Trechos de livros

Os filodoxos perante a História (A filosofia e seu inverso – III)

Olavo de Carvalho

17 de abril de 2012

I. A filosofia e seu inverso
II. De Sócrates a Júlio Lemos
III. Os filodoxos perante a HistóriaEntre os títulos que conferem a seus estudantes, as universidades brasileiras deveriam ter o de Ph. D. na ciência de não entender nada.

Em nota publicada no site Ad Hominem, o sr. Joel Pinheiro, comentando o meu artigo “A filosofia e seu inverso II” e concordando comigo em que não existe filosofia sem implicações morais e existenciais, dedica-se em seguida a refutar a idéia, que ele atribui a mim, de que “o escolasticismo medieval já era um período de decadência filosófica se comparado à educação dada nas escolas de catedral, que consistia no exemplo e no carisma do mestre e era veiculada por meio de doutrinas não-escritas, passadas primariamente pela convivência e ao se assistir o mestre filosofando in loco”.[1]

Contra essa idéia, ele alega que “esse tipo de educação moral e preparação espiritual, embora muito louvável, não é propriamente filosofia. Ela não pode questionar suas próprias bases, e nem debater a sério, pois sua finalidade de formar um certo tipo de homem virtuoso já está dada de antemão; e portanto não resultará em grandes filósofos”.

Prossegue ele: “A relação carismática, ou mesmo iniciática,[2] entre mestre e pupilo não substitui o debate racional. É ridículo e ingênuo imaginar que ‘sábios’ semi-anônimos do século XII que não deixaram obra escrita tivessem pensamento superior ao dos grandes escolásticos. Os poucos registros escritos que sobraram deles mostram que, muito pelo contrário, seus pensamentos eram muito mais conservadores e convencionais, ainda que belos e nobres.”

I

Antes de averiguar se o sr. Pinheiro tem ou não razão nessas coisas,[3] é preciso notar que elas não têm nada a ver com o que eu disse no artigo que ele imagina estar refutando. O que ali coloquei em discussão não foi a qualidade da “filosofia propriamente dita” (no sentido que o sr. Pinheiro dá a esta expressão) que se produziu nas escolas dos séculos X a XII e da que se veio a produzir em seguida nas universidades. Foram, em vez disso, as concepções educacionais do Cardeal Newman, o posto que nelas ele atribuia à filosofia e, por isso mesmo, a interpretação falsa que o sr. Júlio Lemos dera às palavras do Cardeal. O sr. Lemos afirmava que o ensino da filosofia não deve ter objetivos morais, e, por inépcia ou safadeza, citava em favor dessa opinião um trecho em que Newman dizia precisamente o contrário.

Na segunda parte do artigo, analiso um pouco aquelas concepções em si mesmas, assinalando que me pareciam falhar porque esperavam da instituição universitária precisamente aquele resultado que o advento dela tinha tornado inviável: a formação gentil-homem, marcado pelas virtudes de “um intelecto cultivado, um gosto delicado, uma mente cândida, equitativa e desapaixonada, uma conduta nobre e cortês” (a cultivated intellect, a delicate taste, a candid, equitable, dispassionate mind, a noble and courteous bearing in the conduct of life). Esse resultado era precisamente o que haviam alcançado, com grande sucesso, as escolas catedrais e monacais dos séculos X a XII, fazendo um contraste chocante com o que veio em seguida, a atmosfera de carreirismo, pedantismo, corrupção e violência política que imperou nas universidades do século XIII em diante. Na mesma medida em que os alunos das escolas catedrais e monacais chegaram, pelo brilho das suas virtudes, a ser conhecidos popularmente como “a inveja dos anjos”, o típico estudante universitário que lhe sucedeu tinha antes a fama de presunçoso, beberrão e arruaceiro, sendo célebre a hostilidade dos habitantes das cidades à horda de estrangeiros arrogantes que ali desembarcavam imunizados contra as leis locais por toda sorte de privilégios corporativos.

O Cardeal Newman, contra o sr. Júlio Lemos, tinha toda a razão em afirmar que o estudo da filosofia podia e devia contribuir para a formação moral dos estudantes, como o fizera nas escolas catedrais e monacais, mas também era verdade que a filosofia havia começado a fracassar nesse objetivo desde o momento mesmo em que se constituíra como profissão universitária e meio de ascensão social. Se essa trajetória de decadência humana veio acompanhada de prodigiosos aperfeiçoamentos da técnica lógico-dialética e da abertura de novos espaços de livre discussão, propiciando assim o advento das grandes realizações intelectuais da escolástica, isso mostra, com toda a evidência, que esses avanços, em vez de somar-se às conquistas das escolas catedrais em matéria de educação moral, a elas se substituíram e acabaram por preencher todo o espaço da atividade educacional superior. Não foi a primeira nem a última vez na História que a degradação moral fez contraste com o progresso intelectual. O apogeu mesmo da filosofia na Grécia, com Sócrates, Platão e Aristóteles, só aconteceu quando já iam longe os belos dias de Péricles e a polis afundava na roubalheira e na violência. Na Viena dos anos 20-30 do século XX, o florescimento espetacular da filosofia e das ciências humanas coincidiu com a debilitação do império romântico dos Habsburgos, sacudido pela agitação comunista e nazista e roído desde dentro pela corrupção dos políticos. Nenhum desses exemplos é motivo para negar que seria melhor a moralidade e a cultura do intelecto superior progredirem juntas, mas eles mostram que isso não acontece facilmente.

Em nenhum momento coloquei em discussão a filosofia escolástica enquanto tal, que o sr. Pinheiro se empenha em defender contra quem não a atacou. Lembro-me de haver-me referido a ela como “monumentos de exposição escrita”, o que não é uma expressão nada pejorativa, e até de haver assinalado que o Cardeal Newman, ao referir-se negativamente a filósofos do passado, não dissera “nem uma palavra sobre (muito menos contra) a filosofia cristã de Sto. Tomás, de S. Boaventura, de Duns Scot”. De que raio de coisa, pois, está falando o sr. Pinheiro? De algo que ele pensou ter lido, mas não leu. Inventou. Uns vinte anos o educador Cláudio de Moura Castro já advertia que no Brasil ninguém lê o que os autores escrevem: lê o que imagina que eles pensaram, o que gostaria que eles tivessem pensado, seja para aplaudi-los, seja para depreciá-los. Tal como o célebre inglês da anedota, o leitor brasileiro, nesse ínterim, não mudou em nada.[4]

O que confundiu a cabeça do sr. Pinheiro foi ter lido o meu artigo à luz da crença rotineira de que a grande filosofia do século XIII foi um fruto natural da universidade. Vistas as coisas por esse ângulo, daí decorrem duas conseqüências. Primeira: o sr. Pinheiro acaba entendendo a minha crítica às universidades medievais como se implicasse uma depreciação da filosofia escolástica, o que só acontece na sua imaginação. Segunda: dessa confusão ele é levado, como em ricochete, a proclamar que as realizações notáveis da escolástica só não apareceram mais cedo porque nas escolas catedrais e monacais vigorava um modelo pronto de homem virtuoso, do qual não podiam resultar grandes filósofos. Foi só quando aquele modelo se dissolveu na “livre discussão” que uma “filosofia propriamente dita” pôde florescer. Ele diz isso com toda a franqueza.

São erros, naturalmente, mas pelos quais sou muito grato, porque me permitem levar a discussão para além das mancadas do sr. Júlio Lemos que constituíam o seu assunto inicial, e explicar-me sobre pontos incomparavelmente mais importantes.

Desde logo, a imagem que hoje temos do esplendor escolástico é construída com base nuns quantos poucos nomes, especialmente Sto. Alberto, Sto. Tomás, S. Boaventura e Duns Scot. Se os apagássemos dos registros, o escolasticismo não teria passado de um episódio curioso na história da educação. E esses não são nomes só de filósofos, mas de Doutores da Igreja: três santos canonizados e um bem-aventurado. Não existe o menor motivo para supor que na vida pessoal esses homens tivessem uma conduta mais frouxa, menos estrita, menos perfeita que a do “modelo pronto” que os anjos invejavam. Não vejo em que a dissolução do modelo pela “discussão racional” poderia ter contribuído nem para a sua santidade, nem para o fortalecimento do tipo especial de inteligência ao mesmo tempo filosófica e mística que os caracteriza, aquele não cresce fora e independentemente da graça santificante, mas decorre dela como um dom especial do Espírito.

Também é ingenuidade supor que essas encarnações máximas do gênio escolástico fossem produtos típicos do novo meio acadêmico, no qual, bem ao contrário, não se ajustaram confortavelmente jamais. Sua inteligência, sua rígida idoneidade, sua compreensão superior dos mistérios da fé e, last not least, sua coragem intelectual faziam desses quatro mestres os alvos preferenciais das invejas, mesquinharias e maledicências de seus colegas.

Alberto pulou como um cabrito para que a congregação engolisse, de má vontade, suas teorias aristotélicas sobre o mundo físico. Boaventura sofreu ataques medonhos de Guilherme de Saint-Amour, um potentado universitário da época, no curso de uma campanha sórdida movida pelo clero secular contra os Frades Mendicantes. Quem o defendeu foi Tomás, que depois, também graças a intrigas de acadêmicos, foi por seu turno denunciado como herético duas vezes (uma delas depois de morto). Duns Scot foi expulso da universidade e teve de fugir de cidade em cidade, ameaçado de morte, por defender doutrinas impopulares e tomar o partido do Papa na disputa com o poder real, hegemônico entre os intelectuais na ocasião. Só cinco séculos depois da sua morte ele foi retirado da lista dos indesejáveis, quando sua grande doutrina da Imaculada Concepção de Maria foi finalmente aceita e se tornou dogma da Igreja. Sua beatificação só veio ainda um século depois disso, em 1993.

No mínimo, no mínimo, o sr. Pinheiro, ao enaltecer as vitórias intelectuais da escolástica acima das virtudes “meramente morais” do monaquismo que a antecedeu, deveria ter tido a prudência de notar que os quatro autores maiores daquelas vitórias, aqueles que acabo de mencionar, não podiam de maneira alguma ser universitários típicos, pelo simples fato de que não eram membros do clero secular que dominava as universidades, e sim, bem ao contrário, vieram das ordens monásticas, nas quais se conservava ainda a disciplina moral das velhas escolas. O contraste entre as mentalidades desses dois grupos era tão pronunciado, que os professores ofereceram uma resistência feroz ao ingresso de monges no corpo docente das universidades (v. o episódio de Boaventura que mencionei acima). Bem, sem esse ingresso, a universidade medieval estaria desprovida de Alberto, Tomás, Boaventura e Duns Scot – de tudo aquilo que para nós, hoje, mais nitidamente caracteriza e mais merecidamente enobrece a imagem da filosofia escolástica.

Sim, porca miséria, os quatro eram monges, intrusos na comunidade universitária! Como poderiam ser típicos da corporação que rejeitava sua presença? Longe de ser produtos característicos da universidade da época, como o acredita o sr. Pinheiro, esses monges severos e devotos, provindo de um meio social diferente, com hábitos e valores contrastantes, se sobrepunham de tal modo àquele ambiente que só a duras penas puderam ali sobreviver e, às vezes postumamente, triunfar. A magnitude de suas realizações intelectuais deve-se menos à atmosfera universitária do que à força de suas personalidades majestosamente centradas, firmadas na fé e na integridade de propósitos, em contraste com a sofisticada tagarelice de seus colegas, muitas vezes tecnicamente admirável, mas com tanta freqüência inspirada em motivos fúteis e na sedução das novidades heréticas. Quando hoje enxergamos a universidade medieval como um momento luminoso na história da educação, é em grande parte porque os melhores homens que ela rejeitou projetam retroativamente sobre ela o brilho da sua glória, e não ao inverso. E essa glória, sem dúvida, vem mais das ordens monásticas que os formaram, que do meio social onde ingressaram já adultos, fortes o bastante para desafiá-lo e, a longo prazo, vencê-lo. Se, quando critico a universidade medieval, o sr. Pinheiro entende que estou falando mal da filosofia dos grandes escolásticos, é, em parte, por seu desconhecimento da história, em parte por seguir o consagrado erro de ótica que coletiviza os méritos individuais e toma as exceções como regras, como se as cátedras universitárias na época estivessem superlotadas de homens da estatura de Tomás e Alberto, e não de técnicos, burocratas, agitadores, doutrinários de dedinho em riste, bedéis e uma infinidade de puxa-sacos.

Não é culpa do sr. Pinheiro, é do vício generalizado de entender os grandes homens como “produtos do seu tempo”, quando justamente a grandeza deles consistiu em quebrar a redoma da ideologia de época e injetar no organismo da cultura, a um tempo e contra a resistência do ambiente, a sabedoria esquecida de um passado remotíssimo e as mais inimagináveis perspectivas de futuro.

