Trechos de livros

Cartas de um Terráqueo ao Planeta Brasil – Introdução

Olavo de Carvalho

Introdução do autor à coletânea “Mundo Real: Cartas de um Terráqueo ao Planeta Brasil”, lançada em 20 de março de 2007 no Espaço Cultural É-Realizações, em São Paulo.

Estou muito feliz com a publicação desta coletânea e agradeço à Associação Comercial de São Paulo, principalmente nas pessoas de Guilherme Afif Domingos, Marcel Solimeo e Moisés Rabinovici, o reconhecimento público da utilidade do esforço que venho desenvolvendo na coluna Mundo Real do Diário do Comércio. Num país onde tantos vêm me bajular em privado para depois sair negando que me conhecem, essa homenagem supõe uma quota nada desprezível de bravura e honradez. O que mais me agrada nela é que seus benefícios se estendem para muito além da pessoa do homenageado, contribuindo decisivamente para ampliar e consolidar os efeitos que ele vem buscando alcançar com o seu trabalho. Esses efeitos são três:

1 – Conscientizar os brasileiros quanto ao fenômeno da existência, atuação e periculosidade do Foro de São Paulo, evidenciando o caráter intrinsecamente criminoso de uma entidade em que políticos, terroristas e narcotraficantes, a salvo dos olhos do público, fazem planos em comum para a conquista do poder total no continente.

2 – Alertar os leitores quanto à fraude jornalística geral e persistente que por dezesseis anos ocultou esse fenômeno e, uma vez furada a cortina de silêncio, se dedica agora a tentar minimizá-lo ex post facto para atenuar o escândalo da sua própria cumplicidade com o crime.

3 – Colocar à disposição dos leitores novos conceitos de filosofia política apropriados à compreensão desses dois fenômenos no quadro do poder mundial em formação.

Passo a analisar brevemente esses três pontos.

1. O governo secreto

Reunindo os partidos legais de esquerda com organizações terroristas e quadrilhas de narcotraficantes de todos os países da América Latina, o Foro de São Paulo é a organização política mais poderosa que já existiu no continente. Ao longo da história latino-americana, nenhuma outra entidade jamais congregou tantos líderes, chefes de Estado, capomafiosi e comandantes guerrilheiros num esforço comum de tomada do poder em escala continental. Só uma das entidades envolvidas — as Farc, Fuerzas Armadas Latino-Americanas de Colombia – chegou a ter recursos econômicos e bélicos superiores a todas as forças armadas da região.

Em termos de lógica e bom senso, qualquer tentativa de negar ou questionar a importância essencial dessa entidade para a decisão dos rumos da história continental é loucura completa ou mentira interesseira. Não creio que seja admissível qualquer discussão quanto a esse ponto.

Também não vejo como negar, por meios racionais, o caráter intrinsecamente criminoso do empreendimento. O caso das Farc ilustra-o com eloqüência gritante. Enquanto vinham à tona as provas de que a narcoguerrilha colombiana abastecia o mercado nacional com duzentas toneladas anuais de cocaína, o então candidato presidencial Luís Inácio Lula da Silva se reunia discretamente com os chefes dessa quadrilha para tratar de interesses estratégicos comuns e ainda assinava manifestos em favor dos delinqüentes. Empossado na presidência, ele continuou a participar dos encontros através de seu assessor Gilberto  Carvalho, trocando gentilezas e favores com os megadelinqüentes, montando com eles um esquema de poder de dimensões continentais, ao mesmo tempo que a polícia brasileira denunciava a presença de agentes das Farc nas quadrilhas de criminosos que espalhavam o terror nas ruas de São Paulo e do Rio.

2. A fabricação do segredo

Em qualquer país normal, os políticos envolvidos nesse conluio macabro seriam denunciados, expostos à execração pública, presos, julgados e condenados. O problema foi que esses políticos eram muitos – e precisamente aqueles nos quais a mídia havia apostado a sorte do país como portadores ungidos da redenção nacional. Se os fatos fossem divulgados, se os crimes fossem julgados segundo a sua gravidade objetiva, a decepção nacional com os partidos de esquerda seria muito mais do que o foi ante a simples revelação de casos de corrupção vulgar, ainda que em escala mastodôntica. Seria o fim da esquerda brasileira. Mas àquela altura já não havia nenhuma direita organizada capaz de ocupar o lugar dela, e os poucos direitistas isolados que ainda sobreviviam no cenário nacional eram os célebres “filhotes da ditadura”, que a mídia em peso odiava mais que à peste. Ante a perspectiva abominável de um “retorno da direita”, os gerentes autonomeados da opinião pública concluíram que era melhor fazer de conta que não tinham visto nada e desviar o foco de todas as discussões para assuntos laterais e secundários. Foi nesse momento que o Brasil abdicou, definitivamente, de ser um país normal. Optou pela negação psicótica da realidade, mergulhando de cabeça na alienação e na desconversa.

Por caridade, nem pensem em me sugerir que essa formidável articulação de silêncios foi coincidência, mera coincidência. Não é humanamente concebível que tantos diretores de jornais, revistas e canais de TV, tantos chefes de redação, tantos repórteres ávidos de escândalos, tantos comentaristas políticos iluminados tenham cochilado em uníssono ao longo de dezesseis anos, com inocência de bebês recém-nascidos, malgrado todos os avisos e provas que eu ia espalhando na mídia, malgrado tantos alertas e furiosas mensagens de protesto que lhes enviei durante esse tempo.

Essa monumental gafe coletiva, essa formidável conjunção de distrações teria constituído a mais vasta epidemia de inépcia já observada na história do jornalismo universal. Por si, ela bastaria para desmoralizar totalmente a classe jornalística brasileira, para eliminar qualquer vestígio de credibilidade que lhe restasse, para suprimir qualquer pretexto, por mais mínimo, que o público ainda tivesse para acreditar na mídia nacional.

Mas não foi isso o que aconteceu. A mídia brasileira não pecou por uma dose cavalar de incompetência, mas por uma quota ainda maior de mendacidade e cinismo. Busquem na História, e não encontrarão caso similar de amputação política do noticiário em tão vastas proporções e por período tão longo em nenhum país democrático do mundo. Encontrarão alguns, é claro, nos regimes totalitários da URSS, da China e da Alemanha nazista. Imitá-los em regime democrático, um feito quase impossível, é uma glória que ninguém pode negar ao jornalismo brasileiro.

3. Compreendendo a situação

Fenômenos tão monstruosamente anormais não sucedem apenas por suceder, apenas porque sim. Refletem correntes profundas do acontecer histórico, que neles se manifestam de maneira parcial e fragmentária, sem que o público, pela pura visão das novidades de superfície, consiga atinar com a unidade do processo subjacente.

A dificuldade aí é dupla. De um lado, podem faltar as informações essenciais. Sob uma enxurrada de notícias vistosas, os fatos verdadeiramente importantes escapam à visão da mídia diária, que é a principal fonte de informações mesmo para as camadas cultas da população. De outro lado, faltam os conceitos articuladores que possam colocar essas informações numa perspectiva inteligível. Faltam porque as chaves explicativas mais usuais em circulação no debate nacional estão todas viciadas: umas foram concebidas para situações anteriores e mais esquemáticas, outras são estereótipos sem o menor alcance cognitivo, outras, ainda, são meros slogans de propaganda eleitoral. Nunca a situação do país foi mais complexa, e nunca os instrumentos intelectuais usados para discuti-la foram mais simplórios.

