José Nivaldo Cordeiro


5 de dezembro de 2001

Há algo em comum entre as crianças e os pássaros, mais precisamente entre crianças em idade escolar e os pássaros aprendendo a voar? Parece haver um paralelo bem cruel: as crianças que não conseguem aprender algo para a vida, hoje em dia confundido esse algo com o escolaridade formal, fracassam e podem morrer, assim como os pássaros, ao fazerem seu primeiro vôo, fazem a sua prova de fogo, a diferença entre sobreviver e morrer jovem. Quem, como eu, costuma ver os programas do Canal Discovery, que mostra a vida selvagem, e também ler revistas de divulgação científica sobre o assunto, sabe que a taxa de mortalidade de jovens pássaros é elevada nesse instante capital da sua existência.

Há ainda uma metáfora implícita na comparação: a aquisição de conhecimento como a aquisição de asas para os grandes e pequenos vôos da existência. De fato, aqueles que não têm a luz do saber estão condenados à uma vida rasteira, terrestre, não apenas do ponto de vista material, mas sobretudo do ponto de vista espiritual. É uma metáfora apropriada.

O artigo que o educador, psicanalista, escritor e professor emérito da Unicamp, Rubem Alves, publicou hoje na página três da Folha de São Paulo usa a metáfora de modo absolutamente inapropriado e diria mesmo equivocado. O título do artigo é “Gaiolas e asas”. O tema me atraiu a atenção, pois creio que um dos problemas centrais dos tempos modernos está ligado precisamente à formação da juventude, pois os núcleos tradicionais de formação, especialmente na sua parte moral – a família e as igrejas – estão perdendo espaço para concorrentes que não podem substituí-los, basicamente os meios de comunicação – com destaque para a televisão – e as escolas. Às famílias caberia sobretudo encarregar-se da solidez moral da criança e do adolescente, mas a instabilidade muito freqüente do núcleo familiar, e a ausência prolongada dos pais a trabalhar, têm deixado as crianças aos cuidados das comunicações eletrônicas e das escolas. As crianças ficam, por assim dizer, órfãs de seus principais educadores.

Ruben Alves diz que lhe ocorreu um aforismo: “Há escolas que são gaiolas. Há escolas que são asas”. Até aí, um dito espirituoso que, visto mais de perto, não significa muita coisa. Diz mais: “Esse simples aforismo nasceu de um sofrimento: sofri conversando com professoras de segundo grau, em escolas de periferia. O que elas contam são relatos de horror e medo. Balbúrdia, gritaria, desrespeito, ofensas, ameaças… E elas, timidamente, pedindo silêncio, tentando fazer as coisas que a burocracia determina que sejam feitas, como dar programas, fazer… avaliações. Ouvindo os seus relatos, vi uma jaula cheia de tigres famintos, dentes arreganhados, garras à mostra – e as domadoras com os seus chicotes, fazendo ameaças fracas demais para a forças dos tigres”.

O que o educador, psicanalista e professor quis nos dizer com isso? Que os pobres passarinhos, por culpa da burocracia, que exige a aplicação de programas e critérios de avaliação de desempenhos, por fazer isso, são transformados em tigre ferozes e indomáveis.

Ele está completamente equivocado. E não é apenas na periferia que vemos esse tipo de fenômeno. Eu mesmo tinha filhos em escola privada de renome, situada da Vila Nova Conceição, em São Paulo, na qual o mesmo fenômeno ocorria. Os relatos que ouvia eram de horror, de atos cometidos pelos herdeiros das mais finas famílias da cidade de São Paulo. Então investiguei o problema e concluí que a origem do mesmo estava no uso de métodos pedagógicos errados, licenciosos, que premiam a desobediência e a falta de educação dos alunos, que reduzem a autoridade dos mestre a nada, que adulam adolescente em fase de formação como se eles soubessem já de alguma coisa. Coloquei os meus garotos em escola mais rigorosa – nominalmente o Colégio Bandeirantes, em São Paulo, e o problema acabou, pois ali se exige disciplina e desempenho acadêmico e aqueles que não estão interessados em estudar são convidados a procurar outra instituição de ensino. Resolvi o problema dos meus filhos, mas não o da educação em geral, obviamente. Mas ficou a experiência.

Então posso dizer que o raciocínio do ilustre educador contem dois erros em sua gênese: a de que o problema está nas escolas da periferia da cidade e que os culpados pelos pássaros serem transformados em tigres sejam as exigências formais de programa e avaliação. Penso que é o contrário: onde essas exigência foram atenuadas e abolidas a desordem foi instalada e o respeito devido pelos alunos aos mestres desapareceu, levando com ele o sentimento de hierarquia entre alunado e o professor, essencial para que haja ordem na sala de aulas. O respeito devido ao mestre é na verdade o respeito ao Saber.

Aí o ilustre professor incorre em um terceiro erro, ao fazer a seguinte afirmação: “Violento, o pássaro que luta contra o arame da gaiola? Ou violenta será a imóvel gaiola que o prende? Violentos, os adolescentes de periferia? Ou serão as escolas que são violentas? As escolas serão gaiolas?”