No caso da filosofia escolástica, toda ela inspirada por aberturas para a eternidade que nenhum condicionamento histórico-social jamais poderia explicar, isso deveria ser perceptível à primeira vista.

Só os medíocres são filhos do seu tempo. Os sábios, os heróis e os santos inspirados são pais dele; são canais por onde a luz da transcendência  rompe as limitações do tempo e abre possibilidades que a mente coletiva, por si, jamais poderia conceber. Se a opinião corrente não enxerga isso, é porque o acesso de milhões de incapazes às altas esferas das profissões universitárias obriga hoje a conceber a História sub specie mediocritatis. Que Alberto e Tomás revivificassem uma filosofia velha de mil e setecentos anos, fazendo-a enfim predominar sobre o rígido agustinismo dominante, e que Duns Scot, contra vento e maré, antecipasse em cinco séculos um dogma da Igreja, são fatos que deveriam fazer os devotos do condicionamento histórico pelo menos coçar as cabeças, se alguma tivessem.

Mas a esse erro de perspectiva generalizado, que se disseminou ao  ponto de infectar até mesmo os manuais escolares, o sr. Pinheiro acrescenta um outro que, se não é de sua própria invenção, também não é compartilhado pela massa ignara, mas tão somente por uma parte da elite profissional de filodoxos: a idéia de que só existe filosofia na doutrina explícita, desenvolvida, organizada, publicada, racionalmente verbalizada e argumentada até seus últimos detalhes.

A idéia tem origem ilustre. Remonta a Georg W. F. Hegel, o que, convenhamos, impõe algum respeito. Mas, como tantas outras opiniões que herdamos desse genial embrulhão, é completamente falsa. Sem mencioná-la expressamente nem citar-lhe a fonte (que talvez nem mesmo conheça), escreve o sr. Pinheiro, como se impelido mediunicamente pelo espírito de Hegel:

“O foco na relação mestre-discípulo e na sabedoria não-verbal (e que, por isso, não pode ser escrito sem ser, em alguma medida, traído)[5] nos aproxima novamente dos sonhos tradicionalistas e perenialistas, dos sistemas simbólicos esotéricos e da imersão em tradições orais.[6]Mas Filosofia é perseguir avidamente o real; e isso é a fuga consumada… É estranho que ele [Olavo de Carvalho] e tantos de seus seguidores continuem a ter esse tipo de fantasia como ideal de vida e de formação filosófica.”

Na galeria universal das condutas vexaminosas, poucas se comparam ao gosto que os brasileiros têm de se fazer de superiores àquilo que não entendem. Nem todos os nossos compatriotas padecem desse vício, menos ainda são os que o trazem do berço, mas muitos o adquirem logo no começo da vida adulta, sob o nome de “formação universitária”.

As palavras do sr. Pinheiro, que soam tão óbvias e inquestionáveis aos seus próprios ouvidos, contêm embutida uma multidão de problemas cabeludos que ele nem mesmo percebe.

II

Desde logo, se excluirmos da área de estudos filosóficos sérios as tradições orais, teremos de dizer adeus não só a boa parte do platonismo, mas a todo o ensino universitário que não esteja registrado em textos. A única razão de ser das universidades, aliás, é justamente aquela parte do treinamento intelectual superior que não pode ser obtida por mera leitura, mas requer o contato direto entre mestre e discípulo. Se não fosse assim, as instituições universitárias poderiam, com vantagem, ser fechadas e substituídas pela indústria editorial. Isso vale não só para o aprendizado filosófico, mas também para as artes, as técnicas e as ciências. E, em todos esses casos, falar de contato direto é incluir aí uma parcela indispensável de comunicação não verbal. Hoje em dia não há pesquisa científica que não exija o uso de instrumentos cujo manejo requer longa prática junto a um técnico habilitado que pouco poderia transmitir a seus alunos só pela instrução verbal, sem o contato visual e manual com os equipamentos e sem socorrer-se de gestos, posturas, entonações e olhares cuja tradução em palavras seria praticamente impossível. Se não fosse assim, qualquer um poderia formar-se técnico em tomografia cumputadorizada, em microscopia estereoscópica ou em galvanometria balística pela simples leitura de manuais de instruções. Poderia também tornar-se cantor de ópera, pintor ou dançarino sem ter jamais presenciado um exemplo vivo de como se canta, se pinta ou se dança.

O peso desse fator é tão crucial na investigação científica, que negligenciá-lo pode destruir as mais belas esperanças das ciências de constituir-se em conhecimento objetivamente verificável. Uma verdade, em ciência, não vale nada enquanto não se transforma numa crença coletiva subscrita pela comunidade dos cientistas profissionais, mas, assinala Theodore M. Porter, “a prática científica diária tem tanto a ver com a transmissão de habilidades e práticas quanto com o estabelecimento de doutrinas teóricas”. Nos anos 50 do século passado, Michael Polanyi já enfatizava que a pesquisa científica envolve um tipo de “conhecimento tácito” que não pode sequer ser formulado em regras. “Na prática, prossegue Porter, isso significa que os livros e os artigos de revistas científicas são veículos necessariamente inadequados para a comunicação desse conhecimento, uma vez que aquilo que mais interessa não pode ser comunicado em palavras (grifo meu)”[7] Elimine-se a transmissão não-verbal, portanto, e toda via de acesso à investigação científica estará fechada de uma vez por todas.

Como se vê, a investida do sr. Pinheiro contra o não-verbal nasce da ojeriza irracional ante puros estereótipos da cultura vulgar e não reflete nenhum exame sério da questão substantiva.

2. No caso específico da filosofia, o papel do contato pessoal, dos círculos de amizade e das lealdades corporativas na formação das escolas e correntes filosóficas, bem como na assimilação e modelagem mental dos recém-chegados, é hoje um consenso amplamente admitido nesse importantíssimo ramo de estudos que é a sociologia da filosofia.[8] Importantíssimo não só para os sociólogos como para os filósofos mesmos: o filósofo que ignore as bases sociais da sua existência profissional é como um boneco de ventríloquo limitado à triste função de fazer eco a influências que não sabe de onde vieram nem para onde levam. Ouso dizer que na classe acadêmica brasileira essa ignorância é quase obrigatória.

Mais relevante ainda, sob esse aspecto, é o estudo de como se formam e se desfazem os prestígos pessoais que marcam indelevelmente o perfil histórico da filosofia num dado período. Como foi possível, por exemplo, que certos filósofos (ou filodoxos) alcançassem uma audiência muito maior, nas universidades e fora delas, do que seus contemporâneos mais habilitados, produzindo linhas de influência duráveis e verdadeiras tradições de pensamento, enquanto as obras de seus concorrentes caíam no completo esquecimento? Seria uma ingenuidade imperdoável pensar que se trata aí de puros “fatores externos” alheios ao “valor intrínseco” ou ao “conteúdo filosófico propriamente dito” das obras em questão. A população estudantil só tem acesso ao  “conteúdo filosófico propriamente dito” das obras que lê, não das que ignora – e a seleção reforça, automaticamente, as influências intelectuais dominantes, consagrando como decretos inquestionáveis da natureza das coisas os critérios de “valor intrínseco” que aí prevalecem e, portanto a visão da história da filosofia, às vezes barbaramente subjetiva e enviezada, que aí se toma como expressão direta e óbvia da verdade dos fatos.

Ora, quando procuramos investigar como se formam aqueles prestígios, descobrimos que o mecanismo principal que os origina são os círculos de relações pessoais, onde os interesses corporativos e as lealdades politicamente interesseiras se mesclam indissoluvelmente ao culto devoto de personalidades carismáticas envolvidas, no mais das vezes sem merecimentos objetivos que o justifiquem, numa aura de sapiência mística que separa rigidamente os iniciados e os profanos.

Estudando a carreira de quatro dos mais prestigiosos pensadores do século XX que ele denomina “os mestres malignos” – Wittgenstein, Lukács, Heidegger e Gentile –, e perguntando por que suas sombras encobriram os vultos de seus contemporâneos igualmente capazes, ou mais capazes, o filósofo australiano Harry Redner conclui:

    “Em última análise, o que distinguia os mestres malignos de seus colegas não menos capacitados era uma personalidade carismática que acabou por fazer tantas gerações de amigos, seguidores e estudantes prosternar-se diante deles com temor reverencial. Quase todos os que encontraram um mestre maligno sentiram estar em presença de um gênio. Eles tinham essa capacidade de impressionar desde o início de suas carreiras… É difícil pensar em qualquer grande filósofo do passado que tenha sido tão revenciado no seu tempo como eles o foram.

“Os seguidores que formavam em torno de cada um dos mestres malignos têm alguns dos traços dos círculos mais estreitos e mais amplos de qualquer movimento carismático. Cada um deles esteve rodeado de círculos esotéricos e exotéricos de amigos e seguidores. Mais perto do mestre estava um grupo de discípulos ou companheiros próximos; mais à distância havia os simpatizantes e companheiros-de-viagem; e em volta desse núcleo estava a massa dos estudantes e leitores interessados.”[9]

Na formação desse culto não faltava jamais a força do elemento mágico, manipulado com requintes cênicos de sedutores profissionais. Na ascensão de Martin Heidegger, Karl Löwith destaca o poder da sua “arte de encantamento” que “atraía personalidades mais ou menos psicopáticas”. Nas conferências que proferia, “seu método consistia em construir um edifício de idéias que em seguida ele mesmo desmantelava, de novo e de novo, para desnortear os ouvintes fascinados, só para no fim deixá-los completamente no ar”.[10] Qualquer semelhança com os procedimentos retóricos do esoterista armênio George Ivanovitch Gurdjieff não é mera coincidência. Gurdjieff levava seus discípulos à mais completa impotência intelectual mediante a prática de expor complexos sistemas cosmológicos, acompanhados das demonstrações matemáticas mais sofisticadas e, quando a platéia se sentia  diante mais sólida verdade científica, desmantelar tudo com refutações arrasadoras. A única diferença que tais casos revelam entre essa pedagogia e a dos antigos monges é que estes usavam o poder do carisma para infundir virtudes, ao passo que as celebridades filosóficas ou esotéricas do século XX o empregam como instrumento de dominação psíquica para instituir o culto de suas próprias pessoas.

Mas, evidentemente, a função dos círculos de convivência direta não se resume em criar ídolos. Tem também uma utilidade menos personalizada, mais coletiva, que é a de impor a hegemonia de grupos de influência mediante a interproteção mafiosa, a promoção mútua, o boicote dos adversários, o rateio dos melhores empregos entre os membros da gangue e, em resultado de tudo isso, o controle da opinião pública, especialmente em ambientes limitados e abarcáveis como o são as universidades e as instituições de cultura.

As filosofias dos “mestres malignos”, segundo Redner,

“tendiam a gravitar em direção às elites universitárias porque, na luta pelo poder acadêmico, o status de elite interessa muito para atrair discípulos e lançar movimentos de influência. Dessas posições de alto status era fácil supervisionar e dominar todos os postos nas universidades colocadas mais em baixo. Nas escolas de elite dos países dominantes, como a École Normale na França e a Ivy League na América, a filosofia podia ser cultivada como uma mística para os privilegiados e iniciados. Só aqueles que ingressavam nessas instituições e passavam por elas como estudantes e professores tinham alguma chance de adquirir o conhecimento filosófico ‘apropriado’ e de ser considerados qualificados nele. Por esses meios, umas poucas universidades foram capazes de monopolizar o ensino da filosofia e usar esse poder para colonizar o sistema acadêmico inteiro de determinados países. Uma típica relação colonialista centro-periferia se instaurou entre a elite e o resto; com isso as universidades de elite se habilitaram a perpetuar e consolidar sua exclusividade e seu status superior.”

O “conteúdo propriamente dito” das filosofias não era de maneira alguma indiferente ao papel que desempenhavam na estrutura do poder universitário:

“As filosofias que serviam a essa função de preservar o monopólio profissional tinham de ser aquelas que ninguém podia aprender por meio de livros somente. Tinham de ser aquelas que ninguém fora do quadro institucional privilegiado podia adquirir, transmitir ou praticar. Elas podiam ser aprendidas somente se fossem adquiridas através dos canais corretos e recebidas das mãos apropriadas. Tais eram, de fato, as filosofias que os próprios mestres malignos e, por direito de sucessão, seus discípulos, vieram a ministrar desde as escolas de elite onde haviam conquistado posições de poder. Ninguém que não passasse pelas suas mãos podia praticar, ensinar ou mesmo discutir suas filosofias.”[11]

Um exemplo muitíssimo bem documentado de como esse processo funciona num país em particular é dado no livro de Hervé Hamon e Patrick Rotman, Les Intellocrates,[12] que estuda a composição social da elite que comanda a vida universitária e a imprensa cultural na França. Essa elite inteira mora em Paris, distribuída nuns poucos quarteirões vizinhos, e tem na convivência pessoal constante um dos seus mecanismos essenciais de autopreservação e crescimento.