O desnível entre a inteligência nacional e os novos problemas colocados pelas transformações histórico-culturais, políticas e econômicas do mundo nos últimos trinta anos foi ainda ampliado pelo fato de que, justamente nesse período, a conquista da hegemonia cultural e jornalística pela esquerda em ascensão reduziu as instituições de cultura a centros de formação de militantes, destruindo toda possibilidade de vida intelectual. Não é preciso dizer que até mesmo os conservadores e liberais foram afetados por esse processo, na medida em que, disputando num terreno previamente demarcado pelo adversário, consentiram em limitar o debate nacional à esfera dos assuntos econômicos imediatos que lhes eram designados pela própria esquerda. O prejuízo que tiveram com isso foi duplo: de um lado, entregaram à esquerda o monopólio do temário cultural e moral de maior interesse público; de outro, limitaram dramaticamente o seu próprio horizonte intelectual, bloqueando o acesso a uma compreensão das transformações maiores no cenário do mundo.

Era, enfim, toda uma cultura – pré-moldada pela hegemonia esquerdista – que se opunha ao trabalho da inteligência para alcançar uma visão adequada do presente estado de coisas no país e dos fatores internacionais que o determinavam.

Elevar os homens acima das limitações da cultura ambiente é a tarefa por excelência da filosofia. Não tem nada a ver com “crítica cultural”, uma frescura inventada pela escola de Frankfurt. A crítica cultural consiste em solapar as bases de uma cultura, mas proclamando ao mesmo tempo que o ser humano não pode se libertar dela nunca, só restando portanto estimular tudo quanto nela exista de negativo, de maldoso, de criminoso, para transformá-la numa cultura de ódio a si mesma, numa contracultura. É a idéia hegeliana do “trabalho do negativo” transformada em ativismo cultural. Um dos seus procedimentos mais característicos é depreciar a cultura vigente por meio de comparações pejorativas com outras culturas, concedendo a estas últimas o benefício do relativismo e espremendo aquela entre as exigências drásticas do moralismo absoluto. A crítica cultural inventou e disseminou a “guerra assimétrica”.

A análise filosófica, ao contrário, acredita que qualquer indivíduo pode transcender as limitações da sua cultura, pois se não fosse assim toda comparação entre culturas seria impossível. O teatro grego, antepassado imediato da filosofia, já escolhia de vez em quando um estrangeiro como herói do enredo trágico, para ensinar à platéia que a compaixão era universal, não limitada por fronteiras nacionais ou culturais. A negação fácil da possibilidade de conhecer verdades universais, a sujeição completa do homem ao condicionamento cultural, já é um crime contra a inteligência. A crítica cultural agrava esse crime, ao jogar a cultura contra si mesma e aprisionar os homens num emaranhado insuportável de conflitos do qual buscarão alívio em explosões revolucionárias perfeitamente vãs.

Uma vez, uma cretiníssima apresentadora de televisão, querendo me fazer ciúme, disse que o melhor crítico cultural brasileiro era o Sérgio Augusto. Concordei. Não sou nem jamais serei um crítico cultural. Para isso serve qualquer Sérgio Augusto. Meu negócio não é transformar a cultura numa ratoeira. É fazer com que os homens enxerguem para além da sua cultura, mostrar-lhes que a ratoeira não existe exceto como ilusão hipnótica.

Para despertá-los do sono hipnótico da cultura brasileira recente, era preciso reconstruir de alto a baixo uma visão da história infectada de cacoetes marxistas inconscientes.

O trabalho teórico que desenvolvi para isso está registrado em gravações e apostilas de cursos e conferências proferidos no Centro Universitário da Cidade do Rio de Janeiro na década de 90 e sobretudo na PUC do Paraná entre 2001 e 2005. Os artigos que publiquei no Diário do Comércio, e que constituem o miolo desta edição do Digesto Econômico, são a ilustração prática dos conceitos e métodos ali expostos. É claro que podem ser lidos e compreendidos sem essa retaguarda teórica. Se estou avisando que ela existe, é para fazer notar que nada naqueles artigos é opinião solta, efusão momentânea de impressões pessoais. Tudo, neles – exceto, evidentemente, algum lapso devido à pressa da redação jornalística ou a desatenções do autor –, tem razões de ser, nem sempre declaradas, que recuam até os fundamentos últimos do problema abordado, o que quer dizer que, em princípio, para cada afirmação ali vertida há toda uma retaguarda de provas lógicas e documentais que não são apresentadas por extenso no corpo do texto, mas que, na maior parte dos casos, já foram desenvolvidas oralmente em cursos, debates e conferências e podem sê-lo novamente em caso de necessidade.

No que diz respeito aos fundamentos teóricos, os de maior importância prática para as breves análises expostas nesses artigos são o atomismo histórico-sociológico, a teoria do sujeito da História, a teoria das castas e a teoria dos quatro discursos.

O primeiro é um preceito metodológico segundo o qual toda generalização histórico-sociológica que não possa ser decomposta analiticamente até os mínimos atos e personagens individuais cuja somatória a compõe não passa de uma figura de linguagem, enganadora no mais das vezes. Se, por exemplo, acompanhando o consenso historiográfico vigente (criado pelos marxistas), dizemos que na Revolução Francesa de 1789 “a burguesia tomou o poder”, essa sentença só faz sentido se pudermos apontar, entre os líderes desse movimento, um número significativo de empreendedores capitalistas. O fato é que não havia ali praticamente nenhum. A Revolução Francesa foi um movimento anticapitalista e antiburguês, determinando a longo prazo o rumo acentuadamente estatizante e socializante tomado pela economia francesa e provocando inevitavelmente com isso a decadência do país que era o mais rico e poderoso do mundo. O mito da “revolução burguesa” é talvez o fantasma mais assombroso que já se apossou da mente dos sociólogos e historiadores brasileiros, infundindo nela uma infinidade de erros letais na interpretação do nosso passado e presente.

A teoria do sujeito da História diz que nenhum grupo, comunidade ou entidade de qualquer natureza pode ser o agente da transformação histórica se não atende a três condições: (1) tem de possuir uma unidade real e não apenas simbólica e analógica; (2) essa unidade tem de ser forte o bastante para determinar por si os valores, preferências e escolhas dos indivíduos que as compõem; (3) tem de continuar existindo por tempo suficiente para garantir uma continuidade de ação para além do prazo de vida desses indivíduos. Essas condições, embora escapem quase sempre à visão dos intérpretes sociológicos da História, são óbvias tão logo enunciadas. Na verdade elas são o único conteúdo identificável do conceito mesmo de ação histórica. Basta um exame superficial para evidenciar que, dentre os usuais “sujeitos da história” – as classes, as nações, os Estados, as raças, as culturas – não atendem de maneira alguma às três juntas, isto é, não são verdadeiros sujeitos da história, mas sombras projetadas pelos verdadeiros agentes. Sujeitos da História, em sentido estrito, são somente os seguintes: (a) as igrejas e seitas religiosas; (b) as sociedades místicas, iniciáticas e esotéricas; (c) as dinastias aristocráticas e oligárquicas; (d) os movimentos políticos organizados como seitas religiosas ou sociedades esotéricas. Não existe um quinto agente histórico (o estudo dos fatores históricos extra-humanos, naturais ou sobrenaturais, é um tema em separado, que seria longo explicar aqui). As nações, classes, Estados etc., são cenários, locais ou objetos da ação, nunca agentes. A História contada com esses falsos agentes como focos produz continuidades e encadeamentos causais simbólicos e ilusórios, como o das figuras de animais formadas pelas nuvensem movimento. Por trás desses nexos aparentes, sempre se encontrará, escavando um pouco, a mão dos verdadeiros agentes. Muitas das análises que apresentei no Diário do Comércio não são senão exemplos de aplicação desse método.

