Por Alceu Garcia

24 de julho de 2002

Quem mora no Rio de Janeiro e adjacências e se interessa por filosofia, história, política e economia não pode perder as palestras sobre o liberalismo clássico promovidas pelo Instituto Liberal, na Universidade Cândido Mendes, Rua da Assembléia, 10/1105 (tel. 2531-3911). As conferências acontecem às terças-feiras, 18:30 hs, tendo por tema o pensamento de grandes autores como Locke, Hume, Kant, Bentham e Adam Smith, e são seguidas por estimulantes debates abertos ao público. Entre os palestrantes há estudiosos de renome nacional, como Ricardo Vélez, Ubiratan Iorio e muitos outros. Mesmo quem não simpatiza com o liberalismo tem muito o que aprender no evento, inclusive expondo livremente suas críticas, se assim o desejar.

O ciclo atual já teve três palestras. Infelizmente não pude comparecer à primeira delas, pronunciada pelo Professor Og Leme, sobre os fundamentos do liberalismo. Para minha sorte, contudo, já tive a oportunidade de assistir a uma conferência do Professor Og em um ciclo anterior. Conversar com ele é até engraçado, pois os grandes autores como Mises, Knight, Hayek, Rothbard e Friedman, que para mim são clássicos tão inacessíveis quanto Adam Smith ou Frédéric Bastiat, ele os recorda como seus professores (estudou economia na Universidade de Chicago) e amigos pessoais.

As duas palestras seguintes versaram respectivamente sobre as raízes do liberalismo clássico e sobre Thomas Hobbes. O conferencista foi o Professor Alex Catharino de Souza., que, com sua esposa Márcia Xavier de Brito e André Andrade organizam o ciclo já há vários anos. São verdadeiros agitadores liberais esses três mosqueteiros. Jovens, simpáticos e muito cultos, eles estão sempre planejando e empreendendo projetos como cursos, palestras, traduções, publicações e muito mais. Não sei como arranjam tempo e energia para fazer tanta coisa ao mesmo tempo.

A palestra sobre o autor do famoso Leviathan, livro mais citado do que lido, foi soberba. Alex Catharino traçou um belo painel da vida e obra do pensador inglês, contextualizando seus escritos, relatando o estado da questão na ciência política da época, seus interlocutores e adversários intelectuais, quem o influenciou, sua metodologia, seus melhores intérpretes (Voegelin, Oakeshott). Uma aula completa. Eu saí de lá ansioso por tirar o meu exemplar do Leviathan da prateleira empoeirada onde ele descansa há anos. Alguns podem estranhar que Hobbes seja situado entre as fontes do liberalismo, pois ele é visto por muito apenas como um teórico do absolutismo e até um apologista do Estado. Alex refuta essa visão superficial do filósofo, lembrando que ele defendia a monarquia e o Estado como um meio de garantir o exercício das liberdades individuais, e com a condição de que o poder político fosse legítimo, ou seja, repousasse sobre o consentimento dos súditos. Nada contra a democracia ou a aristocracia em tese, desde que legítimas. Hobbes, porém, desconfiava da democracia, regime de governo tendente à corrupção e à demagogia. Olhando à nossa volta, como censurá-lo por isso? Mas Hobbes é o primeiro a reconhecer que um governo ilegítimo deve ser derrubado pelo povo. Lembra o Prof. Alex ademais que o famoso “estado da natureza” hobbesiano, a luta implacável de todos contra todos, era apenas um “começo epistemológico”, uma construção mental ou um modelo, diriam os economistas, não o relato de um período histórico.

O filósofo britânico viveu numa época de revoluções e guerras civis. A violência o marcou profundamente e da perplexidade diante dela ele construiu o seu sistema. Pessimista, para ele o Estado era mesmo um mal inexoravelmente necessário. Mas, atenção: Estado mínimo, na terminologia atual. A função do governo é a de prover segurança e nada mais. Hobbes rompe com a tradição filosófica no campo da moral desde Aristóteles, pois, ao invés de enfatizar o Bem, ele se preocupa antes com a liberdade negativa, cristalizada na “regra de ouro”: Não faça aos outros o que não gostaria que fizessem a ti. Por isso e pela concepção ontológica e epistemológica individualista, fica evidente a influência que Hobbes exerceu sobre Locke, o grande teórico dos Direitos Naturais.

O debate que se seguiu contou com a participação do eminente filósofo Mario Guerreiro, que traçou um sombrio paralelo entre a época conturbada de Hobbes e o nosso próprio tempo, marcado pela falência do Estado brasileiro em prover um mínimo de segurança para a população. Guerreiro manifestou grave preocupação com o momento atual, lembrando a contemporaneidade de Hobbes numa ocasião em que a ordem e a autoridade estão em dissolução no Brasil. O que esperar de um governo que sequer garante a integridade física dos cidadãos? Nada, de modo que todas as propostas edificantes dos candidatos às próximas eleições de nada valem. Na sequência, a interessante discussão pegou fogo quando um assistente objetou corretamente que também o excesso de ordem e autoridade estatais, como na União Soviética de Stalin, pode ser profundamente caótico e infrutífero. O mesmo se pode dizer do Brasil e suas milhares de leis contraditórias e prolixas que não são obedecidas e não “pegam”. O Professor Alex então invocou o conceito hayekiano de “ordem espontânea” para frisar que nem toda ordem é compatível com uma sociedade justa e saudável, mas somente aquela em que o Estado provê as condições para que os direitos individuais à vida, à liberdade e à propriedade possam ser exercidos livremente. Postas essas condições, os rumos que a evolução social toma não podem ser previstos nem pré-determinados. Nada mais se pode pedir do governo. Hobbes com certeza aprovaria essa conclusão.

De qualquer maneira, a admissão hobbesiana da necessidade de um governo não anula a inquietação e as incisivas investigações sobre a natureza do Estado levadas a cabo por anarcoliberais como Murray Rothbard (Anatomy of the State, por exemplo). O impulso de dominar e espoliar é inato ao homem e o Estado é o veículo perfeito e consumado para o exercício da violência, da dominação e da espoliação. Até mesmo no contexto estatal é concebível um estado da natureza de Hobbes, a luta de todos contra todos pelas posições mais vantajosas no saque generalizado e sistematizado que o “Estado do Bem-Estar” se torna, fenômeno aliás presenciado e relatado magistralmente por Frédéric Bastiat já no século 19. Rothbard gostava de citar um adágio de Proudhon: A liberdade é a mãe, não a filha, da ordem. Nada mais correto. Sem a liberdade dos direitos naturais e ordem é inútil. É uma desordem disfarçada e de curta duração.

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