O contato direto entre mestres, colaboradores e discípulos, como se vê, não perdeu nada da importância essencial que tinha nos séculos X a XII. Apenas mudou de função: de gerador de santos transmutou-se em fábrica de carreiristas, agitadores, gerentes da indústria cultural, bajuladores e militantes. Talvez por isso mesmo tenha se tornado menos visível a  observadores desatentos como os srs. Lemos e Pinheiro: é da natureza mesma dos círculos de poder o hábito de manter a sua existência o mais discreta possível, de modo a fazer com que os efeitos de suas ações apareçam como resultados acidentais e anônimos do processo histórico.

Não por coincidência, uma das correntes filosóficas que mais veio a se beneficiar da luta dos grupos de influência pelo domínio monopolístico das universidades foi, precisamente, a “filosofia científica”, ou neopositivista,  que o sr. Júlio Lemos coloca tão celestialmente acima do mundo humano.

Não há nisso, aliás, nada de estranho. O neopositivismo é, como o próprio nome diz, continuação do positivismo, que nasceu não como pura filosofia teorética para uso dos anjos, mas como projeto de poder, um dos mais ambiciosos e totalitários de todos os tempos.

Quando, após a II Guerra, o crescimento vertiginoso da economia ocidental acelerou o processo de transformação da filosofia em profissão universitária, eliminando da cena, pouco a pouco, os “intelectuais públicos” que antes davam o tom dos debates culturais,[13] nem todas as filosofias se adequavam igualmente ao novo ambiente em que as discussões filosóficas tinham de imitar o mais fielmente possível o mecanismo altamente regulamentado e burocratizado da intercomunicação científica.

Na Europa continental, onde a discussão filosófica estava imantada de uma carga partidária e militante consagrada por décadas de confronto ideológico, a solução foi infundir no discurso tradicional da esquerda uns toques de linguagem científica extraídos principalmente da lingüística e da matemática. Daí nasceram o estruturalismo e o desconstrucionismo que logo ocuparam o lugar do existencialismo e da fenomenologia nas atenções do público.

Nos países anglo-saxônicos, ao contrário, onde a tendência dominante era manter as universidades bem integradas no funcionamento geral da economia e imunizadas contra o risco das rotulações ideológicas de direita e de esquerda, esse foi o grande momento da “filosofia científica”. O processo foi bem estudado por C. Wright Mills,[14] mas, como a descrição que oferece é muito detalhada e complexa, recorro, novamente, ao indispensável Redner, que assim a resume:

“A antiga geração de filósofos, que era uma estranha mistura de advogados, bibliotecários e cientistas, foi desalojada pelos professores acadêmicos que se organizaram numa corporação profissional com suas conferências, revistas especializadas, escadas de promoção e todos os outros adornos das disciplinas acadêmicas. Nessas condições, os filósofos já não podiam ser considerados livres-pensadores ou intelectuais, como Russel Jacoby argumenta num estudo mais recente. Para esses profissionais acadêmicos, a filosofia melhor adaptada às suas exigências era uma que não dependesse de teorias, de idéias ou de nenhum fundo de conhecimentos de ciência ou das humanidades, e que não se engajasse em questões contenciosas da vida social e política. O que eles queriam era um modo de filosofar que pudesse ser praticado como uma habilidade técnica a ser aprendida pragmaticamente por meio de um treinamento no próprio ambiente profissional por meio da discussão, mais ou menos como o dos advogados.”[15]

Que é o “treinamento no próprio ambiente profissional” senão o tão desprezível, tão dispensável contato direto entre professor e aluno? Afinal, por que os advogados, entre os quais o sr. Júlio Lemos, não estão habilitados para o exercício profissional tão logo recebem seu diplominha, mas têm de fazer estágios em escritórios de advocacia, ver com seus próprios olhos como funcionam os tribunais, cartórios, registros de imóveis e delegacias de polícia, aprender por experiência viva como se aborda um juiz de direito, como se obtêm os favores de um escrivão, como se persuade um cliente a negociar com a parte contrária? E quem não sabe que, na prática, o profissional investido dessas habilidades levará infinita vantagem sobre o bacharel eruditíssimo sem experiência direta?

Se a “filosofia analítica” pode prescindir do contato direto entre mestre e discípulo, por que teria sido justamente essa a modalidade preferencial de ensino usada para impor o prestígio dessa escola nas universidades americanas?

Tal como a ojeriza ao não-verbal, o desprezo ao ensino direto é uma afetação, uma pose, adotada como reação irracional de momento, não uma opinião maduramente pensada com conhecimento do assunto.

III

É pura fantasia do sr. Pinheiro acreditar que atribuí às escolas catedrais e monacais a posse de uma “filosofia” superior à escolástica do século XIII. Mas ele não erraria tanto se afirmasse que enxergo nas primeiras uma sabedoria cristã superior à da média dos professores e estudantes universitários que vieram depois e que entendo a grande filosofia de Tomás, Alberto, Boaventura e Scot menos como um “produto” do meio universitário e mais como o desenvolvimento natural e, por assim dizer, a exteriorização intelectual da cultura cristã herdada das escolas catedrais e monacais através da formação monástica recebida na juventude por esses quatro grandes mestres, que os imunizou contra a tagarelice pedante, não raro herética, do meio universitário.

Que o florescimento de uma grande filosofia não surja do nada, mas se produza como desenvolvimento intelectualmente diferenciado de uma visão do mundo já anteriormente cristalizada em formas simbólicas na cultura vigente é algo que não deveria surpreender ninguém. Quem ignora que a concepção central da filosofia platônica, a das leis eternas que se sobrepõem à ordem aparente de uma “natureza” concebida à imagem e semelhança da ordem social vigente, já estava prefigurada na poesia homérica e no teatro de Ésquilo e de Sófocles?

Aprendi em Paul Friedländer, Julius Stenzel e Eric Voegelin que compreender uma filosofia não é só apreender o sentido explícito das suas “teses”, nem discernir a estrutura do seu “sistema”, nem muito menos saber compará-la com outros “sistemas” (embora tudo isso seja uma preparação escolar indispensável), mas desencavar, da sua formulação em conceitos e doutrinas, as experiências reais que as inspiraram, a substância humana e histórica que transmutaram em idéias abstratas.

Não se trata, evidentemente, de um preceito válido somente para os historiadores e filólogos, mas de uma exigência básica indispensável para quem quer que pretenda “discutir” essas filosofias com base no sentido real que tinham para os seus criadores e não apenas na sua formulação explícita, estabilizada em textos, ainda que apreendida para além da sua superfície verbal e visualizada na unidade profunda da sua ordem interna.

Reporto-me aqui às breves explicações orais que dei sobre o “argumento de Sto. Anselmo”. Esse argumento é apresentado originariamente sob a forma de uma prece. Como ninguém em seu juízo perfeito – muito menos um monge experiente – pode orar a um Deus duvidoso, está claro que o argumento não é oferecido como uma resposta à dúvida quanto à existência ou inexistência de Deus, mas como um aprofundamento intelectual da experiência da prece. O esquema lógico do argumento, no entanto, pode ser abstraído – separado imaginariamente – do seu contexto originário e ser discutido “em si mesmo”. Mas aí ele já não será o argumento de Sto. Anselmo e sim uma cópia esquemática esvaziada de seu conteúdo experiencial, apta a ser reproduzida sob uma infinidade de formulações verbais diferentes e até mesmo codificada em símbolos matemáticos para fins de análise computadorizada. E então os debates quanto à sua validade ou invalidade lógica poderão prosseguir indefinidamente, animando os serões dos amadores de argumentos, enriquecendo o mercado editorial e alimentando carreiras universitárias, sem que isso aumente em um grama sequer a compreensão do pensamento de Sto. Anselmo ou, mais ainda, da técnica anselmiana da conversão de uma prática devocional em experiência intelectual – técnica sem a qual nada se pode entender não apenas da filosofia do próprio Anselmo, mas de toda a tradição escolástica que se lhe seguiu.

Esse exemplo ilustra a diferença entre o que eu e o sr. Lemos chamamos de “filosofia”. Ele dá esse nome a algo que, do meu ponto de vista, é apenas uma técnica de argumentação, bela e sofisticada o quanto seja. Prefiro reservar o termo para aquilo que este sempre designou: a elaboração intelectual da experiência com vistas a alcançar, na máxima medida possível num dado momento histórico, a unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa. Nesse sentido, a unidade interna de uma filosofia, isto é, sua coerência sistêmica e lógica, vale menos por si mesma do que pela sua eficiência em dar conta, ainda que com imperfeições lógicas inevitáveis, da variedade e confusão da experiência humana – pessoal, cultural e histórica – que lhe serviu de ponto de partida. Por isso, chamamos de grandes filósofos, não aqueles que se esmeraram no esforço vão de chegar à prova lógica mais detalhada, e sim aqueles que conseguiram abranger, num olhar unificante, o horizonte de problemas mais amplo e complexo, criando assim um senso de orientação que permanece útil para muitas gerações subseqüentes. Nesse sentido, a lista de filósofos verdadeiramente grandes é bem reduzida. Sem querer resolver agora a questão de quais merecem ou não entrar nessa classificação, parece-me evidente que ninguém negará um lugar nela aos nomes de Platão, Aristóteles, Sto. Tomás e Leibniz. Enquanto filósofos bem posteriores já viram suas contribuições essenciais esgotadas ou impugnadas pelo avanço do conhecimento (ninguém mais pode ser cartesiano, baconiano ou hobbesiano de carteirinha sem entrar em conflito com o estado atual das ciências), esses quatro, excluídos erros de detalhe que possam ter cometido num ou noutro ponto, continuam dando inspiração a novas descobertas em todos os setores do conhecimento, e parece que não vão parar de fazê-lo tão cedo. Não erraremos, portanto, se os tomarmos como modelos supremamente típicos daquilo que se entende pelo termo “filósofo”.

O critério aí adotado implica que nada se entende de uma filosofia sem uma visão efetiva das experiências de fundo às quais ela responde com um vigoroso esforço de expressão, ordenação unificação e clarificação (a palavra “esclarecimento” tem outras conotações que desejo evitar).

Se se tratasse de artistas, de poetas, predominaria em suas obras o esforço de expressão direta da experiência. Os filósofos tomam o seu material de base num estado mais elaborado, que inclui os aspectos da experiência já trabalhados na cultura artística (assim como nas leis, instituições, crenças estabelecidas etc.). Com freqüência a arte se antecipa aos filósofos, fornecendo-lhes em forma compacta de símbolos concretos os esquemas estruturadores aos quais eles darão expressão intelectual mais diferenciada, mais clara, mais acessível à discriminação racional. É puro  estereótipo ginasiano acreditar, como os srs. Lemos e Pinheiro, que a filosofia é “discussão racional”. A possibilidade da discussão racional só aparece depois que o grande empreendimento de organização unificante da experiência chegou ao seu termo. Esse empreendimento pode incluir também, no caminho, uma parcela de discussão, que visa sobretudo a retificar ou completar certos aspectos das tentativas anteriores, mas é evidente que ela não constitui o ponto forte de nenhuma filosofia digna do nome. Como observava John Stuart Mill, a crítica, indispensável o quanto seja, é a faculdade mais baixa da inteligência. Mesmo quando uma filosofia assuma a aparência externa de uma discussão, como acontece nos diálogos platônicos, o objetivo ali não é “provar” coisa nenhuma, mas trazer à mostra, tornar visível, algo que está para muito além da discussão e da prova. Platão parte do material da experiência tal como o encontra na cultura da época e, através de sucessivas marchas ascensionais e clarificações parciais, vai se erguendo – e, quando possivel, erguendo seus interlocutores – à antevisão do mundo das formas, princípios e leis eternas que unificam e estruturam a experiência. É esta escalada, e não a “discussão racional”, que dá a forma e o sentido do empreendimento platônico. Uma vez alcançado o cume, o conjunto da obra escrita que documenta a trajetória assume a forma aparente de um “sistema doutrinal” que então pode alimentar “discussões racionais” pelos séculos dos séculos. As discussões podem ser mais úteis ou menos úteis, mas, na maior parte dos casos, nada de substancial acrescentam à filosofia originária. Quando Alfred Whitehead observou que vinte e quatro séculos de filosofia não passavam de uma coleção de notas de rodapé a Platão e Aristóteles, ele quis dizer exatamente isso. Como aquelas  discussões são o ganha-pão dos acadêmicos, alguns deles são bobos – ou vaidosos – o bastante para achar que elas constituem “a” filosofia, mas isso é como se, num livro, as notas de rodapé tomassem o lugar do texto.