A teoria das castas, que adaptei da tradição hindu, visa a descobrir a verdade por trás da falsa identidade histórica das classes sociais e sobretudo por trás do mito da “ideologia de classe”. Todas as supostas “ideologias de classe” foram inventadas por uma só classe: os intelectuais. E destinam-se tão-somente a encobrir a manipulação política das demais classes pelos intelectuais. Mas estes não são, em nenhum sentido socio-econômico identificável, uma classe. São uma casta. As castas são tipos psicológicos (em geral distribuídos pelas várias classes) e por isso são determinantes diretos da conduta humana. Não são propriamente agentes da história, mas são o molde estrutural onde esses agentes nascem e se definem. Por isso, toda e qualquer ação histórica leva uma marca de casta. As quatro castas têm existência permanente, independentemente das variações da estrutura socio-econômica. Perceber a identidade de casta dos agentes históricos é essencial para compreender a lógica de suas ações.

A teoria dos quatro discursos – a única, das aqui mencionadas, que circula em formato de livro (Aristóteles em Nova Perspectiva, Rio, Topbook, 1998, reed. São Paulo, É-Realizações, 2006) — é um estudo dos meios essenciais de persuasão, portanto dos meios de influência do homem sobre o homem. Ela ajuda a realizar a distinção entre o discurso dos agentes do processo e o discurso explicativo do observador analítico – distinção que, segundo Aristóteles, é o começo da ciência política. Essa distinção desemboca numa outra, de alto valor prático imediato. Todo discurso de agente contém, de maneira compactada e indistinta, dois elementos: os dados verdadeiros ou falsos que ele possui sobre a situação e as ações que pretende desencadear com o seu discurso. A força da sua influência sobre os ouvintes depende, muitas vezes, de que esses dois elementos permaneçam mesclados. Por isso mesmo há em toda ação histórica um componente de mistificação, que pode chegar à completa automistificação. A análise decompõe esses fatores, tornando inteligível o processo na mesma medida em que fornece os meios de neutralizar, se preciso, a força agente. Muitos dos artigos que publiquei no Diário do Comércio não são senão aplicações dessa distinção, cuja importância vai muito além do puro interesse científico.

Meus alunos – e os poucos leitores de meus livros e apostilas – percebem claramente que esses artigos, como quaisquer outros publicados por mim, são apenas portas de entrada para toda uma rede de conexões subterrâneas. Para os demais leitores, essa rede permanece invisível, mas basta um pouquinho de imaginação para suspeitar que ela existe, e basta um pouquinho de sanidade intelectual para despertar o desejo de buscá-la, ou pelo menos de abster-se de opinar até a posse de maiores conhecimentos. Como imaginação e sanidade intelectual faltam quase por completo aos formadores de opinião midiática e universitária, praticamente tudo o que esses senhores escreveram ou disseram sobre o meu pensamento político (para nada dizer das opiniões abalizadíssimas de estudantes semi-analfabetos que superlotam as listas de discussão na internet) é pura fantasia construída em cima de fragmentos isolados. Nunca esperei deles outra coisa.

Numa vida anormalmente agitada de jornalista, conferencista itinerante, editor de textos alheios, micro-empresário, ongueiro virtual e agora correspondente no Exterior, não tive tempo de organizar para publicação as gravações e transcrições de minhas aulas, que no mais modesto dos cálculos sobem a vinte mil páginas de texto. Nem mesmo artigos de jornal pude coligir e publicar em livro desde o segundo volume de O Imbecil Coletivo (Topbooks, 2000). Vocês podem portanto imaginar a minha alegria quando a Associação Comercial de São Paulo sugeriu a publicação desta coletânea. Ela é o primeiro passo para que, aos poucos, a unidade do meu pensamento político – e da elaboração filosófica por baixo dele – comece a se tornar visível fora do meu círculo de alunos. [1]

Quanto ao título, creio que não preciso explicá-lo muito. Fisicamente, o Brasil parece continuar ancorado no solo, mas, psicologicamente, está vagando em algum lugar da estratosfera. Sem a menor idéia do que se passa no mundo, tem opiniões sobre tudo e as emite com uma paixão, com um furor, que já prova serem frutos da autopersuasão imaginária, sempre mais emocionante do que a mera observação dos fatos. Daí a necessidade destas cartas de um terráqueo, modestas tentativas de trazer de volta ao nosso velho planeta uma nação perdida no espaço.

Olavo de Carvalho

Richmond, Virginia, 17 de janeiro de 2007.

[1] Fora umas poucas palavras substituídas por motivo estilístico e uma ou outra informação errada cuja correção devo a gentis leitores, os artigos aqui publicados reproduzem integralmente os textos publicados na minha coluna Mundo Real. Se houver neles ainda algum erro ou imprecisão grave, cabalmente demonstráveis, e se alguém me avisar disso em tempo, com prazer os corrigirei numa próxima edição. [Nota do autor em 17 jan. 2007.]

 

O Imbecil Coletivo II: APEIROKALIA

Olavo de Carvalho

Bravo!, Ano I, no1, novembro de 1997 e A Longa Marcha da Vaca para o Brejo: O Imbecil Coletivo II. Rio, Topbooks, 1998.

Como geralmente se entende por educação superior o simples adestramento para as profissões melhores, conclui-se, com acerto, que toda pessoa normal é apta a recebê-la e que, na seleção dos candidatos, qualquer elitismo é injusto, mesmo quando não resulte de uma discriminação intencional e sim apenas de uma desigual distribuição da sorte. Mas se por essa expressão se designa a superação dos limites intelectuais do meio, o acesso a uma visão universal das coisas, a realização das mais altas qualidades espirituais humanas, então existe dentro de muitos postulantes um impedimento pessoal que, mais dia menos dia, terminará por excluí-los e por fazer com que a educação superior, no sentido forte e não administrativo do termo, continue a ser de fato e de direito um privilégio de poucos.

Esse impedimento, graças a Deus, não é de ordem econômica, social, étnica ou biológica. É um daqueles males humanos que, como o câncer e as brigas conjugais, se distribuem de maneira mais ou menos justa e eqüitativa entre classes, raças e sexos. É o único tipo de imperfeição que poderia, com justiça, ser invocado como fundamento de uma seleção elitista, mas que de fato não precisa sê-lo, pois opera essa seleção por si, de maneira tão natural e espontânea que os excluídos não dão pela falta do que perderam e chegam mesmo a sentir-se bastante satisfeitos com o seu estado, reinando assim entre os poucos felizes e os muitos infelizes uma perfeita harmonia, salvaguardada pela distância intransponível que os separa.

O impedimento a que me refiro não é material ou quantificável. O IBGE não o inclui em seus cálculos e o Ministério da Educação o ignora por completo. No entanto ele existe, tem nome e é conhecido há mais de dois milênios. A mente treinada reconhece sua presença de imediato, numa percepção intuitiva tão simples quanto a da diferença entre o dia e a noite.

Os gregos chamavam-no apeirokalia. Quer dizer simplesmente “falta de experiência das coisas mais belas”. Sob esse termo, entendia-se que o indivíduo que fosse privado, durante as etapas decisivas de sua formação, de certas experiências interiores que despertassem nele a ânsia do belo, do bem e do verdadeiro, jamais poderia compreender as conversações dos sábios, por mais que se adestrasse nas ciências, nas letras e na retórica. Platão diria que esse homem é o prisioneiro da caverna. Aristóteles, em linguagem mais técnica, dizia que os ritos não têm por finalidade transmitir aos homens um ensinamento definido, mas deixar em suas almas uma profunda impressão. Quem conhece a importância decisiva que Aristóteles atribui às impressões imaginativas, entende a gravidade extrema do que ele quer dizer: essas impressões profundas exercem na alma um impacto iluminante e estruturador. Na ausência delas, a inteligência fica patinando em falso sobre a multidão dos dados sensíveis, sem captar neles o nexo simbólico que, fazendo a ponte entre as abstrações e a realidade, não deixa que nossos raciocínios se dispersem numa combinatória alucinante de silogismos vazios, expressões pedantes da impotência de conhecer.

