por Mendo Castro Henriques
18 de setembro de 1999
O governo português abandonou Timor em 1975. A conjuntura da época é hoje mais clara. As Forças Armadas foram para Timor para promover os 3 D’s — descolonização, democracia, desenvolvimento — mas tingidas pelas cartilha marxista. O governador enviado, e primeira figura militar, era o então Coronel Lemos Pires, prometedor oficial de estado maior com uma missão talvez impossível. Na sua equipe contava-se o depois vice-ministro comunista dos governos provisórios vermelhos, o Tenente-Coronel Arnão Metelo.
Nascem em Timor-Leste partidos políticos, alguns dos quais advogam a integração na Indonésia. As divergências degeneram em confrontos armados. Entretanto, as Forças Armadas portuguesas entregaram armas de guerra modernas e munições à resistência timorense, então FRETILIN, hoje FALINTIL, onde Xanana Gusmão era um membro apagado do comité central. Tentaram substituir a liderança dos liurais, chefes tradicionais, por líderes eleitos “democraticamente”. Uma grande parcela de timorenses mais tradicionais se revoltou contra os marxistas com o apoio dos movimentos UDT e APODETI, sendo algumas das armas fornecidas pela polícia portuguesa do Capitão Maggioli, anti-comunista.
Cumprida o que era sua missão de deixar cair o poder na rua para que a FRETILIN dele se apoderasse, os militares portugueses evacuaram dia 26 de Agosto de 1975 para a ilha de Ataúro e depois para Portugal. Não foi bonito. Timor está a 11 horas de fuso horário de Lisboa, e na realidade está tão longe de todos e tão perto da Indonésia…
A guerra civil alastra por todo o território e enquanto se multiplicam as ameaças de intervenção indonésia, a Fretilin, liderada por Nicolau Lobato, expulsa de Díli os movimentos rivais da União Democrática Timorense e Apodeti e proclama unilateralmente a República Democrática de Timor-Leste, em 28 de Novembro de 1975, tendo como Presidente Francisco Xavier do Amaral.
Havia indicações ténues dos serviços militares de que Indonésia interviria mas não foram levadas a sério no plano português. Especula-se hoje se o PC da URSS e o PC português de então contariam com o Vietnam para cumprir o papel de cubanos da Ásia. Em 25 Abril de 1975 os vietnamitas entravam em Saigão e poderiam fazer novos focos revolucionários na Ásia, como os cubanos na Etiópia e em Angola. Era a idade de ouro do expansionismo soviético.
Sucedeu então uma santa aliança anti-comunista de EUA, Austrália e Indonésia. O General Suharto que liquidara 500.000-600.000 indonésios comunistas pró-Sukarno, aquando da sua tomada de poder, não iria permitir um mini-comunismo à sua porta. Atenção, o exército indonésio é um exército de guerra civil. Nunca defrontou outra nação. Suharto mandou invadir o pequeno território de Timor-leste. Em 7 de Dezembro de 1975 Tropas indonésias desembarcam em Díli e, nos dias seguintes, atravessam a fronteira e ocupam todo o território. Ignorando resoluções da ONU e tornou-o depois a “27ª província indonésia”. Até ver. A Austrália foi o primeiro e único país a reconhecer a anexação. Sabia-se já do Petróleo de Timor Gap que alguns comparam ao de Cabinda pelas suas ricas propriedades que o tornam importante para distilar combustível de aviação. Em 1989, a Austrália e a Indonésia assinam um acordo para exploração do petróleo no mar de Timor. Henri Kissinger, sempre pródigo em vacinas sangrentas preventivas nos outros, considerou que cinco semanas bastariam para resolver o assunto, segundo documentos publicados em The Nation.
Seguiu-se um longo massacre de timorenses. Nos anos seguintes, estima-se que morrem dezenas de milhares em resultado de uma política de genocídio e assimilação forçada. A população fugiu para as montanhas, fora das áreas urbanas. Mas como é difícil assegurar a sobrevivência no mato — situação repetida agora em 1999 — a população bombardeada, esfomeada, vítima de doenças foi morrendo. Foram criados campos de concentração (como em 1999) para os que regressavam, atingindo o número de 200.000 pessoas como então admitiu Holbrooke, secretário de Estado americano.