“A” filosofia não é discussão racional nem sistema doutrinal. É uma estruturação simbólica intelectualmente diferenciada na qual o mundo da experiência deve adquirir uma visibilidade, uma claridade, que não tinha nem no material bruto da experiência nem nas suas elaborações culturais prévias (sociais, políticas, artísticas, religiosas).[16]

Por isso mesmo é que a arte, com tanta freqüência, se antecipa às filosofias. No caso dos escolásticos, isso não poderia ser mais evidente. O exame deste ponto mostrará quanto os srs. Lemos e Pinheiro, juntos ou separados, e todos os que pensam como eles, estão longe de compreender a relação entre as grandes filosofias do século XIII e o ensino prático que as antecedeu nas escolas catedrais e monacais.

Vamos por partes.

Qual foi a realização maior e mais característica dos filósofos escolásticos? A criação das Sumas – um gênero literário totalmente novo, apropriado às necessidades expositivas do pensamento cristão, o qual, após ter durante doze séculos respondido às dúvidas externas e internas com improvisações apologéticas e polêmicas soltas, esporádicas e assistemáticas, que se acumulavam numa massa confusa e inabarcável, se viu levado, pelas próprias exigências do ensino e por outros fatores que não interessa analisar aqui (entre os quais o impacto da filosofia árabe), a empreender um gigantesco esforço de organização e unificação.[17] A fórmula literária encontrada foram as “sumas”.

A primeira grande Summa foi a de Alexandre de Hales, que começou a escrevê-la em 1231 mas a deixou incompleta. Não sei a data certa da segunda, mas não saiu antes de 1245, quando Sto. Alberto começa a ensinar na Universidade de Paris. Em 1260 começam as aulas de S. Boaventura sobre os ensinamentos de Pedro Lombardo, das quais ele extrairá uma summa sob o título de Comentários ao Livro das Sentenças de Pedro Lombardo. Por fim, o gênero chega à perfeição com a Summa contra Gentiles de Sto. Tomás de Aquino (1264), logo seguida da Suma Teológica, redigida entre 1265 e 1274.

A estrutura das Sumas não tem precedentes na história dos gêneros literários. Elas compõem-se de partes hierarquicamente organizadas, que vão desde os princípios mais universais até suas aplicações aos entes particulares, como num longo raciocínio dedutivo. Mas cada parte subdivide-se em “questões”. Colocada uma questão, o autor faz uma breve resenha das respostas anteriormente oferecidas por varios filósofos e teólogos, atualizando o status quaestionis. Aí ele acrescenta à lista algumas outras respostas possíveis e passa a examinar os prós e contras de cada uma, até chegar a uma conclusão. Por fim ele concebe e responde algumas objeções, reforçando a conclusão, que em seguida servirá de premissa para a solução das questões subseqüentes.

Tecnicamente, essa estrutura constitui-se de um longo discurso analítico composto, por dentro, de vários discursos dialéticos. Ela articula assim duas modalidades de discurso que Aristóteles havia distinguido cuidadosamente, uma empenhada em montar a demonstração e a prova científica, outra em  buscar, entre as incertezas do debate e da experiência, as premissas especiais sobre os diversos pontos em investigação. Num nível mais profundo, essa articulação sintetiza duas atitudes mentais opostas: a dogmática, ou construtiva, e a zetética, ou investigativa. Nada de similar encontra-se em toda a literatura filosófica anterior.

Mediante essa combinação original, as Sumas sintetizam e unificam não só o conjunto dos dados científicos, teológicos e históricos disponíveis que interessavam à doutrina cristã, mas todas as técnicas que compunham o ensino universitário, as quais assim ficavam vacinadas contra a possibilidade de desenvolvimentos independentes anárquicos e se integravam harmoniosamente na ordem total do conhecimento.

Mais ainda, as Sumas inauguraram a prática da distribuição racional dos textos em partes, seções, capítulos, parágrafos e subparágrafos, totalmente desconhecida na antigüidade, que viria a se universalizar no Ocidente ao ponto de tornar-se uma banalidade. Mas, se hoje essa divisão corresponde mais a convenções editoriais ou a arranjos pedagógicos, nas Sumas ela tinha uma função muito mais ambiciosa e orgânica. A organização do texto correspondia rigidamente à estrutura das realidades ali analisadas, de modo que a obra como um todo funcionava como símbolo da hierarquia do mundo divino, cósmico e humano. As análises dialéticas espalhavam-se em muitas direções, indo até os últimos detalhes (princípio de manifestatio,  “exteriorização” ou “clarificação”) e voltavam a unificar-se nas conclusões parciais que, por sua vez, articuladas umas às outras pelo princípio da concordantia, ou reconciliação hierarquizada das múltiplas possibilidades contraditórias, funcionavam como colunas que sustentavam a estrutura do todo.

A imagem um tanto idealizada que hoje temos da organização hierárquica dos estudos universitários medievais reflete menos a realidade do ensino diário do que a estrutura das Sumas, em que os vários aspectos desse ensino convergem para um ponto culminante que os transcende.

A prática da disputatio, por exemplo, adestrava os alunos na arte da confrontação dialética ordenada, enquanto o estudo comentado da sacra pagina lhes infundia os necessários conhecimentos das Escrituras, mas só nas Sumas esses dois aspectos se articulavam na unidade de uma concepção abrangente.

Se perguntarmos de onde Alexandre de Hales e seus sucessores obtiveram a inspiração para esse empreendimento tão original e poderoso, não encontramos nenhuma fonte escrita, aliás nem oral. Platão desenvolvera a técnica dialética de Sócrates, mas não se encontra nele a arte da construção dogmática. Aristóteles sobrepõe à dialética a técnica da prova científica, lógico-analítica, mas não deixa nenhum exemplo escrito de discurso lógico-analítico com começo, meio e fim: tudo o que nos sobrou dele foram rascunhos de aulas, construídos na base de investigações e confrontações dialéticas, num espírito ferozmente zetético. O que seria uma construção dogmática do aristotelismo, a estrutura formal e hierarquizada da “doutrina aristotélica”, é um problema em que até hoje os sucessores e comentaristas se engalfinham sem encontrar nenhuma solução satisfatória. Para fazer uma idéia da dificuldade: ninguém deu uma resposta cabal à questão de saber se a filosofia do Aristóteles maduro é um desenvolvimento coerente do seu platonismo de juventude ou uma negação completa dele e o início de uma filosofia diferente.[18]

Na bibliografia filosófica que vai daí até Alexandre de Hales, nada se encontra que se pareça nem de longe com a estrutura das Sumas. Só há portanto duas alternativas: ou a criação ex nihilo ou a inspiração recebida de alguma fonte não filosófica, nem literária. A primeira hipótese sendo prerrogativa divina, temos de nos voltar para a experiência vivida, para o impacto que os filósofos escolásticos receberam da cultura da época, para averiguar se algo, nela, pode ter-lhe sugerido a idéia de estruturar a cosmovisão cristã numa síntese de todos os conhecimentos e de todas as técnicas intelectuais disponíveis, em que as inumeráveis buscas zetéticas lançadas em direções diversas fossem convergindo pouco a pouco e se unificando numa grande construção dogmática de conjunto. O único precedente não vem da filosofia, nem de qualquer gênero literário: vem das artes e, especialmente da arquitetura.

Em 1948 o grande historiador da arte, Erwin Panofsky, lançou nas Conferências Wimmer a tese depois publicada em 1951 sob o título de Gothic Architecture and Scholasticism,[19] segundo a qual o estilo gótico na construção das grandes catedrais medievais refletia a influência do pensamento escolástico, ilustrando, no verticalismo, no uso da luz e no trançado dos arcos que sustentavam as abóbadas, os mesmos princípios da manifestatio e da concordantia que estruturavam as Sumas.

A tese nunca foi totalmente aceita nem totalmente rejeitada. O primeiro problema com ela é que não havia o menor indício de que os arquitetos anônimos das catedrais houvessem jamais estudado a filosofia escolástica. O segundo e principal problema é que o essencial do estilo gótico já estava delineado fazia tempo, na Abadia de Saint Denis, nas catedrais de Laon, Bourges e Chartres, quando Alexandre de Hales começa a redigir o primeiro esboço de uma Summa em 1231. E o novo gênero literário só se aproxima do seu máximo esplendor a partir de 1264, com a Summa contra Gentiles de Sto. Tomás de Aquino, quando já fazia vinte e três anos que uma das obras-primas maiores do estilo gótico, a Sainte Chapelle, estava à vista de todos bem no centro de Paris (só no ano seguinte Tomás começa a redigir a Suma Teológica).[20] É possível que o pensamento escolástico tenha vindo a exercer alguma influência sobre a arquitetura das catedrais posteriores ao século XIII, mas, até o tempo de Sto. Tomás, “influência”, se houve, foi no sentido inverso.

Em cima, à esquerda: Sainte Chapelle; à direita: catedral de Laon. No meio, à esquerda, catedral de Bourges; à direita, basílica de Saint Denis. Em baixo, à esquerda: Catedral de Chartres.

No entanto, se a teoria, como assinalaram seus críticos, falhava em estabelecer qualquer nexo causal entre filosofia escolástica e arquitetura gótica, ela tinha uma parcela de verdade que ninguém jamais negou: havia, com toda a evidência, uma semelhança estrutural entre os catedrais góticas e as Sumas. Tanto estas quanto aquelas apareciam como grandes resumos simbólicos da concepção cristã do mundo e a ordem da sua estruturação interna era praticamente a mesma: o arranjo das partes, as conexões entre os mínimos detalhes e a ordem do conjunto, a busca da luminosidade e da transparência, o movimento de subida e descida entre os vários níveis ou planos de realidade, a sustentação mútua entre os arcos opostos como teses dialéticas articuladas na sua contradição – tudo exibia, em pedra como em palavras, os mesmos princípios da manifestatio e da concordantia. Não é nenhum exagero dizer que as catedrais eram como que um esquema gráfico da estrutura das Sumas. Ademais, tanto o novo estilo arquitetônico quanto o novo gênero literário eram marcados pelo ineditismo dos seus princípios, moldados, pela primeira vez, segundo necessidades específicas do ensinamento cristão, irredutíveis a qualquer exemplo anterior. As semelhanças eram tantas, e tão fundamentais, que não cabia reduzi-las ao padrão de uma mera “analogia”: era preciso falar, isto sim, de homologia, de identidade de estruturas.

A coisa tornou-se mais evidente ainda quando, em 1998, o catedrático de Budismo Tibetano do Departamento de Estudios Religiosos da Universidade da Califórnia, José Ignácio Cabezón, descobriu que homologia idêntica existia entre os tratados da escolástica budista e os templos religiosos da Idade Média tibetana.[21] Nos dois casos, assinalava Cabezón, era tão impossível estabelecer qualquer nexo causal direto quanto negar a existência de uma similaridade estrutural cujo detalhamento ia muito além da possibilidade da mera coincidência.

Sem entrar agora nos detalhes da controvérsia, algumas observações parecem-me evidentes e praticamente inquestionáveis:

1. Se os arquitetos não estudavam filosofia escolástica e as catedrais góticas antecederam as grandes Sumas, não se pode falar de influência destas sobre aquelas, mas precisamente do oposto.

2. A palavra “influência” descreveria adequadamente a transmutação de uma doutrina filosófica em obra de arte, mas não o inverso. Aqui só cabe falar, mais vagamente, de “inspiração”.

3. Os arquitetos anônimos das catedrais não eram alunos das universidades. Aprendiam a técnica da construção nas corporações do ofício e a doutrina cristã nas escolas monacais e catedrais, mais provavelmente nas mesmas catedrais em que trabalhavam ou viriam a trabalhar como construtores. Suas concepções arquitetônicas não refletiam a doutrina escolástica, mas a cultura cristã das escolas monacais e catedrais, de cuja riqueza e força davam testemunho em pedra.

4. Pela novidade do estilo; pelo contraste entre sua luminosidade e a escuridão dos templos anteriores; pela beleza deslumbrante dos vitrais e a multidão de detalhes esculturais e pictóricos maravilhosamente integrados no conjunto; por parecerem desafiar o senso comum ao manter-se de pé sobre estruturas aparentemente frágeis, as catedrais atraíam visitantes e peregrinos de toda parte porque constituiam, literalmente, o mais contundente impacto visual a que a população européia tinha sido submetida ao longo de mais de um milênio.

5. É praticamente impossível que alguém em Paris, na época de Alberto e Tomás, não conhecesse a Sainte Chapelle, ou, conhecendo-a, ficasse imune ao impacto do edifício sobre os seus sentimentos, a sua imaginação e a sua devoção religiosa.

6. É inverossímil que pensadores altamente qualificados e devotos, imbuídos da ambição de dar maior visibilidade intelectual aos símbolos da fé, permanecessem imunes ao impacto imaginativo daqueles tratados de cosmologia cristã em pedra e não obtivessem dele alguma inspiração e  motivação para tentar empreendimento semelhante no nível mais diferenciado da conceptualização teórica e da exposição doutrinal, passando da linguagem muda dos edifícios à plena explicitação verbal das Sumas.