Obviamente que ele não percebeu a inversão da própria afirmação inicial: que os adolescentes são violentos como tigres. Agora as escolas é que são violentas porque supostamente prendem os aluno? Está correto isso? É claro que não, a começar pelo fato de que ninguém, se não quiser, precisa ir à escola, por mais que o Estado e suas leis e mesmo os pais digam o contrário. Inúmeros jovens simplesmente não vão à escola porque se recusam a ir e ninguém tem o poder de demovê-los. Os que vão é porque querem. Então, por princípio, a escola não aprisiona ninguém. Não obstante, o comportamento desses jovens torna-se, na sala de aula, selvagem. E por que? O ilustre professor não responde, mas continua a sua argumentação sofística:

“Mas eu pergunto: nossas escolas estão dando uma boa educação? O que é uma boa educação?” E tenta responder: “O que os burocratas pressupõem sem pensar é que os alunos ganham uma boa educação se aprendem os conteúdos dos programas oficiais. E, para testar a qualidade da educação, criam mecanismos, provas e avaliações, acrescidos de novos exames elaborados pelo Ministério da Educação… Mas será que a aprendizagem dos programas oficiais se identifica com o ideal de uma boa educação?”

Ora, o nosso psicanalista não percebeu que entrou aqui com uma pergunta que ficou sem resposta e respondeu a uma pergunta que não foi formulada, ficando escondido o lapso de raciocínio. Comportamentos civilizados na sala de aulas (ou a sua falta) nada têm a ver com conteúdo programático de coisa nenhuma e muito menos ainda com critérios de avaliação. Têm a ver com a formação moral dada (ou deixada de dar) pelo país, pelas igrejas, pelos meios de comunicação, pelas escolas, pela postura reta (ou pusilânime) dos mestres, pelos instrumentos pedagógicos utilizados. Um coisa é o que se dá como conteúdo – e é de se esperar uma harmonia do conteúdo programático das disciplinas pelo País afora – legítimo papel a ser desempenhado pelo Estado. Outra coisa é a educação essencial que prepara o jovem para o ato de aprender – os bons modos. Uma coisa é o que deve ser (ou não) dado, outra a predisposição dos jovens para receber o que se lhes oferece.

Na verdade, o nosso professor emérito deixa de reconhecer que a nossa sociedade tem crescentemente desvalorizado os mais velhos e valorizado os mais jovens, os filhos valem mais que os pais (há algo mais emblemático do que a Bolsa-escola, que remunera o moleque e não o pai, que é responsável e frequentemtemente não encontra os meios para exercer a responsabilidade como desejaria? Por que não Bolsa-pai ou Bolsa-mãe, que manteria a hierarquia geracional e a dignidade dos progenitores? Dá para imaginar alguns bolsistas a dizerem: “se tentar me enquadrar, não vou à escola e aí então não tem bolsa”, numa completa inversão de valores). Que o problema está na quebra da hierarquia entre os que sabem e os que não sabem. Que essa revolução cultural é o princípio de toda a confusão escolar, a começar pela falta de disciplina que descamba para comportamentos grupais violentos e incontroláveis. A burocracia e o Estado não têm culpa nisso; as crenças pseudopedagógicas, sim, pois estão na raiz da quebra da necessária hierarquia.

Depois, para fechar com chave de ouro o artigo, cita Nietzsche, afirmando que “O sujeito da educação é o corpo, porque é nele que está a vida”. Será? A vida na verdade é a síntese entre corpo e alma e o corpo morto é ainda um corpo, logo a proposição dele – e a de Nietzsche, e aqui me refiro explicitamente ao Zaratustra, no discurso “Dos Desprezadores do Corpo” – está errada. Nietzsche tem uma exposição confusa das suas idéias, que podem apoiar muitas outras idéias confusas, mas a sua obra, vista em conjunto, tem um sentido e pode ser interpretada e compreendida para além das confusões das partes isoladas. E se há alguém que experimentou com toda a intensidade as experiência da alma, foi Nietzsche, cujo corpo foi um exemplo acabado de fraqueza. Mas isso já é uma outra história, a merecer ela própria um artigo.

O que o ilustre educador quer afirmar é que a inteligência é ferramenta e brinquedo do corpo. Ora, isso não é possível. Nós não somos robôs, como no AI do Spillberg. Aliás, os robôs desse roteiro do Kubrick adquirem alma e seus corpos não são mais senhores de nada, o que vale é o coração (metafórico, claro, significando o Amor) e a compreensão, em resumo, a alma. Ela, sim, é o sujeito, o que nos torna semelhantes a Deus, o que nos dá o discernimento, o livre arbítrio, a capacidade para compreensão, única na criação, a tornar-nos, a nós próprios, criadores. O corpo, a matéria em si, nada é.

“Brinquedos que me permitam voar pelo caminhos da alma”, afirma o meritório mestre. Alma ou corpo? Ficou a dúvida, pelo menos a minha. “Assim, todo professor, ao ensinar, teria que se perguntar: ‘Isso que vou ensinar, é ferramenta? É brinquedo’. Se não for, é melhor deixar de lado”.

O erro do ilustre Rubem Alves é achar que ensinar (e aprender) é uma brincadeira de crianças. Não é. É o que de mais sério se pode fazer durante toda a vida. E refletir sobre essa dualidade ensino/aprendizado é tarefa para filósofos e o ensinar mesmo exige do mestre uma postura de filósofo. É preciso restabelecer a ética essencial e a hierárquica que deve existir entre mestres e discípulos – alunos e professores – mas essa ética tem que ser desenvolvida como uma crença geral, que começa em casa – os pais são os primeiros mestres – e acaba nas escolas. Infelizmente, o que vemos é a repetição, à exaustão, do bordão da musiquinha ordinária que diz em seu refrão: “Não confie em ninguém com mais de trinta anos”. Assim não há hierarquia que resista e, muito menos, sistema educacional eficiente para a vida. Nossos tenros passarinhos terão muita, mas muita dificuldade, para sair do ninho em direção a uma existência mais alta. Infelizmente.

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