Mas é claro que as experiências interiores a que Aristóteles se refere não são fornecidas apenas pelos “ritos”, no sentido técnico e estrito do termo. O teatro e a poesia também podem abrir as almas a um influxo do alto. À música — a certas músicas — não se pode negar o poder de gerar efeito semelhante. A simples contemplação da natureza, um acaso providencial, ou mesmo, nas almas sensíveis, certos estados de arrebatamento amoroso, quando associados a um forte apelo moral (lembrem-se de Raskolnikov diante de Sônia, em Crime e Castigo), podem colocar a alma numa espécie de êxtase que a liberte da caverna e da apeirokalia.

Porém, com mais probabilidade, as experiências mais intensas que um homem tenha tido ao longo de sua vida serão de índole a desviá-lo do tipo de coisa que Aristóteles tem em vista. Pois o que caracteriza a impressão vivificante que o filósofo menciona é justamente a impossibilidade de separar, no seu conteúdo, a verdade, o bem e a beleza. De Platão a Leibniz, não houve um só filósofo digno do nome que não proclamasse da maneira mais enfática a unidade desses três aspectos do Ser. E aí começa o problema: muitos homens não tiveram jamais alguma experiência na qual o belo, o bem e o verdadeiro não aparecessem separados por abismos intransponíveis. Esses homens são vítimas da apeirokalia — e entre eles contam-se alguns dos mais notórios intelectuais que hoje fazem a cabeça do mundo.

Infelizmente, o número dessas vítimas parece destinado a crescer. Já em 1918, Max Weber assinalava, como um dos traços proeminentes da época que nascia, a perda de unidade dos valores ético-religiosos, estéticos e cognitivos. O bem, o belo e a verdade afastavam-se velozmente, num movimento centrífugo, e em decorrência

“os valores mais sublimes retiraram-se da vida pública, seja para o reino transcendental da vida mística, seja para a fraternidade das relações humanas diretas e pessoais… Não é por acaso que hoje somente nos círculos menores e mais íntimos, em situações humanas pessoais, é que pulsa alguma coisa que corresponda ao pneuma profético, que nos tempos antigos varria as grandes comunidades como um incêndio”.1

As duas fortalezas do sublime, que Weber menciona, não demoraram a ceder: a vida mística, assediada pela maré de pseudo-esoterismo que se apropriou de sua linguagem e de seu prestígio, acabou por se recolher à marginalidade e ao silêncio para não se contaminar da tagarelice profana. A intimidade, vasculhada pela mídia, violada pela intromissão do Estado, tornada objeto de exibicionismo histérico e de bisbilhotices sádicas, desapropriada de sua linguagem pela exploração comercial e ideológica de seus símbolos, simplesmente não existe mais.

Toda a literatura do século XX reflete esse estado de coisas: primeiro a “incomunicabilidade” dos egos, depois a supressão do próprio ego: a “dissolução do personagem”. Mas, desde Weber, muita água rolou. Nas proximidades do fim do milênio, o que se entende por mística é um cerebralismo de filólogos; por intimidade, o contato carnal entre desconhecidos, através de uma película de borracha. Os três valores supremos já não são apenas autônomos, mas antagônicos. O belo já não é apenas alheio ao bem: é decididamente mau; o bem é hipócrita, pseudo-sentimental e tolo; a verdade, feia, estúpida e deprimente. A estética celebra os vampiros, a morte da alma, a crueldade, o macho que mete o braço até o cotovelo no ânus de outro macho. A ética reduz-se a um discurso acusatório de cada um contra seus desafetos, aliado à mais cínica auto-indulgência. A verdade nada mais é o consenso estatístico de uma comunidade acadêmica corrompida até à medula.

Nessas condições, é um verdadeiro milagre que um indivíduo possa escapar por instantes da redoma de chumbo da apeirokalia, e outro milagre que, ao retornar ao pesadelo que ele denomina “vida real”, esses instantes não lhe pareçam apenas um sonho, que não se deve mencionar em público.

Mas nada proíbe um escritor de dirigir-se, em suas obras, aos sobreviventes do naufrágio espiritual do século XX, na esperança de que existam e não sejam demasiado poucos. Acossados pelo assédio conjunto da banalidade e da brutalidade, esses podem conservar ainda uma vaga suspeita de que em seus sonhos e esperanças ocultos há uma verdade mais certa do que em tudo quanto o mundo de hoje nos impõe com o rótulo de “realidade”, garantido pelo aval da comunidade acadêmica e da Food and Drug Administration. É a tais pessoas que me dirijo exclusivamente, ciente de que não se encontram com mais freqüência entre as classes letradas do que entre os pobres e os desvalidos.

NOTAS

  1. Max Weber, “A ciência como vocação”, em Ensaios de Sociologia, org. H. H. Gerth e C. Wright Mills, trad. Waltensir Dutra, rev. por Fernando Henrique Cardoso, 5ª ed., Rio, Guanabara, 1982, p.182.

O Jardim das Aflições: Epicuro e Marx

O Jardim das Aflições, Cap. VI, § 16-17

  • 16. Epicuro e Marx

Epicuro inverte, como se viu no § 10, a relação lógica entre a prática e a teoria. Se normalmente a teoria é o fundamento lógico da prática e esta é a exemplificação daquela no campo dos fatos, no epicurismo a prática é que produz artificialmente a condição psicológica que tornará crível a teoria, e o discurso teórico não será nada mais do que o elemento discursivo da prática, a tradução verbal da crença produzida pelo hábito. A teoria epicúrea não descreve o mundo percebido, mas sua prática altera, mediante exercícios, a percepção do mundo, para que se torne semelhante à teoria. Não se trata de compreender o mundo, mas de transformá-lo.

O leitor deve ter reconhecido a sentença anterior: é a 11ª Tese sobre Feuerbach de Karl Marx. Tudo leva a crer que a convivência do jovem Marx com a filosofia de Epicuro — matéria de sua tese de docência — deixou no marxismo acabado marcas mais profundas do que os estudiosos geralmente supõem e do que ao próprio Marx adulto interessou declarar.  A simbiose marxista da teoria com a prática não vem de Hegel, mas é uma herança epicúrea. Acontece, no entanto, que essa simbiose, abolindo a distância normal entre a esfera da ação e a da especulação, suprime, em Marx como em Epicuro, a diferença entre o efetivo e o possível, e nos precipita numa crise alucinatória onde já não há lugar para o recuo teorético que fundamenta a noção mesma de verdade objetiva1. O desejo, o ímpeto, a ambição — da alma individual ou das massas revolucionárias — torna-se o fundamento único de uma cosmovisão onde a teoria já não serve senão para estimular retoricamente a ação prática ou para, uma vez realizada a ação, legitimar como satisfatório o que quer que tenha dela resultado na prática. Mesmo que a ação produza efeitos totalmente diversos dos esperados, já não haverá distanciamento crítico suficiente para julgá-los, e eles serão não somente aceitos, mas celebrados pela teoria como normais e desejáveis: a teoria não tem aí nenhum valor autônomo, está reduzida ao papel de uma racionalização a posteriori, de uma apologia do fato consumado. A capacidade das esquerdas mundiais para justificar em nome de uma utopia humanitária as piores atrocidades do regime comunista — e, exterminado o comunismo na URSS, para continuar a pregar com a maior inocência os ideais socialistas como se não houvesse nenhuma relação intrínseca entre eles e o que aconteceu no inferno soviético —, é uma herança mórbida que, através de Marx, veio do epicurismo. Não é de estranhar que a evolução de um século do pensamento marxista tenha desembocado em Antonio Gramsci, o teórico do “historicismo absoluto”, que assume declaradamente aquilo que em Marx estava apenas insinuado e implícito: a abolição do conceito de verdade objetiva e a submissão de toda atividade cognitiva às metas e critérios da praxis revolucionária; a absorção da lógica na retórica, da ciência na propaganda ideológica2. Também é compreensível que, numa outra e paralela linha dessa evolução, que leva a Reich e a Marcuse, o desejo erótico, e já não a força das causas econômicas objetivas, seja a mola mestra que move o progresso e dispara a revolução. Estes desenvolvimentos manifestam à plena luz do dia tendências que em Marx já estavam latentes como heranças do seu epicurianismo de origem. O fato de que tenham ressurgido ao longo da evolução do marxismo mostra que Marx soube recalcá-las, mas não superá-las. Em vão pensadores marxistas como Lukács ou Horkheimer, mais afinados com as tradições clássicas do Ocidente e ansiosos de filiar Marx a elas, protestaram contra a invasão do irracionalismo que, sobretudo a partir da década de 60, terminou por contaminar toda a esquerda mundial: como dizia o dr. Freud, o passado rejeitado volta com redobrada força3.

