sua execução no paredón. Em Cuba, modelo do sabichão, onde a imprensa é estatal, não há a menor possibilidade de se permitir que alguém critique o governo.

 

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