Olavo de Carvalho
3 de setembro de 2000
Notas para uma das próximas aulas do Seminário de Filosofia.
A consciência cognitiva do sujeito concreto – com tudo o que nele está subentendido de biológico, de histórico-social e de espiritual – é rigorosamente o único campo de observação onde podem ser estudados diretamente os problemas da teoria do conhecimento. Os processos cognitivos não podem ser totalmente objetivados e reduzidos a esquemas gerais e médios sem que deixem de ser, precisamente, processos cognitivos e se tornem seus meros símbolos lingüísticos, submetidos portanto a leis e condições que, em relação ao conhecimento enquanto tal, são, por assim dizer, de segundo grau e, na verdade, coisa já diversa e outra.
O processo do conhecimento deve ser surpreendido in fieri, isto é, no lugar e no momento onde se dá. Só aí pode-se dizer que o observamos. Ele nunca se dá genericamente ou especificamente, mas sempre singularmente e no próprio sujeito que o examina. Fora disso, escapamos da observação e entramos na rememoração e na análise lógica.
Nesse sentido, colocar uma questão como a das origens ou fundamentos da nossa “crença no mundo exterior”, como se fosse coisa básica e da qual dependesse a validade cognitiva da percepção, é uma grave alienação das condições concretas em que se dá a nossa relação com o mundo exterior e a reflexão que fazemos sobre ela.
O mundo exterior, no instante em que é apreendido, não é jamais apreendido como “crença”, e sim como dado, presença, injunção ou coisa assim, sem qualquer mediação de uma crença. Se não fosse assim, não haveria diferença entre nossa relação com o mundo exterior e a relação que temos com nossas crenças, isto é, não haveria diferença entre o agir e sentir, de um lado, e a memória e reflexão, de outro – diferença que, não obstante, não só se nos apresenta de maneira imediata e intuitiva mas é também a condição mesma da própria reflexão.
A “crença” no mundo exterior não é pois um elemento da percepção e da ação, mas um momento da reflexão, totalmente ausente no ato mesmo da percepção e da ação. A prova mais eloqüente disto é que aqueles filósofos que não creem no mundo exterior percebem esse mundo da mesma maneira que os outros, que nele crêem; ou, mais claramente ainda, eu próprio, se alternadamente creio no mundo exterior ou duvido dele, filosoficamente, nem por isto o percebo diferente no instante em que o percebo.
Como elemento da reflexão, desnecessário à percepção e à ação, a “crença” não pode ser apreendida empiricamente no ato da percepção e da ação senão per accidens e nas ocasiões excepcionais em que entre nelas um componente essencial de reflexão, como por exemplo no ato da leitura ou da comparação consciente entre um objeto percebido agora e um outro conservado na memória.
Isso já basta para provar que a crença, não sendo essencial ao conhecimento perceptivo do mundo exterior, também não pode ser fundamento dele, mas somente fundamento de conclusões que, na reflexão, tiramos eventualmente do que sabemos dele. A noção de “crença” é pois uma premissa menor que introduzimos na reflexão gnoseológica, mas que não obtemos diretamente do exame dos processo cognitivos concretos, e sim de uma suposição extra que fazemos ex post facto para “explicá-los”.
Ora, de onde podemos extrair a idéia de que nossa aceitação espontânea dos dados percebidos é uma “crença”, senão de um raciocínio que, partindo da dúvida cética ou crítica, coloca essa aceitação “entre parênteses”? Se, na reflexão, fazemos abstração da presença atual dos dados e raciocinamos somente sobre sua representação, seus conceitos ou seus símbolos, aí já se introduziu entre sujeito e objeto aquele hiato sem o qual não haveria a possibilidade da dúvida e portanto a possibilidade de explicar como “crença” aquela aceitação espontânea. Mas é esse hiato que, precisamente, não pode haver no ato da percepção.
A aceitação espontânea dos dados não é, de maneira alguma, uma “crença”, embora possa, na reflexão, se expressar sob a forma de crença. Acreditar, portanto, que a resposta a uma pergunta sobre “qual o fundamento da nossa crença no mundo exterior” possa nos ajudar a compreender algo sobre os processos reais e concretos do conhecimento é confundir percepção e reflexão e afastar-se infinitamente da possibilidade de uma elucidação do problema.
A consideração destas observações basta para por à mostra a inocuidade das longas especulações que, sobretudo na tradição filosófica anglo-saxônica, têm se concedido a esse ponto.
O fenômeno da aceitação espontânea deve ser estudado em si mesmo, tal como se dá efetivamente no ato da percepção, e não na interpretação secundária a que damos o nome de “crença”. Bem ao contrário, a aceitação espontânea é que pode ser alegada retrospectivamente como razão em favor da crença ou da descrença. Podemos, é claro, refletir sobre essa aceitação espontânea, mas jamais caindo na esparrela de confundi-la com uma “crença”, pois, uma vez feita a confusão, não encontraremos outro fundamento para a crença senão a crença mesma e, aí, fazer correr rios de tinta não nos libertará da dúvida cética nunca mais, como parece acontecer, de fato, na tradição anglo-saxônica, mesmo entre os autores mais “realistas”, como por exemplo Bertrand Russel, que nunca pode crer no mundo exterior sem sentir que faz uma concessão à fragilidade humana ou, pior ainda, que se permite uma indulgência no pecado.