Marxismo e epicurismo parecem ir em direções opostas: este, fugindo do mundo, para fechar-se no jardim com a comunidade dos eleitos; aquele, para fora, para a ação coletiva que vai transformar o mundo. Mas é uma diferença de escala antes que de natureza: nos dois casos, trata-se de envolver seres humanos numa praxis absorvente e hipnótica, que os afastará para sempre da tentação da objetividade, não deixando margem para o recuo teorético e aprisionando todas as suas energias intelectuais num circuito fechado de autopersuasão retórica. Trata-se de neutralizar a inteligência humana, colocando-a no encalço de metas utópicas que, pela dialética infernal que transfigura cada derrota em sinal da vitória próxima, a absorverão tanto mais completamente quanto mais os resultados obtidos no esforço forem cair longe das finalidades sonhadas. É somente isto que explica o fenômeno de milhares de intelectuais se recusarem, durante quase um século, a enxergar os males do comunismo, ou, depois da queda do Muro de Berlim, a reconhecer qualquer conexão entre esses males e o ideal socialista. Não é realmente o efeito de um singular escotoma que a intelectualidade esquerdista veja em todo movimento de direita, mesmo tímido, a marca de um ressurgimento nazifascista, e de outro lado possa crer que o ideal socialista emergiu do Gulag isento de toda mácula? Não é uma estranha morbidade que a ideologia que reduz a ação dos indivíduos a mera expressão das correntes ideológicas profundas explique as sessenta milhões de vítimas de Stálin como resultado da maldade fortuita de um só homem, sem qualquer raiz na ideologia por ele professada? Que os defensores intransigentes do conceito da sociedade como um todo substancial, como bloco orgânico onde se fundem inseparadamente ideologia e prática, expliquem os crimes do governo soviético como desvios acidentais totalmente alheios à ideologia marxista? Não é mesmo demente a obstinação de manter a imagem de Karl Marx — ou mesmo a de Lênin — limpa de todo contágio com os crimes da ditadura soviética, quando nem mesmo Jesus Cristo deixou de ser responsabilizado pelas crueldades da Inquisição? Não é estranho que após tudo o que se revelou sobre a tirania comunista o socialismo ainda continue a ser um ideal respeitável, quando crimes de muito menor escala bastaram para manchar de sangue para sempre a imagem do fascismo italiano, do franquismo ou das ditaduras latino-americanas? Não é enfim uma anomalia intelectual que aquela filosofia que mais enfatizou o arraigamento histórico-social dos conceitos abstratos — condenando como “metafísica” toda admissão de essências a-históricas ou supra-históricas — apresente agora o socialismo como essência pura incontaminada por um século de experiência comunista? Como explicar a cegueira obstinada de filósofos, de intelectuais, de artistas, entre os mais notáveis do século, se não pela formidável potência ilusionista inerente à raiz mesma do marxismo, pela sua capacidade quase diabólica de transfigurar o quadro das aparências e levar as pessoas a verem as coisas diferentes do que são?

Que Marx tivesse, pessoalmente, um tremendo senso do teatro, do fingimento, da prestidigitação, é coisa que os biógrafos já estabeleceram com certeza suficiente4. Mas isto não bastaria para dar à sua filosofia tamanho poder de ludibriar as consciências. Quando, no entanto, notamos que o primeiro interesse acadêmico do jovem Marx foi devotado ao estudo do príncipe dos ilusionistas filosóficos, e em seguida constatamos ser idêntica, em Epicuro e nele, a mixórdia proposital e alucinógena da teoria na prática e da prática na teoria, então compreendemos a virulência inesgotável da herança epicurista, capaz de atravessar os milênios e ressurgir a cada novo empenho cíclico de instaurar em alguma parte do mundo o reinado da impostura.

 

  • 17.Comentários à 11ª “Tese sobre Feuerbach”

        Antes que te derribe, olmo del Duero,
con su hacha el leñador, y el carpintero
te convierta en melena de campaña,
lanza de carro o yugo de carreta;
antes que rojo en el hogar, mañana,
ardas de alguna mísera caseta,
al borde de un camino;
antes que te descuaje un torbellino
y tronche el soplo de las sierras blancas;
antes que el río hasta la mar te empuje
por valles y barrancas,
olmo, quiero anotar en mi cartera
la gracia de tu rama verdecida.
Mi corazón espera
también, hacia la luz y hacia la vida,
otro milagro de la primavera.

ANTONIO MACHADO, “A un olmo seco”
Posso explicar melhor e dar um fundamento mais “técnico” ao que foi dito no parágrafo anterior. O leitor que preferir saltar direto para o § 18 não perderá o fio do argumento, apenas se privará de uma demonstração mais rigorosa — e mais entediante.

“Até agora — diz a 11ª Tese5 — os filósofos se limitaram a interpretar o mundo. Cabe-lhes agora transformá-lo.”

  1. A quem se dirige a convocação? Se Marx se reporta, nesta tese, aos conceitos tradicionais de theoriae de praxis, temos de admitir que de fato os filósofos, desde sempre, se ocuparam de interpretar o mundo, de fazer teoria, porque julgavam que esta era a sua tarefa específica, que os distinguia dos outros homens, ocupados por seu turno com a praxis. Os filósofos interpretavam o mundo, enquanto os demais homens o transformavam. A maioria dos homens esteve sempre envolvida com a praxis, e desinteressada da theoria, da contemplação da verdade. Ao adotarem a atitude inversa à da maioria, os filósofos faziam um contrapeso dialético à praxis: a vida contemplativa opunha-se à vida ativa. Ora, se os homens não-filósofos estiveram desde sempre ocupados em transformar o mundo enquanto o filósofo o contemplava e interpretava, que sentido teria convocá-los a uma praxisna qual já estão envolvidos por hábito imemorial, e da qual jamais pensaram em sair? Não pode ser este o sentido da tese de Marx. Sua convocação não se dirige aos homens em geral, tomados indistintamente, nem muito menos aos homens da praxis, mas especificamente aos filósofos. São eles que estiveram ocupados somente em interpretar o mundo. Portanto, é a eles que cabe convocar a uma mudança de atitude. A 11ª Tese sobre Feuerbach propõe, essencialmente, uma mudança básica na atividade do filósofo enquanto tal. Não se trata de inaugurar só uma nova praxis, mas um novo tipo de theoria, que por sua vez consistirá em praxis.
  2. Para saber em que consiste essa mudança, precisamos entender qual a atitude que a antecedeu. Em que consiste a atitude interpretativa, que Marx opõe à atitude transformante? Sendo theoriapraxis conceitos clássicos da filosofia grega, é a esta última que devemos reportar-nos. (É verdade que o termopraxistem em Marx, ou pretende ter, uma acepção própria e diferente, mas isto não vem ao caso, pois, se os filósofos antigos a que Marx visa faziam theoria em oposição à praxis, não podemos supor que tivessem em mente o sentido marxista da palavra praxis, e sim o sentido grego).

Na filosofia grega, a palavra theoria tinha uma acepção precisa. Era correlata das noções de logos (“razão” ou “linguagem”), de eidos (“idéia” ou “essência”), de ón (“ser”, “ente”) e de aletheia(“patência”, “desvelamento”, revelação da verdade oculta).

