Olavo de Carvalho
Jornal do Brasil, 27 de dezembro de 2007
Num dos últimos números da Prospect , Ian Stewart, professor de matemática na Universidade de Warwick, observa que os computadores tornaram possível construir demonstrações matemáticas que se estendem por milhões e milhões de páginas, subtraindo-se ao controle humano. Acreditar nessas provas – ou negá-las – será um salto no escuro: o hiperdesenvolvimento da racionalidade matemática ameaça desembocar na total irracionalidade. Será, pergunta Stewart, “a morte da prova”? Muitos dizem “sim”; ele se alinha com os que dizem “não” – mas, é claro, uma vez colocada a questão nesses termos, a prova da resposta teria de prolongar-se por alguns milhões de páginas.
O problema, porém, não está na dificuldade da resposta: está na questão mesma. Quem disse que a racionalidade humana pode ser incrementada mediante o aprimoramento da técnica lógico-matemática? Esta última consiste essencialmente da silogística, ou combinação de duas premissas para obter uma conclusão. Vários silogismos em seqüência formam uma cadeia dedutiva, ou demonstração.
As normas básicas dessa arte foram lançadas por Aristóteles e bastaram para as necessidades gerais da mente humana durante uns 2.300 anos. Foi a partir da segunda metade do século 19 que alguns estudiosos acharam conveniente preencher os hiatos, de modo que o raciocínio fosse contínuo, sem saltos intuitivos. Para facilitar o empreendimento, trocaram a linguagem verbal da lógica clássica pela simbolização matemática. Isso acelerava a construção das cadeias dedutivas e permitia a mecanização do raciocínio, antecipando os computadores.
Com o advento dos computadores, o processo tornou-se ainda mais rápido – tão rápido que permitia montar em poucos segundos demonstrações tão complexas que a mente humana já não as podia acompanhar. O projeto de tornar as demonstrações mais precisas e confiáveis acabou por torná-las impossíveis de conferir. É confiar nos computadores ou desistir de provar o que quer que seja.
Isso é alarmante só em aparência. Qualquer instrumento que se descubra ou invente, afinal, só existe precisamente para desempenhar alguma função com mais eficácia do que o ser humano poderia fazê-lo diretamente com os meios de que a natureza o dotou. O primeiro sujeito que teve a idéia de montar um cavalo só obteve nisso algum sucesso porque era mais rápido andar a cavalo do que a pé. As roupas só continuam sendo usadas há milênios porque protegem mais do que a pele.
O problema é que é muito incômodo você alimentar um computador com umas dúzias de milhares de premissas e dois segundos depois ele devolver a você uma conclusão pronta sem que você possa ter a menor idéia do trajeto que ele percorreu. Você se sente como se estivesse consultando um oráculo. Isso não seria nem um pouco desconfortável, é claro, se além da solução do problema você não desejasse também ter o controle da situação. E a desgraça é que os primeiros lógico-matemáticos se meteram nisso justamente com a esperança idiota de obter maior controle da situação. Como todos os cientistas modernos, eles não estavam interessados em conhecimento propriamente dito, mas em poder. “Savoir pour prévoir, prévoir pour pouvoir”, era a divisa de Auguste Comte. Eles queriam construir um Golem, mas um Golem obediente. O Golem, uma vez crescidinho, já não podia concordar com isso.
Toda técnica tem seus inconvenientes, e é pura bobagem acreditar que técnicas aumentam o poder “do” ser humano. Na melhor das hipóteses, elas aumentam o poder de uns à custa de diminuir o dos outros. Para compensar a diferença, é preciso inventar outras técnicas – políticas e sociológicas – cujos inconvenientes, em geral, são maiores ainda.