Portugal apresentou protestos na ONU, então órgão terceiro-mundista, e conseguiu que fossem votadas resoluções que mantinham Timor como território sob a administração portuguesa in absentia. Era uma consolação moral e uma vitória do direito internacional que de pouco aproveitou aos timorenses. Mas em torno dela cristalizou uma verdadeira união sagrada portuguesa, da extrema direita à extrema esquerda, dos ex-colonialistas aos neo-libertacionistas que viam talvez no povo sofredor de Timor o avatar de todos os injustiçados que eles sentiam presentes no fim do último império colonial (europeu) o português. Timor passou a fazer parte do inconsciente português e é de justiça que foi Duarte de Bragança, uma das primeiras personalidades públicas a realçar o caso.
Depois, sucedeu o inesperado. A Fretilin aguentou-se. Como os irlandeses do Norte desde Bloody Sunday. Com poucos homens mas esmagador apoio da população é possível fazer sobreviver uma guerrilha mesmo que insignificante militarmente como a Fretilin. Os líderes morreram, nasceram outros líderes. Xanana (José Alexandre) Gusmão afirmou-se a partir de 1979, começando a percorrer o território com um mini-grupo de 50 homens, procurando agrupar outras forças e iniciando a guerrilha contra o ocupante indonésio. A 10 de Junho de 1980 estavam em condições de atacar posições militares em Dili. Em resposta, o exército indonésio volta ao ataque. O resultado é um empate. Em 1981 Xanana é eleito líder da Resistência timorense, culminando um processo de reagrupamento de forças. Em 1983 os indonésios pedem conversações. O coronel Purwanto dialoga com Xanana em Março de 1983, e este exige a auto-determinação. O comandante indonésio e substituído pelo general Murdani que promete liquidar a resistência timorense até 5 de Outubro, dia das forças armadas indonésias, ou ABRI. A Indonésia inicia a política de “transmigração”, instalando em Timor-Leste habitantes de outras ilhas.
A luta continua mesmo sem apoios do exterior. Os timorenses são povos guerreiros e as armas capturadas ao inimigo são o mínimo suficiente. Em 1987, as Falintil são despartidarizadas e no ano seguinte é criado o Conselho Nacional da Resistência Maubere. Mário Carrascalão, nomeado governador pelos indonesios pratica uma politica do prato de lentilhas e de melhoramentos materiais. Solicita a entrada de capitais indonésios para criação de emprego para os jovens timorenses. A pressão internacional abre o território aos compagnons de route do capital: alguns turistas e jornalistas, nem todos pró-indonésios. Os timorenses aproveitam as oportunidades para fazer reivindicações. A visita do papa João Paulo II a Dili em Outubro de 89 e a do embaixador americano a JAcarta em Janeiro de 90 e do Núncio Apostólico em Setembro do mesmo ano ocasionam manifestações pela independência que são duramente reprimidas. O dilema das autoridades é muito claro; ou reprimem os timorenses e se isolam ou então reprimem toda a população que vem para rua.
Em 12 de Novembro de 1991 o massacre do cemitério de Santa Cruz, em Díli, em que as tropas indonésias assassinam centenas de timorenses, é testemunhado por jornalistas estrangeiros. O mundo viu pela CNN as imagens daquele massacre e pela primeira vez em vinte anos a causa da independência de Timor e a denúncia do genocídio contra o povo de Timor-Leste tornou-se global. Xanana reitera o que sempre disseram todos os patriotas “Convém não esquecer a razão de ser profunda de cada povo: o orgulho de ser ele próprio”. Em Novembro de 1992, Xanana é capturado, em Díli, por tropas indonésias. Julgado em Maio do ano seguinte, é condenado a prisão perpétua. O Presidente Suharto reduz a pena para 20 anos de prisão, em Djakarta. A guerrilha nas montanhas continuou. Os timorenses nunca comeram o prato de lentilhas que os indonésios lhes davam. E passaram sete anos.