O homem teorético, o filósofo, não se ocupava genericamente de contemplar, de olhar, num sentido em que os demais homens também podiam contemplar e olhar. Por exemplo, todos os homens contemplavam os espetáculos de teatro, a beleza dos seres humanos e da paisagem etc. A contemplação do homem comum podia ser lúdica, estética, utilitária ou o que quer que fosse. A do filósofo, não. Era um tipo muito determinado de contemplação, com um motivo específico e um objetivo específico, que faziam dela, propriamente, uma contemplação filosófica e não outra qualquer. O filósofo contemplava as coisas para captar a sua essência (eidos), patenteando (aletheia) o seu verdadeiro ser (ón); em seguida o filósofo dizia (logos) o que era essa coisa, patenteando em palavras (aletheia) o verdadeiro ser (ón) que estava oculto.

Dito de outro modo, as coisas, os fenômenos, eram para o filósofo signos, que ele decifrava em busca do significado ou essência. Entre o signo e o significado, a chave interpretativa era a razão ou logos. Pela razão, o homem filósofo saltava de um plano para o outro: do plano da fenomenalidade instável, movediça, enganosa, para o plano das essências, do ser verdadeiro. Este plano era considerado superior, por abranger e ultrapassar o mundo dos fenômenos (ele contém todos os fenômenos manifestos, e mais um sem-número de essências não manifestadas ou possibilidades), e também por ser estável, imutável, eterno. Esta postura se tornou mais clara e autoconsciente a partir do platonismo, porém já era a dos eleáticos. Em suma, ela se baseia na crença de que todos fatos e todos os entes são fenômenos — “aparecimentos” — de alguma coisa: são exteriorizações ou exemplificações das essências ou possibilidades, contidas eternamente na Inteligência Divina. O filósofo grego contemplava as coisas, portanto, sub specie æternitatis, isto é, na categoria da eternidade, à luz da eternidade; buscava nelas a sua significação eterna, superior à aparência fenomênica e transitória. Esta contemplação conferia a essas coisas, portanto, uma dignidade e uma realidade superiores, uma consistência ontológica superior. Pouco importa, para os fins desta análise, a diferença entre platonismo e aristotelismo. Para Platão, as essências constituíam um mundo separado, transcendente; para Aristóteles, o núcleo inteligível era imanente ao mundo sensível; mas em ambos os casos tratava-se de passar da fenomenalidade imediata a um estrato mais profundo e permanente.

A interpretação (hermeneia) das aparências consistia nessa subida de nível ontológico, desde o ente fenomênico até o ser essencial. O termo hermeneia deriva do nome do deus Hermes, ou Mercúrio, o deus psicopompo, isto é, “guia das almas”, encarregado de levá-las na escalada e descida através dos mundos ou planos de realidade, do sensível ao inteligível, do particular, transitório e aparente ao universal e estável. Nisto consistia, basicamente, a postura interpretativa do filósofo grego.

  1. Qual a diferença essencial entre a atitude contemplativa — ou interpretativa — e a atitude transformante, isto é, entre a theoriae a praxis?

3.1. A theoria, ao elevar o objeto até o nível da sua idéia, essência ou arquétipo, capta o esquema de possibilidades do qual esse objeto é a manifestação particular e concreta. Por exemplo, o arquétipo de “cavalo”, a possibilidade “cavalo”, pode manifestar-se em cavalos pretos ou malhados, árabes, percherões ou mangalargas, de sela ou de trabalho etc. Pode manifestar-se em prosaicos cavalos de carroças ou em cavalos célebres e quase personalizados como o cavalo de Alexandre . Pode manifestar-se em seres míticos que “participam da cavalidade”, como o pégaso ou o unicórnio, cada qual, por sua vez, contendo um feixe de significações e intenções simbólicas. Enfim, a razão, ao investigar o ser do objeto, eleva este último até o seu núcleo superior de possibilidades, resgatando-o da sua acidentalidade empírica e restituindo, por assim dizer, seu sentido “eterno”. A conseqüência “prática” disto é portentosa. Ao conhecer um arquétipo, sei não apenas o que a coisa é atualmente e empiricamente, mas tudo o que ela poderia ser, toda a latência de possibilidades que ela pode manifestar e que se insinua por trás da sua manifestação singular, localizada no espaço e no tempo.

praxis, ao contrário, transforma a coisa, isto é, atualiza uma dessas possibilidades, excluindo imediatamente todas as demais. Por exemplo, uma árvore. Se investigo o objeto “árvore” para captar o seu arquétipo, tomo consciência do que ela é, do que poderia ser, do que ela pode significar para mim, para outros, em outros planos de realidade etc. Porém, se a transformo em cadeira, ela já não pode transformar-se em mesa ou estante, e muito menos em árvore. De cadeira, ela só pode agora transformar-se em cadeira velha, e depois em lixo.

3.2. Para o filósofo, portanto, o fenômeno, a aparência sensível imediata é sobretudo um signo ou símbolo de um ser. Para o homem da praxis, a aparência é sempre matéria-prima das transformações desejadas. A investigação teórica insere o ser no corpo da possibilidade que o contém, e o explica e integra no sentido total da realidade. A praxis, ao contrário, limita suas possibilidades, realizando uma delas, sem via de retorno. Para a theoria, o ente é sobretudo a sua forma, no sentido aristotélico, isto é, aquilo que faz com que ele seja o que é; para a praxis, o ente é sobretudo matéria, isto é, aquilo que faz com que ele possa tornar-se outra coisa que não aquilo que é. Não se deve confundir esta oposição com a do “estático” e a do “dinâmico”, porque o dinamismo interno faz parte da forma (por exemplo, a forma da semente é a planta completa em que ela tem o dom de se transformar). Mais certo é dizer que a theoria se interessa pelo que um ente é em si e por si, e a praxis se interessa pelo que ele não é, pelo ser secundário, às vezes pelo falso ser ou arremedo de ser que podemos fabricar com ele. Era neste sentido que as escrituras hindus negavam que a ação pudesse trazer conhecimento, de qualquer espécie que fosse. A ação produz apenas transformação, fluxo de impressões, ilusão, da qual saímos apenas pelo recuo reflexivo posterior, pela “negação” teorética e crítica da ação consumada: o espírito filosófico, potência latente no homo sapiens, só se atualiza como reflexão sobre as desilusões do homo faber6.

3.3. Se a praxis requer alguma teoria, esta teoria já não versará sobre a natureza do ser, não tentará investigar o que o ser é no corpo da realidade total, mas apenas aquilo em que ele pode se transformar no instante seguinte, não por seu dinamismo próprio e interno, mas por força da intervenção humana. Já não será uma teoria do objeto, mas uma teoria da ação que ele pode sofrer. Não é uma teoria do ser, mas uma teoria da praxis. Como a praxis é sempre ação humana, então todo objeto será sempre e unicamente enfocado sob a categoria da paixão, isto é, das ações transformadoras que pode sofrer. Já não interessa o que é o cavalo ou a árvore no sistema total da realidade, mas sim o que, dentro do círculo de meus interesses imediatos, posso fazer com o cavalo ou com a árvore, independentemente do que eles sejam. Por exemplo, posso queimar a árvore ou comer a carne do cavalo: se a teoria respeitava sobretudo a integridade ontológica e mesmo física do objeto, a praxis começa por negá-la, isto é, por não admitir que o objeto seja o que é e por exigir que ele se transforme em outra coisa: não interpreta, mas transforma.