Costumo usar o termo geológico extrusão, e o verbo correspondente extrudar, para descrever o processo de extração e exposição da substância cognitiva da experiência. Como aprendemos em Aristóteles, e até hoje ninguém desmentiu, que a inteligência abstrata não opera diretamente com os dados dos sentidos, mas com as imagens gravadas e repetidas na memória, é normal que esse processo, no nível da história cultural, se dê em duas etapas: primeiro a experiência é condensada nas formas simbólicas compactas da arte, do mito e do ritual, e só depois verbalizada, quando possível, como conceito e teoria.[22] Dito de outro modo: a criação artística forma e delimita o terreno imaginativo em cima do qual se erguerão as construções teorizantes da ciência e da filosofia. Os exemplos que ilustram essa constante são inumeráveis, desde as tragédias de Ésquilo e Sófocles que deram a Sócrates e Platão o modelo das leis eternas, até a perspectiva de Giotto sem a qual a nova cosmologia de Galileu e Kepler seria inconcebível, a Divina Comédia de Dante que inaugura a possibilidade do intelectual moderno como juiz soberano da sociedade, a Comédia Humana de Balzac de onde Karl Marx obteve sua primeira visão da estrutura do capitalismo, e assim por diante. Não há nada, pois de estranho, em concluir que o impacto visual e humano das catedrais góticas deu aos filósofos escolásticos a inspiração inicial para a extrusão do conteúdo intelectual implícito no imaginário cristão, ao qual elas davam, pela primeira vez, uma visibilidade tão completa e integrada.[23]

Se a imaginação arquitetônica e pictórica dos construtores gravava em pedra e vidro a riqueza da experiência interior obtida nas escolas monacais e catedrais, é preciso ressaltar que isso só aconteceu numa fase em que essas escolas já iam cedendo o passo, como modelos de educação, ao sucesso das universidades nascentes, onde a sofisticação das técnicas intelectuais se desenvolvia pari passu com a degradação dos costumes e a perda do fervor religioso. Decorridos cento e poucos anos da remodelação gótica de Saint Denis, a construção do edifício intelectual das Sumas se dá numa etapa ainda mais avançada da dissolução da síntese cultural cristã, prenunciando, já para os dois séculos seguintes, a difusão da moda nominalista, o florescimento de mil e uma correntes heréticas e a degradação da própria escolástica num formalismo doutrinário sufocante. Nada disso é estranho. Enquanto a riqueza da vida interior é uma realidade de todos os dias, o impulso de cristalizá-la em pedra não é uma necessidade premente. As catedrais góticas são, por assim dizer, o canto de cisne de uma modalidade de educação que já tinha os seus dias contados. No século XII, à medida que se erguem edifícios cada vez mais impressionantes, a inveja dos anjos desce dos céus e se torna admiração das multidões.

Mais compreensível ainda é que a síntese intelectual das Sumas só viesse à luz numa época em que as possibilidades civilizacionais que elas condensavam já iam chegando ao fim. Do mesmo modo que as catedrais fixam em pedra o último apelo da educação monacal e catedral, as Sumas são o cume, e por isso mesmo o capítulo final, da grande civilização cristã na Europa, do mesmo modo que as filosofias de Platão e Aristóteles são a expressão máxima e última da polis em agonia. Como observou Hegel, a ave de Minerva só levanta vôo ao entardecer.

Nesse sentido, as grandes criações novas que, para as épocas futuras, virão a representar a força espiritual das civilizações extintas documentam a depauperação da vida interior e sua substituição pelo testemunho exteriorizado e visível, legado às gerações vindouras na vaga esperança de que um dia a fórmula gravada em pedra ou em palavras possa ser novamente descompactada e restaurada como experiência vivida, se não em escala civilizacional, ao menos nas almas dos indivíduos interessados e capacitados. A passagem do implícito ao explícito, do compacto ao diferenciado, marca ao mesmo tempo a glória e o fim das civilizações. Apogeu e decadência não são termos excludentes, mas polos dialéticos de uma tensão a que não faltam, no seu desenvolvimento interno, as ambigüidades e as inversões.

Notas:

[1] Este parágrafo já revela o estado de notável confusão mental a que a leitura mal feita dos meus artigos atirou o pobre Sr. Pinheiro. Por eu ter dito, em outro lugar, que o aprendizado direto, ver e ouvir um filósofo filosofando, é condição indispensável do aprendizado da filosofia, ele imaginou, sabe-se lá por que, que ao louvar as escolas catedrais eu o estaria fazendo justamente por acreditar que nelas predominaria essa modalidade de ensino, abandonada ou negligenciada depois. O sr. Pinheiro atribui a mim uma bobagem de sua própria invenção. O ensino direto da filosofia jamais cessou, nas universidades medievais ou depois; ele é mesmo a única razão de ser das universidades. O que distingue as escolas catedrais e monacais dos séculos X-XII não é isso: é a presença do mestre como encarnação viva das virtudes cristãs, não como explicador de filosofia. Não se tratava de formar filósofos, mas gentis-homens. Este foi o objetivo negligenciado nas universidades do século XIII, e por isso julguei que o Cardeal Newman errara ao tomá-las como modelo, precisamente, de um tipo de ensino que elas haviam abandonado.

[2] O desejo de me associar à escola perenialista, ou tradicionalista, com toda a sua parafernália de rituais iniciáticos, é mesmo uma obsessão dos srs. Lemos e Pinheiro, que, a cada linha de minha autoria que lêem, saem logo procurando um perenialista embaixo da cama. Pergunto eu o que o carisma das virtudes cristãs, exemplificado pelos professores das escolas catedrais e monacais, poderia ter de iniciático no sentido de Guénon, que reserva essa palavra para designar as práticas de organizações esotéricas em sentido estrito, distinguindo-as rigorosamente de tudo quanto seja “religioso”. Pode ter havido algum elemento iniciático nas corporações de ofícios, mas não nas escolas catedrais e monacais. Lemos e Pinheiro empregam esse termo e o de “esoterismo” não porque estes sejam adequados ao tópico em discussão, mas porque sabem que eles têm conotações negativas para o público a que se dirigem e imaginam que, usando-os, podem criar uma aura de má impressão em torno da minha pessoa. O sr. Lemos, num descarada ostentação de superioridade olímpica, montada, por involuntária ironia, com um erro de gramática que faz contraste grotesco com o pedantismo de um termo latino desnecessário, declara: “Faz muito sentido que gente vinda do jornalismo e do esoterismo, pace Olavo, confundam as bolas.” Podem dizer até que venho do comércio de amendoins em praça pública; não ligo; mas o sr. Lemos vem da advocacia, aquela profissão já amaldiçoada em Lucas 11:52, cujos praticantes, segundo uma piada célebre, só se distinguem dos urubus porque ganham certificados de milhagem.

[3] V., adiante, nota 22.

[4] Para os que não a conhecem, já que as novas gerações perderam o melhor do passado, aí vai a piada. Dois ingleses, Paul e Peter, estavam tomando chá e conversando numa tarde aprazível, quando Peter observou:
— Sabe, Paul, eu sonhei com você ontem.
— Não diga! Como foi o sonho?
— Sonhei que você morreu, foi enterrado, no seu túmulo nasceu uma plantinha, veio uma vaca, comeu a plantinha, fez cocô, e eu, ao ver o cocô, exclamei: “Oh, Paul, como você está mudado!”
Paul, imperturbável, respondeu:
— Que interessante! Sabe que eu também sonhei com você?
— Não diga! Como foi?
— Sonhei que você morreu, foi enterrado, no seu túmulo nasceu uma plantinha, veio uma vaca, comeu a plantinha, fez cocô, e eu, ao ver o cocô, exclamei: “Oh, Peter, você não mudou em nada.”

[5] Perdoem a ruindade gramatical. Nem o sr. Pinheiro nem o sr. Lemos são muito bons de concordância.

[6] É objetivamente estranho, mas também significativo da mentalidade com que estamos lidando, que, após quase um século de estudos científicos sobre o substrato não-verbal da comunicação verbal, que teve entre seus pioneiros o psicoterapeuta Milton Erickson (1901-1980), a expressão não evoque, na cabeça do sr. Pinheiro, senão os “sonhos tradicionalistas e perenialistas”, como se fossem a única referência histórica a respeito. A obsessão de fazer de mim um perenialista, um guénoniano, essa sim é que é um sonho: o sonho de fazer de mim uma figura suspeita, de modo que as pessoas não ouçam o que digo e só me enxerguem através de uma rede de prevenções bobocas tecidas em torno da minha pessoa pelos srs. Lemos e Pinheiros.

[7] Theodore M. Porter, Trust in Numbers. The Pursuit of Objectivity in Science and Public Life, Princeton, NJ, Princeton University Press, 1995, pp, 13-13.

[8] Sobre as bases dessa disciplina, V. Randall Collins, The Sociology of Philosophies: A Global Theory of Intellectual Change, Harvard University Press, 1998.

[9] Harry Redner, The Malign Masters: Gentile, Heidegger, Lukács, Wittgenstein. Philosophy and Politics in the Twentieth Century, New York, St. Martin’s, 1997, pp. 178-9.

[10] Karl Löwith, My Life in Germany before and after 1933, Urbana and Chicago, University of Illinois Press, 1994, pp. 28-9.

[11] Redner, op. cit., p. 189.

[12] Hervé Hamon et Patrick Rotman, Les Intellocrates. Expédition em Haute Intelligentsia, Paris, Ramsay, 1981.

[13] Processo eficazmente descrito por Russel Jacoby em The Last Intellectuals: American Culture in the Age of Academe, New York, Basic Books, 2000.

[14] C. Wright Mills, Sociology and Pragmatism. The Higher Learning in America, ed. Irving Louis Horowitz, New York, Galaxy Books, 1966.

[15] Redner, op. cit., p. 190.

[16] Isso não significa que a filosofia seja uma “cosmovisão”. Ao contrário: a cosmovisão já está dada, de algum modo, no material cultural recebido pelo filósofo. A filosofia é um elaboracão clarificante e corretiva da cosmovisão. Posso dar explicações mais detalhadas sobre isso num outro contexto, mas aqui isso nos levaria para longe do assunto.

[17] V. Alois Dempf, Die Hauptformen mittelalterlicher Weltanschauung, München-Berlin, Oldenburg, 1925.

[18] A questão surgiu em 1923 com o livro de Werner Jaeger, Aristoteles: Grundlegung einer Geschichte seiner Entwicklung (tradução inglesa de Richard Robinson, Aristotle: Fundamentals of the History of His Development, 1934).

[19] Trad. francesa, Architecture Gothique et Pensée Scholastique, Paris, Éditions de Minuit, 1981.

[20] Eis aqui a ordem cronológica dos fatos:
1140 Reconstrução do coro da Abadia de Saint Denis em estilo gótico.
1160 Catedral gótica de Laon.
1195 Começa a construção da catedral gótica de Bourges.
1220 Fica pronta a estrutura principal da catedral gótica de Chartres.
1231 Alexandre de Hales começa a escrever a Summa Universae Theologiae, deixada incompleta.
1241 Planos da Sainte-Chapelle, que começa a ser construída em 1246 e, rapidamente completada, é consagrada em 26 de abril de 1248.
1245 Sto. Alberto chega a Paris.
1260 Boaventura começa a lecionar sobre o Livro das Sentenças de Pedro Lombardo, de onde sairá seu Comentário.
1264 Summa contra Gentiles, de Sto. Tomás de Aquino.
1265-1274 Tomás redige a Suma Teológica.
1266-1308 Vida de John Duns Scot.

[21] V. José Ignacio Cabezón, Scholasticism: Cross-Cultural and Comparative Perspectives, Herndon, VA, State University of New York Press, 1998.

[22] V. maiores explicações no meu livro Aristóteles em Nova Perspectiva. Introdução à Teoria dos Quatro Discursos, Rio, Topbooks, 1996 (2ª. ed., São Paulo, É Realizações, 2006).

[23] Isso já basta para mostrar quanto o sr. Pinheiro, ao contrapor o não-verbal ao verbal como se fossem incompatíveis um com o outro, e ao qualificar o primeiro de “fuga consumada”, só exemplifica o seu despreparo de amador para lidar com essas questões. Para ele, a busca da “realidade” começa da abstração verbal para cima, como se a realidade existisse só nos conceitos e discussões filosóficas, sem o suporte do mundo físico e cultural em torno e sem a imersão do filósofo no tecido vivo da sociedade humana. O que ele chama de “realidade” é o que eu chamo de “fuga” e vice-versa.