Entretanto, sucedera muita coisa. O muro de Berlim caíra. A aliança EUA-Indonésia Austrália era redundante e a insatisfação sofreu uma aceleração rápida. A Igreja católica continuou a fazer pressão pela emancipação dos timorenses. Em 10 de Dezembro de 1996, o bispo Ximenes Belo e José Ramos-Horta recebem, em Oslo, o Prémio Nobel da Paz; foi uma poderosa chamada de atenção do mundo para a violação dos direitos humanos em Timor-Leste. Ao longo de 1997, a comissão de Direitos Humanos da ONU aprova uma resolução condenando Jacarta, com algum peso para Nelson Mandela. O dinheiro governamental português nunca faltou à resistência timorense. Mas nada mudara na frente interna indonésia. A Indonésia reforçava o seu dispositivo militar em Timor-Leste. Uma minha antiga aluna timorense disse-me uma vez “Que se pode esperar de um país em que a palavra ‘liberdade’ se diz merdeka”?
Os argumentos morais apenas calaram fundo quando, em termos sérios para os senhores deste mundo, a Indonésia foi gravemente atingida a crise dos mercados asiáticos. Era uma crise de há muito antecipada por vozes como a da Transparência Internacional que alertavam que a corrupção desequilibrava o crescimento dos tigres asiáticos. Caiu a confiança dos mercados e das entidades financeiras multinacionais. Em Maio de 1998, Suharto é forçado a demitir-se depois de meses de revolta popular ateada pela profunda crise económica. O novo Presidente indonésio, Iussuf Habibie, lança reformas democráticas. Em Janeiro de 1999, Portugal e a Indonésia abrem secções de interesses nas duas capitais. Em 5 de Maio, os ministros dos negócios estrangeiros de Portugal e da Indonésia e o secretário-geral da ONU assinam um acordo para a realização de um referendo de autodeterminação em Timor-Leste, sob a égide das Nações Unidas.
É um ponto misterioso sobre o qual ainda falta informação. Por que razão o presidente Habibi decidiu-se pela abertura democrática em Timor ? Habibi era um seguidor de Suharto que era um general de Sukarno. E está por decidir-se o que os generais de Habibi, como Wiranto, farão do actual presidente. Mas o certo é que Habibi permitiu a realização de um referendo com observadores da ONU enquanto o exército de ocupação indonésio permitia e acalentava uma onda de terrorismo desencadeado pelas milícias pró-indonésias. Formam-se milícias armadas — AITARAK — em parte com elementos do exército de ocupação, em parte com outros indonésios, em parte com etnias da fronteira com Timor indonésio que ameaçam massacrar e destruir.
A 30 de Agosto de 1999 — 98,6% dos recenseados votam no referendo de autodeterminação. O resultado, anunciado às 9h (hora de Díli) de 4 de Setembro, é uma esmagadora vitória da independência, com 78,5% dos votos. O pequeno povo timorense uma vez mais surpreendeu o mundo. Os indonésios também. As milícias e o exército indonésio lançam imediatamente uma campanha de assassínios, deportações em massa, pilhagens e incêndios, forçando a população a refugiar-se nas montanhas e obrigando a ONU a deixar Díli. Desconhecemos números e esse inventário e começa a ser feito.
Rompeu-se então a máscara da aliança EUA Austrália Indonésia. A Austrália — que vai ser uma república em 2000 e está em Timor a liderar a INTERFET, a força multinacional — cumpre a sua primeira missão de poder emergente no Pacífico e regulador pró-americano dos conflitos regionais. O seu protagonismo fá-la intervir maciçamente em Timor e inverter 180º a sua política externa para com a Indonésia. Os Eua estão por detrás a apoiar. A França está por causa da Nova Caledónia. A Indonésia tem que salvar a face e Timor é apenas uma pequena dor de cabeça para os 270 milhões de ilhéus, muçulmanos e cristãos. Tudo isto é previsível.
O que pode continuar a surpreender é o pequeno povo timorense. Ele tem um papel histórico a cumprir: o de demonstrar que os bens se começam a conquistar pela força dos valores morais antes do poder desordenado. Creio decisivo para Timor ser um povo lusófono, de falar e sentir o português que o projecta numa área cultural global e que o abre para além das suas pertenças regionais imediatas; como é decisivo a pertença cristã que o projecta numa área que cria por vezes expectativas que não se podem cumprir. Por tudo isto, é viável a independência de Timor dentro das suas pertenças lusófonas longínquas e pacíficas próximas. Miticamente, creio que se trata de um pequeno povo corajoso que não comeu o prato de lentilhas que lhe ofereceram e, como Jacob, emerge vitorioso das suas terríveis provações.