3.4. Não se trata aqui, evidentemente, de condenar a praxis em nome de uma utópica vida contemplativa, mas somente de restaurar o senso de uma hierarquia de valores que parece ser inerente à estrutura do indivíduo humano são. A prática, que transforma, se dirige essencialmente aos meios: como toda transformação visa a um resultado ou fim, o objeto sobre o qual incide é sempre e necessariamente um meio, apenas um meio. É um meio ou instrumento a terra que o homem lavra, é um meio ou instrumento o carneiro que ele engorda e mata, é um meio ou instrumento a árvore que ele abate. É meio ou instrumento o trabalho, como também o capital. Aquilo que é meio ou instrumento nada importa nem vale por si, mas por alguma outra coisa: o meio ou instrumento é um intermediário, uma transição ou passagem, aquilo que num certo ponto do caminho será abandonado para ceder lugar aos fins. A tendência universal do homem à economia de esforço mostra a sujeição dos meios aos fins.

Inversamente, aquilo que é finalidade ou valor em si não é objeto de praxis transformadora, mas de contemplação, de amor. Como dizia Miguel de Unamuno, “o bonde é útil porque me serve para levar-me à casa da minha amada; mas esta para que me serve?”. Posso, é claro, rebaixá-la a um meio ou instrumento do meu prazer, mas neste caso já não tenho amor por ela, e sim pelo prazer como tal7. O objeto amado, se o é de verdade, não é meio, mas fim. Não desejamos mudá-lo, transformá-lo, utilizá-lo para alguma outra coisa, e sim desfrutar de sua presença sem alterá-la, sem mudá-la no que quer que seja8. Ao contrário, ao contemplar e amar somos nós que nos transformamos: “Transforma-se o amador na coisa amada.”

Há, portanto, aspectos da realidade que só podem ser conhecidos pela praxis, outros que só o podem pela theoria. Mas a praxis procede necessariamente pela negação do objeto, pela sua redução a meio e instrumento, e a theoria pela afirmação da sua plenitude e do seu valor como fim. É evidente, então, que:

3.4.1. Há uma diferente dosagem na combinação do teórico e do prático para o conhecimento dos vários tipos de seres: aquilo que para mim é meio e instrumento, só posso conhecê-lo ao usá-lo; aquilo que para mim é finalidade e valor em si, conheço-o na medida em que o contemplo, em que o amo, em que defendo a sua integridade ontológica contra qualquer tentativa de transformá-lo em outra coisa. Van Gogh conheceu pincéis e tintas na medida em que os usou e, usando, gastou. Mas conheço os quadros de Van Gogh na medida em que sejam conservados intactos para minha contemplação.

3.4.2. Não existe, no mundo dos seres físicos, nem praxis pura nem pura contemplação. Há apenas dosagens, segundo a escalaridade do valor dos fins e da oportunidade dos meios. Só a finalidade suprema pode ser objeto de pura contemplação. Somente o objeto totalmente desprezível, sem consistência ontológica própria nem qualquer valor em si pode ser alvo de pura praxis. Ambos esses limites são metafísicos, e jamais alcançados no mundo da experiência real.

3.4.3. No entanto, há uma nítida distinção hierárquica: a contemplação, como objetivo e finalidade, tem primazia sobre a prática, que no fim das contas não serve senão para afastar os obstáculos que nos separam do gozo contemplativo. O homem não transforma o que lhe agrada, mas o que lhe desagrada: ele entrega-se à contemplação por gosto, à prática por necessidade (sem contar, é claro, que na prática mesma há um elemento lúdico e contemplativo, que torna o trabalho agradável em si e lhe dá um valor independente do seu proveito prático).

3.4.4. De tudo isso, conclui-se que estatuir a prática como fundamento e valor supremo do conhecimento é instaurar o reinado dos meios, desprezando os fins; é inverter o sentido de toda ação humana e negar a consistência ontológica da realidade. É encarar o real no seu todo — nele incluídos o homem e sua História, bem como o conjunto das ações individuais praticadas pelos seres humanos — como um vasto instrumento sem qualquer finalidade. É transformar o universo numa imensa máquina-de-desentortar-bananas.

Eis aí, já em Marx, a raiz da nietzscheização da esquerda, em que muitos teóricos, escandalizados, verão uma traição ao marxismo. A filosofia da praxis contém em seu bojo, oculta mas nem por isto menos potente, a negação do sentido da realidade, a apologia do absurdo. É óbvio que se trata de uma herança epicurista inconsciente, que veio a ser resgatada quando, após a crise mundial do marxismo, a intelectualidade de esquerda se entregou maciçamente a uma espécie de pseudo-heroismo dononsense, orgulhando-se de continuar a defender ideais sociais que, num mundo sem sentido, só podem consistir numa afirmação nietzscheana da vontade de poder, num clinamengratuito e arbitrário que o homem, por pedantismo ou desenfado, opõe ao arbitrário e gratuito clinamen dos átomos9. O materialista durão pretende ser um Clint Eastwood da filosofia, impávido no alto da sela, olhando com a maior indiferença os movimentos randômicos dos átomos na planície e desprezando o choro dos fracotes que necessitam de um sentido para a vida. O cavaleiro solitário no deserto do absurdo sintetiza Marx, Nietzsche e Epicuro.

3.5. Há um curioso paralelismo entre as noções de objeto-da-teoria e objeto-da-práxis, por um lado, e, por outro, valor-de-uso e valor-de-troca. O valor de uso é, de certo modo, uma propriedade, uma qualidade qualquer inerente ao objeto, faz parte da sua consistência ontológica; ao passo que o valor de troca é acidental, como o afirma o próprio Marx: depende de circunstâncias históricas que nada têm a ver com a natureza do objeto. Uma das censuras morais que o marxismo dirige ao capitalismo é que nele o valor de troca acaba por devorar o valor de uso até fazê-lo desaparecer, até fazer com que todos os objetos já não existam senão como “mercadorias”, segundo a boutade célebre de Bertolt Brecht: “Não sei o que é. Só sei quanto custa. ” É o mesmo que dizer que o capitalismo absorve a categoria da substância na categoria da paixão. Se o capitalismo faz realmente isto ou se se trata apenas de uma figura de retórica, de uma hipérbole, é algo que cabe investigar. Mas que na filosofia de Karl Marx essa inversão ocorre, é coisa óbvia. Só neste caso a censura lançada por Marx ao capitalismo perde valor objetivo, reduzindo-se a mera projeção: Marx censura no capitalismo um defeito que não está necessariamente no capitalismo, mas que está nos esquemas mentais subconscientes ou inconscientes do próprio Karl Marx.

3.6. Sendo teoria da ação, e não do objeto, a praxis não reconhecerá, no objeto, outro aspecto senão o da sua transformabilidade imediata. Sem saber o que é árvore, posso no entanto utilizar a madeira para fazer uma mesa ou estante. A praxis, enfim, recusará ao mundo, aos fenômenos, uma consistência ontológica própria, conhecível pelo homem: ela fluidificará todas as essências individuais em matéria-prima da praxis e resultará, enfim, num novo e mais radical tipo de idealismo subjetivo: o mundo objetivo nada é senão o cenário da praxis. A teoria nada dirá sobre os objetos tais e quais são, mas apenas tais e quais podem vir a ser sob a ação do martelo e da forja. Seria interessante averiguar como é possível conciliar isto com o alegado “materialismo” marxista; pois o marxismo se revela antes um idealismo subjetivista, no sentido estrito e quase fichteano, com a única diferença de que tem como sujeito não o indivíduo, mas a humanidade histórica, diante de cujapraxis o universo natural — a “matéria” — perde toda substancialidade para se reduzir a mera matéria-prima da ação humana, rebaixando-se a natureza ao estatuto de ancilla industriae. É este seu caráter de idealismo subjetivista coletivo que dá ao marxismo o seu tremendo poder ilusionista que embriaga e perverte, e da qual mesmo homens de elevada inteligência às vezes se deixam contaminar.