De Sócrates a Júlio Lemos (A filosofia e seu inverso II)

Olavo de Carvalho

7 de abril de 2012

I. A filosofia e seu inverso
II. De Sócrates a Júlio Lemos
III. Os filodoxos perante a História

O sr. Júlio Lemos, que não perde a oportunidade de puxar uma discussão, chama Sócrates de “chato-mor” por ter praticado o mesmo costume dois mil e quatrocentos anos atrás.[1] Mas aí cessa toda a semelhança. Entre outras inumeráveis diferenças, é notório que Sócrates chamava seus adversários pelos nomes, enquanto o sr. Lemos, ao criticar os vícios da filosofia circundante, deixa sempre ao leitor a incumbência de descobrir quem seriam os viciados, se é que eles existem fora da cabeça do articulista. Tão avesso é ele à menção de pessoas de carne e osso, que seus artigos de crítica deveriam vir precedidos do disclaimer: “Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.” Os diálogos socráticos, ao contrário, sempre se travam com personagens reais da vida ateniense e tratam de problemas cuja presença na sociedade é patente aos olhos de todos. Sócrates combateu bravamente a corrupção da polis, ao passo que o sr. Lemos se mantém a uma prudente distância deste baixo mundo, consagrando seus talentos a especulações lógico-matemáticas – ou a discussões com filósofos hipotéticos – que não ofendem as autoridades constituídas. Talvez ele se envergonhe um pouco disso no íntimo, mas em suas declarações públicas o que transparece é, ao contrário, aquela ostentação de superioridade distante, quase blasée, do profissional tarimbado que consente, por mera caridade, em dirigir umas palavrinhas ao amador intrometido.

Todos sabemos em que consiste essa superioridade: o sr. Lemos desempenha, no teatro imaginário que ele desejaria lotar de uma platéia real, o papel do argumentador rigoroso, científico, universitário, em contraste com os palpiteiros que “fazem filosofia de modo tosco, deixando de lado a especulação para inculcar nos ouvintes e leitores critérios morais, condenar comportamentos ou provocar a indignação”. Entre os culpados de semelhante descalabro, ele inclui Sócrates, Platão e Aristóteles, sempre ocupados em indicar aos incautos o caminho do bem, da sabedoria e da felicidade – tarefa que, segundo ele, cabe à “ética prática” ou às técnicas de “auto-ajuda”, pouco ou nada tendo a ver com a autêntica e séria filosofia, representada eminentemente, ao que tudo indica, pelo próprio sr. Júlio Lemos.

Em apoio das suas singelas pretensões, ele apela à autoridade do Bem-Aventurado Cardeal John Henry Newman, o qual, proclamando no Capítulo 5 de Idea of a University[2] que “o conhecimento é uma coisa, a virtude é outra” e que “a filosofia, por mais iluminada, não fornece nenhum comando sobre as paixões, nem motivações influentes, nem princípios vivificantes”, cita o exemplo de um personagem do romance Rasselas, Prince of Abissinia, de Samuel Johnson – um filósofo que, diante da filha morta, confessava não receber nenhum consolo da ética de autocontrole que havia ensinado a seus discípulos (o sr. Lemos, com o rigor que lhe é peculiar, conjetura que o homem é um pitagórico, quando com toda a evidência se trata de um estóico). O episódio antecipa o protesto lancinante de Franz Rosenzweig, que, espremido numa trincheira da I Guerra, entre pilhas de cadáveres, notava a perfeita impotência da filosofia acadêmica ante a carnificina mundializada.

Seria ótimo se o sr. Lemos, antes de usar um texto clássico como porrete, aprendesse a lê-lo. O trecho citado não contrasta a filosofia moralizante com a “filosofia científica” que o sr. Lemos tanto aprecia, mas com a fé cristã. Quando Newman sugere que o ensino da filosofia, em vez de fazer falsas promessas de salvação, deveria tratar mais modestamente de desenvolver no estudante as virtudes intelectuais, o sr. Lemos, tentando fazer do cardeal um apologista da escola analítica avant-la-lettre, insinua que essas virtudes consistem tão-somente em “precisão conceitual, clareza e rigor lógico”, isto é, as qualidades padronizadas da comunicação científica no sentido atual. Qualquer tentativa de ir um pouco acima disso é, segundo ele, pura superstição. Newman, no entanto deixa claro que não é nada disso. O que o ensino da filosofia pode e deve desenvolver, segundo ele, é “um intelecto cultivado, um gosto delicado, uma mente cândida, equitativa e desapaixonada, uma conduta nobre e cortês” (a cultivated intellect, a delicate taste, a candid, equitable, dispassionate mind, a noble and courteous bearing in the conduct of life). Quem, lendo essas palavras, pode falhar em compreender que as virtudes intelectuais a que o cardeal alude são, também e intrinsecamente, virtudes morais, precisamente aquelas que, segundo o sr. Lemos, a filosofia não pode ensinar de maneira alguma? Pois Newman, explicitamente, faz delas o objetivo mesmo do ensino da filosofia numa universidade (they are the objects of a University).

Só o que Newman acentua é que essas virtudes são inferiores às da santidade cristã. É o caso de exclamar, como o cidadão lisboeta a quem um turista perguntava se sabia a localização do Mosteiro dos Jerônimos: “Ó raios, e quem é que não sabe?” O cardeal esclarece, com toda a razão, que a educação filosófica “produz não o cristão, não o católico, mas o gentil-homem”. Ele está longe de desprezar as virtudes do gentil-homem; ao contrário, professa advogá-las e insistir na sua importância. Adverte, apenas, que elas não são garantia de santidade, nem mesmo de conscienciosidade; que podem mesmo estimular o pedantismo, a arrogância e o espírito de controvérsia. Tudo isso é de uma obviedade exemplar, mas só o sr. Lemos pode enxergar aí um apelo a que a filosofia se abstenha de todo ideal moral e se concentre na pura busca da exatidão lógica, tomada como um fim em si. Quando Newman fala de “estudo desinteressado”, ele está se referindo, ostensivamente, apenas à clássica distinção entre artes liberais e servis. Estas últimas visam a finalidades utilitárias, aquelas ao aperfeiçoamento da mente humana. Ao descrever esse aperfeiçamento como uma síntese de valores cognitivos, éticos, estéticos e sociais, condensando-a no símbolo do “gentil-homem”, ele exclui antecipadamente, e da maneira mais categórica possível, a interpretação que o sr. Lemos quer impingir às suas palavras. O “estudo desinteressado” desinteressa-se de suas aplicações técnicas, industriais e econômicas, não de seus efeitos psicológicos e morais na mente do estudante, que são, segundo Newman, sua própria razão de ser.

Também não escapará ao leitor atento o detalhe altamente significativo de que, como exemplos de falsos salvadores, Newman cita somente filósofos de segundo time, como Sêneca, Cícero e Catão, e também, por ironia, Lorde Francis Bacon, um dos precursores da “filosofia científica” do sr. Lemos (a menção passageira a Sócrates tem outro sentido, como veremos adiante). Nem uma palavra sobre (muito menos contra) a filosofia cristã de Sto. Tomás, de S. Boaventura, de Duns Scot, de Raimundo Lúlio, cujas finalidades edificantes e até catequéticas rebrilham a cada página desses autores. Quanto à filosofia antiga, da qual a cristã medieval deriva em linha direta, o cardeal, em vez de fazer troça de seus ideais morais ou de reduzir sua contribuição, como o desejaria o sr. Lemos, ao desenvolvimento da lógica, das matemáticas e das ciências físicas, faz dela um dos pilares da própria condição humana:

“Enquanto formos homens, não podemos escapar de ser, em grande medida, aristotélicos, pois… em muitos assuntos, pensar corretamente é pensar como Aristóteles; e somos seus discípulos querendo ou não, embora possamos não sabê-lo”. Um desses assuntos foi, decerto, a lógica, e o que Aristóteles pensou a respeito é que ela não é nem mesmo uma parte integrante da filosofia, e sim apenas um treinamento preliminar que, uma vez absorvido, pode ser esquecido no fundo e deixar espaço a modalidades menos formalizadas de investigação, mais compatíveis com a natureza esquiva de certas questões. Embora ensinando que a lógica é a forma por excelência da prova científica, Aristóteles adverte que em todas as investigações o problema fundamental não é a exata demonstração lógica, mas a descoberta das premissas, na qual a lógica é absolutamente impotente, devendo ceder lugar à dialética, à retórica e até à imaginação poética. Uma filosofia que pretendesse reduzir-se à lógica, ou mais ainda à lógica das ciências, seria no entender de Aristóteles-Newman a aberração das aberrações.

Newman, seguindo nisto a tradição das universidades medievais, divide os estudos em três níveis: as artes utilitárias, as artes liberais (que ele chama indiferentemente de “filosofia” ou “ciência”) e a religião cristã. Se o segundo nível não deve usurpar as prerrogativas do terceiro, também não deve rebaixar-se ao primeiro – o que, observo eu, aconteceria necessariamente se a filosofia se reduzisse à lógica e o aperfeiçoamento da mente à conquista da “precisão conceitual, clareza e rigor lógico”, fazendo abstração das qualidades éticas, estéticas e sociais que segundo Newman compõem a inteligência bem formada. Se a filosofia não assegura a salvação da alma, isso não significa que seja moralmente inócua ou que a única qualidade requerida na sua prática seja, como pretende o sr. Lemos – deformando nisto monstruosamente o pensamento de Newman –, o “amor aos estudos”. O amor aos estudos, sem o correspondente amor à verdade, é um convite àquele pedantismo, àquela presunção acadêmica que Newman condena com tanta veemência, e da qual as lições do sr. Lemos fornecem uma amostra indisfarçável. Pior ainda seria reduzir o amor à verdade a um simples conjunto de precauções lógico-técnicas, omitindo que sua conquista é uma luta constante de toda a alma, envolvendo sentimentos, hábitos, valores e, acima de tudo, o esforço de autoconhecimento sem o qual a “verdade” se torna uma fórmula oca, pronta para ser repetida no palco universitário ou numa tela de computador sem nenhum ato de consciência correspondente. Se, neste como em outros assuntos, “pensar corretamente é pensar como Aristóteles”, cabe lembrar que, segundo o Estagirita, a verdade não está nas proposições e sim no juízo, no ato interior da inteligência humana que as aprova ou desaprova. Esse ato só pode ser efetivado por um ser humano real: tudo o que a técnica lógica pode fazer é simbolizá-lo, no papel ou num HD, por um signo negativo ou positivo.

Se é indiscutível que a filosofia não fornece nem deve prometer a salvação da alma, menos convincente é a argumentação do cardeal contra os poderes consoladores da meditação filosófica nos instantes de perigo e sofrimento. Em primeiro lugar, ela faz caso omisso do precedente histórico de Boécio, que, condenado à morte, encontra na prisão a consolatio philosophiae. Em segundo lugar, passa, sem a menor justificativa, ao largo da conduta heróica de Sócrates diante do tribunal que o condenou (já veremos o que o sublime sr. Lemos tem a dizer a respeito). Em terceiro, omite que a síntese escolástica de fé e razão implica, quase que por necessidade intrínseca, o apelo auxiliar à razão como reforço da fé nos momentos difíceis da vida.

O exemplo a que Newman recorre – o filósofo de Rasselas – é ainda mais desastroso, em primeiro lugar por ser fictício, em segundo lugar por presumir que o pranto diante de uma filha morta seja um vício redibitório, um argumento fulminante contra as crenças de um pai sofredor. Se assim fosse, as lágrimas da Virgem Santíssima ante o cadáver de Nosso Senhor Jesus Cristo teriam dado cabo do cristianismo de uma vez para sempre. E, caso não chegassem a fazê-lo de maneira convincente, a debandada dos apóstolos, o grito de desespero do Filho abandonado no alto da Cruz e as três defecções de Pedro antes de o galo cantar completariam o serviço para Voltaire nenhum botar defeito.

Nenhum exemplo de fraqueza humana depõe jamais contra a dignidade de uma crença, religiosa ou filosófica, nem atenua o valor da mensagem que aparenta desmentir. Reconhece-o o próprio sr. Lemos, ao afirmar que, se um filósofo “entende mais de ética tomista que São Felipe Néri e privadamente age como um irresponsável, a culpa não será da ética filosófica, mas dele”. Infelizmente, o nosso professor de rigor lógico, após admitir essa obviedade, ainda imagina dizer algo de substantivo contra a filosofia como modo de vida ao alegar que “é muito comum que o moralismo filosófico ande de mãos dadas com a perversão privada”. À luz daquilo mesmo que ele disse na frase anterior, a resposta cabal a essa observação é: “E daí?”