Quando, porém, considero como é estreita a faixa do universo material alcançada pela ação humana (apenas a superfície da Terra, e mesmo assim não inteira), e ilimitada a extensão de mundos celestes que não podemos transformar e só podemos contemplar, então pergunto se a teoria da praxis não é uma monstruosa ampliação universalizante de um fenômeno local e terrestre — coletivamente subjetivo —, e se ante a imensidão do cosmos a atitude “teórica” não é a mais sensata.

Da teoria da praxis provém ainda a idéia — hoje quase um dogma — de que a ciência surge a posteriori de uma racionalização da técnica, isto é, da ação: o homem não cria a ciência mediante a contemplação, mas mediante a manipulação dos objetos e sua transformação em outra coisa. Restaria então explicar como, em quase todas as civilizações, uma das ciências que primeiro se desenvolve e alcança rapidamente a perfeição é sempre justamente a astronomia, cujos objetos estão a uma distância demasiado grande para poderem ser “transformados”, e que por isto o homem pode somente contemplar. (Um praticista fanático poderia objetar que a astronomia se desenvolveu com fins de navegação, mas é bobagem pura, porque uma astronomia requintada já se encontra entre povos que de navegantes não tinham nada, como por exemplo os maias.) Esta prioridade cronológica e estrutural da astronomia é ressaltada por Platão10, que vê a explicação para a origem de todas as ciências na contemplação da regularidade e racionalidade dos movimentos dos astros. A explicação marxista, por seu lado, só se mantém de pé mediante uma brutal falsificação da ordem cronológica. Para que ela adquirisse alguma verossimilhança aos olhos dos homens foi preciso que primeiro a sociedade burguesa reduzisse a serva da técnica e da utilidade prática uma atividade intelectual na qual por milênios seus praticantes tinham visto uma finalidade em si mesma. A interpretação praticista da origem e significado da ciência é uma grosseira projeção que o burguês faz dos seus próprios critérios e valores sobre a mentalidade das épocas anteriores, que para ele se tornaram incompreensíveis11.

NOTAS

  1. A supressão do conhecimento objetivo não é, em Marx, um objetivo declarado, mas uma conseqüência inevitável do conceito marxista da natureza. A natureza para Marx só tem existência como cenário da história ou como matéria branda e plástica a ser moldada pela ação humana. , adiante, § 17.
  2. meus livros A Nova Era e a Revolução Cultural. Fritjof Capra & Antônio Gramsci, Caps. II e III, e O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras, Caps. 2-5.
  3. Sobre a contaminação irracionalista do marxismo no curso da sua evolução (não na sua raiz, como a de falo aqui), v. José Guilherme Merquior, O Marxismo Ocidental, trad. Raul de Sá Barbosa, Rio, Nova Fronteira, 1987, e também Allan Bloom, O Declínio da Cultura Ocidental. Da Crise da Universidade à Crise da Sociedade, trad. brasileira, São Paulo, Best Seller, 1989. Merquior mostra que os elementos românticos e irracionais eram fortes no pensamento do próprio Lukács. No mesmo sentido, mas com ênfase positiva, argumenta Michel Löwy, Romantismo e Messianismo. Ensaios sobre Lukács e Benjamin, trad. Myrian Veras Baptista e Magdalena Pizante Baptista, São Paulo, Edusp/Perspectiva, 1990.
  4. Edmund Wilson, Rumo à Estação Finlândia, e Paul Johnson, Os Intelectuais.
  5. Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert, es kommt darauf an sie zu verändern” — frase do manuscrito reproduzido em fac-símile em The German Ideology, trad. Ryazanskaya, Moscow, Progress Publishers, 1964. O verbo verändernvem da raiz ander = “outro”, de modo que a tradução mais exata seria “alterá-lo”. Mas a alteração, na medida em que deixa de ser uma simples propriedade ou um acidente da substância, é na verdade uma substituição; e, na medida em que o mundo real não pode realmente ser substituído por outro, a substituição se dá apenas dentro da esfera do imaginário coletivo, mediante uma súbita mutação ou rotação do quadro perceptivo (um snapping, diriam Conway e Siegelman. Daí a invulnerabilidade do marxista convicto à argumentação racional. Ele não apenas pensa diferente do não-marxista: ele percebe o mundo sob categorias diferentes, como o doente histérico para o qual imaginar é sentir. V. A Nova Era e a Revolução Cultural, Cap. III, item 3. Mas isto também significa que abjurar expressamente do marxismo não é o mesmo que libertar-se instantaneamente de sua influência, assim como tomar consciência de uma neurose não é o mesmo que estar curado. Marxisme pas mort: ele subsiste como um complexo no subconsciente dos que o rejeitaram sem criticá-lo a fundo. No meu ensaio “A superioridade moral das esquerdas, ou: o rabo e o cachorro”, reproduzido em O Imbecil Coletivo, esboço uma psicanálise do marxismo residual de nossos intelectuais.
  6. Éric Weil, Logique de la Philosophie, Paris, Vrin, 2e éd., 1967, “Introduction”.
  7. Subjugação, manipulação e uso de seres humanos (ou de animais) com vistas ao prazer erótico — esta é a definição mesma do libertinismo (Sade, Choderlos de Laclos et caterva), no qual no entanto alguns profissionais da cegueira, como o sr. Adauto Novaes — herdeiro da flama apagada de Motta Pessanha — crêem enxergar um papel libertador. V. Adauto Novaes, “Por que tanta libertinagem?”, texto de abertura do simpósio Libertinos/Libertários, Rio, Funarte, 1995 — um exemplo edificante de como o culto pedantesco de autores menores pode coexistir num mesmo cérebro com uma profunda ignorância da História da Filosofia, bem como da História tout court.
  8. Olavo de Carvalho, Da Contemplação Amorosa. Capítulos de uma Autobiografia Interior(apostila), Rio, IAL, 1995.
  9. A elevada taxa de intelectuais pedantes e de ricaços esteticistas nas fileiras da esquerda — um fenômeno universalmente conhecido — não deve, portanto, ser mera coincidência, e muito menos uma contradição, mas sim a manifestação perfeita do espírito da coisa: lutar por “uma sociedade justa” é o diletantismo ético daqueles que não acreditam em ética nenhuma exceto como convenção arbitrária, mito ideológico ou expediente tático. Daí a vaidosa inversão que, desprezando a obediência a valores morais explícitos, louva quase como a um santo o homem que age bem segundo uma ética em que não crê, afirmando na prática o que nega na teoria: a bondade acidental e diletante do imoralista parece envolta no encanto de uma gratuidade divina, negado àqueles que simplesmente e humanamente fazem o que lhes parece certo conforme uma regra moral. Daí também a facilidade com que essa gente produz sucedâneos de justificação “ética” para os crimes e as perversidades cometidos em razão do seu “ideal”: pois este tem a perfeição estética de uma forma arbitrária concebida pela mente, e não se deixa contaminar pelas exigências da autoconsciência moral, atenta ao jogo dos pretextos e dos atos. Sobre o esteticismo como fonte das doutrinas políticas modernas, v. o ensaio magistral — e injustamente esquecido — de Otto Maria Carpeaux sobre Maquiavel em A Cinza do Purgatório, Rio, Casa do Estudante do Brasil, 1942; sobre o esteticismo como ideologia dominante nas classes letradas brasileiras, v. o não menos notável e não menos esquecido livro de Mário Vieira de Mello, Desenvolvimento e Cultura. O Problema do Esteticismo no Brasil, São Paulo, Nacional, 1958.
  10. Timeu, 47c.
  11. Sobre o sentido puramente contemplativo da atividade intelectual na Idade Média, v. a tese valiosíssima de Antônio Donato Paulo Rosa, A Educação segundo a Filosofia Perene, apresentada à Faculdade de Educação da USP em 1993 (tese datilografada). Sobre a incapacidade do burguês — liberal e socialista — de compreender isso, v. Kenneth Minogue, O Conceito de Universidade, trad. Jorge Eira Garcia Vieira, Brasília, UnB, 1981.

 

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