Já expliquei mil vezes – pensando, nisto, como Aristóteles – que o argumentum ad hominem só tem validade cognitiva quando é também, e inseparavalmente, um exemplum in contrarium, o desmentido factual de uma generalização anterior, como por exemplo quando Hobbes, após proclamar que os seres humanos só agem por desejo de poder, professa escrever o Leviatã para o puro bem da humanidade sofredora, sem nenhuma ambição pessoal; ou quando Maquiavel, ensinando que o Príncipe deve matar seus colaboradores tão logo chegue ao poder, se omite de incluir nisso o principal dos colaboradores: o autor do plano, isto é, ele próprio; ou ainda quando o burguês Karl Marx, afirmando que só os proletários podem ter uma visão objetiva da história, passa a nos oferecer algo que ele jura ser a primeira visão objetiva da história. Fora desses casos, o argumentum ad hominem só vale como truque sujo ou, no melhor dos casos, como vaga sugestão de uma possibilidade a ser investigada.

Mesmo que todos os moralistas do mundo fossem imoralistas na prática, isso em nada deporia contra a dignidade ou a necessidade da moral, sem mesmo levar em conta a possibilidade de que as denúncias de imoralismo sejam obras de intrigantes mal intencionados. Nesse sentido, a observação de Newman, de que muitos filósofos foram ridicularizados como hipócritas, entre os quais Sócrates (nas Nuvens de Aristófanes), é o protótipo mesmo do argumento suicida, que se rebela contra o próprio argumentador, já que a literatura satírica voltada à denúncia da hipocrisia religiosa, desde os Carmina burana a Rabelais, de Bocaccio a Molière, de Diderot e Stendhal a Alessandro Manzoni e de Cervantes a James Joyce (sem contar os papas atirados ao Inferno de Dante), transcende infinitamente, em volume, qualidade e importância histórica, tudo o que os gozadores de todos os tempos escreveram contra os filósofos. E será preciso lembrar que ninguém no mundo foi (e é ainda) mais alvo de chacotas do que o próprio Cristo?

Um ponto que Newman não consegue esclarecer é o da relação exata que há entre a formação do gentil-homem e a educação para a fé cristã. Dizer que a primeira não basta para produzir a segunda é mais próprio do Conselheiro Acácio que de alguém que deseja elucidar o problema. Que, no entanto, toda educação liberal seja inútil na catequese da gente simples, do povão – coisa que o próprio Newman não afirma – já é algo de bastante duvidoso, como se vê pelo fato de que os primeiros esforços de alfabetização universal partiram da Igreja mesma, no tempo de Carlos Magno, e de que as artes mecânicas, praticadas com afinco, terminaram por despertar na inteligência alguma curiosidade de ordem científica ou filosófica que elas mesmas não podem, por si, satisfazer. Mas e a formação religiosa do erudito, do professor, do sacerdote, do monge? Será a educação preliminar da alma nas virtudes mundanas do gentil-homem uma etapa dispensável ou então nada mais que um adestramento técnico sem nenhum peso moral em si mesmo?

A História responde, decididamente, que não. Newman inspira-se no exemplo da universidade medieval do século XIII, mas hoje sabemos, e ele na época não poderia saber, pois só a historiografia posterior o revelou, que aquela instituição, longe de representar o cume da educação na Idade Média, não constituiu senão a cristalização tardia, institucionalizada, mais formalizada e menos vigorosa, daquilo que se ensinava nas chamadas “escolas catedrais” dos séculos X a XII.[3] E o que nestas se ensinava eram precisamente as qualidades do gentil-homem – “um intelecto cultivado, um gosto delicado, uma mente cândida, equitativa e desapaixonada, uma conduta nobre e cortês” – como preparatórias à aquisição das virtudes cristãs, no mesmo sentido em que Clemente de Alexandria proclamara ser a filosofia “o pedagogo que conduz ao Cristo”. O ensino aí alcançou tais alturas, e tão visíveis eram os seus frutos de bondade e sabedoria, que se afirmava, na época, que os anjos mesmos o invejavam. Malgrado o seu fulgurante e breve prestígio intelectual, as universidades que vieram depois, com toda sua história de greves, arruaças e até morticínios e a sua queda posterior numa esterilidade deprimente, jamais mereceram nem mereceriam louvor semelhante. Não é injusto dizer que os Estatutos da Universidade de Paris em 1215, transformando a filosofia em profissão regulamentada e meio de ascensão social, muito contribuiram para a perda da inspiração recebida das escolas catedrais e para o afluxo de toda sorte de carreiristas ávidos de poder e prestígio, inflados de habilidade técnica e alheios aos ditames da moral religiosa e até mesmo secular. Não espanta que já em 1229 eclodissem ali motins estudantis que duraram dois anos e deixaram um rastro de cadáveres por toda parte.

Relevante, para a compreensão desse processo, é a seguinte diferença. Enquanto as universidades privilegiavam o ensino formalizado, baseado em textos e documentado em novos textos, criando os monumentos de exposição escrita que hoje representam para nós a figura visível do escolasticismo, as escolas catedrais faziam exatamente o oposto: de um lado, não visavam à produção de “obras filosóficas”, mas de personalidades humanas que se destacassem pela beleza, força, equilíbrio e pureza de intenções, sem a menor preocupação de deixar documentos que atestassem a sua passagem sobre a Terra; de outro lado, davam menos importância, na prática pedagógica, ao estudo dos textos ou à aquisição de técnicas do que à influência direta do mestre como exemplo vivo das virtudes intelectuais e morais a ser infundidas no discípulo.

Aproximavam-se notavelmente, sob esse aspecto, do círculo socrático e da Academia platônica originária. Os melhores intérpretes do platonismo – Paul Friedländer. A. E. Taylor, Paul Shorey, Julius Stenzel, Eric Voegelin e Giovanni Reale, entre outros – ensinam que jamais esteve nos propósitos de Platão criar uma doutrina formalizada, condensada num sistema de proposições que pudesse ser repassado, impessoalmente, a destinatários genéricos, como num tratado de química ou de lógica. Escreve Stenzel: “Ele não concebeu jamais o aprendizado como coisa de puro intelecto, mas sempre como uma influência total de homem a homem, como um ser formado e modelado pela íntima relação e sociedade com outro ser humano”[4] Mesmo no concernente aos aspectos mais aparentemente “impessoais” e “ científicos” do seu ensinamento o mestre não prescindia do exemplo pedagógico pessoal. Taylor: “Uma das convicções mais firmes de Platão era que nada que valesse a pena aprender podia ser aprendido por mera ‘instrução’: o único método de ‘aprender’ a ciência era engajar-se efetivamente, em companhia de uma mente mais avançada, na busca da verdade.”[5]

O que tornou ainda mais imprescindível essa influência direta de alma para alma foi a circunstância social mesma em que se originou o círculo socrático. Sócrates não entra em cena puxando discussão contra idéias quaisquer, nem muito menos, como o sr. Lemos, desafiando uma corrente minoritária (a filosofia como “norma de vida”) que ele mesmo declara ser alheia à filosofia “séria”. Ao contrário: Sócrates se volta contra tudo aquilo que, no meio ateniense, é opinião dominante, tida como respeitável e séria no mais alto grau. Graças ao próprio empenho de Sócrates e de Platão, a doxa ateniense nos aparece hoje coberta de ridículo, mas na época ela era tão respeitada que desafiá-la podia ser punido com a morte, como de fato o foi. É apenas um estereótipo escolar dizer que, contra essa constelação de crenças estabelecidas, Sócrates opunha o apelo à “razão”. Da razão faziam uso tanto ele quanto seus contendores, argumentando, silogizando e concluindo. Se Sócrates o fazia com mais destreza do que eles, a superioridade qualitativa não implica uma diferença de substância. A diferença específica de Sócrates reside num estrato mais profundo da experiência da discussão. Enquanto seus adversários repetem idéias correntes, apegando-se à segurança dos papéis sociais que lhes infundem a ilusão de estar certos por pensar de acordo com a maioria, ou com a classe dominante, Sócrates fala apenas como indivíduo humano, sem respaldo em qualquer autoridade externa. E não apenas faz isso, mas apela ao próprio testemunho íntimo de seus contendores, o que equivale a despi-los de suas identidades sociais e induzi-los à confissão direta, sincera, humana, de seus verdadeiros sentimentos. Um dos recursos de que ele se serve para isso é convidar cada um a imaginar sua própria morte e a vida no além-túmulo. A realidade da morte e a perspectiva do julgamento dissolvem as defesas  sociais – as “racionalizações”, diria um psicanalista – e equalizam os seres humanos na consciência de seu destino concreto. O mero confronto de opiniões transfigura-se em diálogo entre as almas, culminando na periagoge, a virada de 180 graus na direção da consciência que abandona a miragem coletiva e, voltando-se para dentro, aí descobre as bases permanentes da sua existência.

Forçar os espectadores a despir-se de sua identidade civil e política para levá-los contemplar sem defesas a fragilidade da condição humana era já o objetivo da tragédia grega, que por isso mesmo escolhia como herói, com freqüência, o estrangeiro, o desconhecido, o rejeitado e marginalizado, de modo que todo senso de identificação nacional ou social cedesse lugar à humanidade nua e crua das experiências fundamentais. Daí que Nicole Loraux, num ensaio memorável, definisse a tragédia como “o gênero antipolítico” por excelência.[6]

Foi só quando a tragédia já ia perdendo eficácia como forma simbólica que uma nova modalidade mais diferenciada e explícita de apelo à humanidade profunda se tornou necessária e possível. Mais que pela sua técnica argumentativa, deficiente sob tantos pontos de vista, Sócrates é notável pela sua argúcia psicológica, ou psicopedagógica, da qual não encontramos similar antes de Montaigne (século XVI), de Pascal (século XVII) e do advento da novelística moderna no século XVIII. Ao longo de todos os diálogos socráticos, não se trata nunca de desmantelar argumentos simplesmente, mas de despertar o senso moral por meio de um aprofundamento cognitivo das experiências fundamentais. É impossível, aí, separar o que é “investigação filosófica” do que é “educação moral”, já que esta orienta aquela e recebe dela o seu fundamento experimental.

Acontece que nem sempre a operação é bem sucedida. Às vezes o ouvinte é tão apegado à sua identidade social que não pode imaginar-se desprovido dela, nu e indefeso, nem por um minuto. No afã de esquivar-se da experiência íntima, de furtar-se à periagoge, ele apela a todos os subterfúgios, que vão do raciocínio fantasioso[7] à chacota e às palavras ameaçadoras, ou então retira-se do diálogo. Aí a conclusão que se impõe é que estamos diante da inversão formal e paradigmática da figura do filósofo: o filodoxo, “amante da opinião”.

Essa oposição não é casual, nem mero artifício de retórica. A estrutura inteira da República e de outros diálogos está montada em cima de pares de opostos aos quais Platão dá um sentido estável e que se incorporam na sua linguagem técnica. Nem todos esses pares, no entanto, sobreviveram na história da filosofia: alguns conceitos separaram-se de seus opostos e adquiriram uma vida ficcional autônoma sob a forma de fetiches verbais consagrados. Explica Eric Voegelin:

“Platão criou seus pares de conceitos no curso da sua resistência à sociedade corrupta que o rodeava. Da luta concreta contra a corrupção circundante, no entanto, Platão emergiu vencedor com efetividade histórica mundial. Em conseqüência, o lado positivo dos seus pares tornou-se a ‘linguagem filosófica’ da civilização ocidental, enquanto o lado negativo perdeu seu status de vocabulário técnico… A perda da metade negativa destituiu a positiva do seu sabor de resistência e oposição, e deixou-a com uma qualidade de abstratismo que é profundamente alheia à concretude do pensamento platônico… A perda mostrou-se maximamente embaraçosa no par philosophos e philodoxos. Em inglês temos philosophers, mas não philodoxers. A perda é, neste caso, peculiarmente embaraçosa, porque, na realidade, temos uma abundância de filodoxos; e, como o termo platônico que os designava se perdeu, referimo-nos a eles como ‘filósofos’. No uso moderno, portanto, chamamos de filósofos precisamente as pessoas contra as quais, como filósofo, Platão se opunha. E uma compreensão da metade positiva do par se tornou hoje praticamente impossível, exceto para uns poucos eruditos, porque, quando falamos em ‘filósofos’, pensamos em filodoxos.”[8]

Newman, falando em “filósofos”, pensa precisamente em filodoxos,  sem saber que o faz. Daí a ambigüidade um tanto constrangedora com que ele deprecia as ambições moralizantes dos filósofos ao mesmo tempo que se declara adepto e seguidor de uma filosofia tão obviamente moralizante como o é a de Aristóteles. Daí também a gafe monumental de acompanhar Samuel Johnson quando este faz troça das lágrimas de um pai diante do cadáver da filha.

Mas o filodoxo não se define só por sua oposição à pessoa do filósofo, e sim, ainda que sem percebê-lo, ao próprio fundamento último da filosofia platônica (e, por extensão, de toda a filosofia cristã): “Platão, explica Voegelin, fala do filodoxo como o homem que não pode suportar a idéia de que ‘o belo, ou o justo, ou o que quer que seja, sejam um e o mesmo.’”[9] Voegelin lembra a sentença de Xenófanes: “O Um é o Deus”. Podemos também evocar os “transcendentais” de Duns Scot, Unum, Verum, Bonum, que se convertem uns nos outros. Tanto em Platão quanto em Aristóteles ou em toda a filosofia escolástica, o Supremo Bem não é um “valor”, muito menos uma “criação cultural”, mas a realidade suprema, o ens realissimum, fundamento primeiro e objeto último de todo conhecimento.

A repulsa que isso causa à sensibilidade moderna é notória. Desde Kant, a separação abissal e intransponível entre “realidade” e “valor” consagrou-se como um dogma incontestável da mitologia universitária, sem que ninguém perceba que ela se auto-anula no momento em que, professando expressar um dado incontornável da realidade, se consagra como um valor cultural.

Max Weber, hipnotizado pela visão do abismo intransponível, mas ansiando por encontrar um fundamento moral que justificasse sua busca da verdade científica, chegou a cair numa crise de paralisia nervosa, ficando cinco anos inutilizado num sofá, por não conseguir escapar do engano trágico que fazia de uma situação histórica passageira um princípio fundante de todo conhecimento científico. A “independência entre as esferas de valores”, como ele a chamava, é o dogma central da filodoxia. Ela não resulta da natureza das coisas, mas do fato de que, apegados a suas identidades sociais de professores, de cientistas, de artistas ou de pregadores, muitos indivíduos, em certas épocas, se vêem incapacitados de descer à profundidade interior em que se revela a unidade da experiência humana:  confundindo a incompatibilidade entre suas linguagens profissionais respectivas com uma separação ontológica objetiva entre os domínios da realidade, não têm sequer a hombridade weberiana de reconhecer que estão doentes. Realizam, assim, a profecia de Heráclito, segundo a qual os homens despertos vivem num mesmo mundo, ao passo que os adormecidos refluem para seus respectivos mundos mutuamente incomunicáveis. Vários sintomas assinalam essa patologia. Um deles é o que denomino “moral arbitrária”: o sujeito proclama que os valores morais não têm nenhuma base científica nem defesa racional possível, mas continua agindo exteriormente como se acreditasse no bem e na virtude, ou naquilo que ele assim denomina. Sugere, assim, que sua conduta ética, ou aparentemente ética, não deriva do Supremo Bem, mas da sua própria, misteriosa, arbitrária e inexplicável bondade pessoal. É a forma de autobeatificação mais querida dos intelectuais céticos e materialistas.

Outros, como o próprio sr. Lemos, preferem consagrar a separação abissal entre fatos e valores como se fosse ela mesma o valor supremo, daí proclamando que a “ética prática” não tem nada a ver com a sua “filosofia séria”. O sr. Lemos, com toda a evidência, confunde filósofos com filodoxos porque ele mesmo é um destes últimos.

A fé inocente com que ele aceita como absoluto a intransponível o divórcio entre o real e o bem, tomando simples nomes atuais de profissões ou de disciplinas (“ética prática”, “auto-ajuda”, “ciência”, “filosofia” etc.) como se correspondessem a divisões objetivas e eternas na estrutura do cosmos, evidencia que ele não entende, nem muito menos assume como sua, a obrigação número um do filósofo, que é a busca da unidade para além e por cima de todos os abismos e dificuldades que a cultura – a doxa – pode ter espalhado ao longo do caminho. Separando o Verum e o Bonum, ou antes, aceitando acriticamente essa separação tão cara à doxa contemporânea como se fosse um dado inquestionável da realidade mesma e não a simples cristalização histórica de uma notória dificuldade de comunicação entre escolas e estilos de pensamento, ele toma a desordem da cultura como se fosse a ordem cósmica e, portanto, bloqueia – para si mesmo e para quem lhe dê ouvidos – toda possibilidade de aspiração ao Unum. Se, depois disso, ele continua se apresentando como um porta-voz da “razão”, é evidente que ele jamais se perguntou o que pode haver ainda de “racional” num mundo de onde a unidade foi expulsa de uma vez para sempre e a divisão convencional do trabalho se tornou o único princípio metafísico restante. Ou seja: a “razão” de que ele se gaba é um estereótipo verbal apenas, não algo cuja experiência ele tenha jamais sondado em profundidade ou sequer imaginado que devesse sondar. Raramente se viu a devoção servil à doxa brilhar com tão obsceno esplendor.

Desde a posição existencial frágil e vacilante em que isso o coloca, é inevitável que ele não possa argumentar senão falsificando o sentido dos textos que cita e cometendo, sob a ostentação de “rigor lógico”, os ilogismos mais pueris e desengonçados. Como mesmo isso não baste para camuflar sua insegurança, ele parte para a psicose historiográfica e, como diria uma velha expressão popular francesa, pète plus haut que son cul: sem qualquer explicação, sem nos dar nem a mais mínima idéia do que pode havê-lo conduzido a tão inusitada opinião, ele declara peremptoriamente que o heroísmo de Sócrates antes os juízes foi “uma lenda”, e inclui o filósofo entre os que, como o personagem de Rasselas, “fracassaram na adversidade”. A tranqüilidade fria e como que desinteressada com que ele se dispensa de tentar justificar essa enormidade só pode explicar-se pela confiança absoluta que ele deposita naquilo em que crê, como se o houvesse testemunhado com seus próprios olhos. Não se preocupem, portanto: o sr. Lemos esteve lá, viu tudo, e nem todos os testemunhos do mundo o demoverão da certeza de que no momento decisivo, Sócrates, em vez de dar aos discípulos um exemplo de coragem, como o acreditam Platão e outros ingênuos, fez pipi nas calças.[10]

Richmond, VA, 7 de abril de 2012.

Notas:

[1] Júlio Lemos, “Sobre uma superstição”, em http://www.dicta.com.br/, 5 de abril de 2012.

[2] O texto completo encontra-se online em http://www.newmanreader.org/works/idea/.

[3] V. C. Stephen Jaeger, The Envy of the Angels. Cathedral Schools and Social Ideals In Medieval Europe, 950-1200, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1994.

[4] Stenzel, Platone Educatore, trad. Francesco Gabrieli, Bari, Laterza, 1966, p. 17.

[5] A. E. Taylor, Plato: The Man and His Work (1926), Mineola, NY, Dover, 2001, p. 6.

[6] V. Nicole Loraux, The Mourning Voice: An Essay on Greek Tragedy, transl. Elizabeth Trapnell Rawlings. Cornell University Press. 2002.

[7] V. as observações argutas de Eric Voegelin sobre a “antropologia de sonho” que está na base das teorias contratualistas, em Plato and Aristotle. Order and History vol. III, Columbia and London, University of Missouri Press, pp. 129-131.

[8] Op. cit., pp. 119-120.

[9] Id., ibid.

[10] Mais tarde, na área de comentários, o sr. Lemos tentou justificar-se alegando que as fontes de Platão na Apologia de Sócrates são duvidosas. Com base nisso ele se acredita autorizado para afirmar categoricamente, sem fonte nenhuma, o contrário do que Platão diz. É esse o homem que quer dar lições de “rigor lógico” a um estupefato mundo. Ainda não aprendeu que entre uma dúvida e a certeza do contrário a distância é infinita.

Os filodoxos perante a História (A filosofia e seu inverso – III)

A filosofia e seu inverso

Olavo de Carvalho

15 de fevereiro de 2012

I. A filosofia e seu inverso
II. De Sócrates a Júlio Lemos
III. Os filodoxos perante a História

“A história da filosofia é uma coleção de notas-de-rodapé a Platão e Aristóteles.” (Arthur O. Lovejoy)

Se há um dado histórico do qual não se pode duvidar, é que a filosofia nasceu na Grécia e adquiriu sua forma clássica, de uma vez por todas, com Platão e Aristóteles (ambos sob a inspiração original de Sócrates). Você pode chegar a ser filósofo ignorando Sartre, Husserl, Nietzsche, até mesmo Hegel, Leibniz ou Sto. Tomás de Aquino. Mas quem não tomou um banho de imersão nos ensinamentos dos dois pais fundadores permanecerá eternamente alheio ao espírito da filosofia.

Ninguém descreveu esse espírito melhor que Eric Voegelin, quando disse que, perdido o antigo senso “cosmológico” de orientação na vida, em que a ordem da existência aparecia como uma imagem do cosmos, a filosofia emergiu como tentativa de encontrar um novo princípio ordenador já não na contemplação do universo físico, mas na interioridade da alma. Na confusão geral do mundo, o filósofo busca ordenar a sua própria alma para tomá-la como medida de aferição da desordem exterior.

Dentre os múltiplos estilos de pensamento que a filosofia universal nos oferece, o estudante sempre acaba, no fim das contas, por se apegar a algum. Formal ou informalmente, torna-se kantiano, hegeliano, marxista, nietzscheano, estruturalista, neo-empirista ou qualquer outra coisa. Mas nenhuma dessas linhas de orientação faz por si o menor sentido, se separada do projeto ordenador originário inaugurado por Platão e Aristóteles. Principalmente porque aquelas várias escolas se definem umas pelas outras dentro dos limites de um debate filosófico “profissional”, com problemas e termos estabelecidos por uma longa tradição acadêmica, ao passo que os clássicos gregos nos dão um senso de orientação muito mais abrangente, um senso de orientação não na rede das discussões universitárias, mas na vida em geral. Descartes, Kant, Husserl ou Wittgenstein nos ensinam “filosofia”, isto é, certos problemas filosóficos e certas maneiras sofisticadas de abordá-los. Mas somente em Platão e Aristóteles você aprende o que é ser um filósofo. Ser um filósofo não é a mesma coisa que dominar apenas um conjunto de técnicas intelectuais que tornem você um membro reconhecível, ou até mesmo respeitável, de uma determinada corporação acadêmica (supondo-se que a universidade as ensine realmente em vez de lhe dar somente um título destinado a encobrir a falta delas). Essas técnicas permitem que você entenda o que os filósofos estão discutindo e até formule seus palpites em linguagem academicamente aceitável, mas ninguém, em seu juízo perfeito, pensaria em aplicá-las à vida real, à vida de todos os dias, fora do âmbito profissional. Ninguém, ao tomar decisões sobre casamento, emprego, educação dos filhos, administração doméstica, ou mais ainda ao lidar com as grandes crises da existência pessoal, vai agir baseado em Hegel ou Wittgenstein. Na verdade, a simples idéia de buscar na filosofia um senso de orientação na vida real soa estranha nos meios universitários hoje em dia. Filosofia, dizem, é atividade intelectual séria, não auto-ajuda. Na hora da encrenca, esquecem a seriedade e vão buscar a ajuda de um psicoterapeuta (ou de um pai-de-santo, como tantos professores da USP). Mas é justamente nos momentos decisivos da vida, nas horas de crise e perplexidade, que Platão e Aristóteles (e, pairando acima deles, o espírito de Sócrates) vêm em nosso socorro, infundindo-nos o senso da ordem interior da alma, que fará de cada um de nós, não um profissional acadêmico, mas um spoudaios, um homem verdadeiramente adulto, humanamente desenvolvido até o extremo limite dos seus poderes cognitivos, capaz de perceber a realidade e tomar decisões desde o centro e o topo da sua consciência, e não desde as paixões de um momento, desde um oportunismo profissional, desde o temor do julgamento dos pares ou desde algum preconceito da moda.

Em força pedagógica, em poder de ordenação da alma, os escritos de Platão e Aristóteles não perdem senão para a Bíblia e as palavras dos Santos Padres e Doutores da Igreja – com uma diferença a favor deles: a Bíblia está escrita em linguagem simbólica, às vezes difícil de interpretar, e os escritos dos Padres e Doutores lotam bibliotecas inteiras, que você não conseguirá ler no prazo de uma vida, mesmo supondo-se que saia inteiro das controvérsias teológicas que atravancam o caminho.

É verdade, também, que muitos estudiosos não enxergam, em Platão e Aristóteles, senão aquilo que encontram também em Descartes, Kant ou Husserl: “questões filosóficas” para alimentar a pesquisa erudita e aquecer o debate acadêmico. Mas fazem isso porque querem, porque amam a filosofia como profissão, não como norma e sentido da vida. Nada os obriga a isso, exceto a decisão, que livremente tomaram, de buscar antes a segurança de uma identidade profissional do que a ordem da vida interior, conciliando sem maiores dramas de consciência o rigor das investigações acadêmicas com a fragmentação, desarmonia e deformidade das suas almas. Que justamente esses tipifiquem aos olhos da multidão a imagem de “filósofos” por excelência, já que a multidão nada sabe da filosofia e julga tudo pela aparência dos papéis sociais, é uma das maiores ironias da sociedade atual. Pois a orientação que adotaram na existência é o inverso exato da vida filosófica tal como a entendiam Sócrates, Platão e Aristóteles. São “filósofos profissionais” precisamente na medida em que ignoram ou desprezam o espírito da filosofia.

II. De Sócrates a Júlio Lemos

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