Leituras

Educação Liberal

Palestra de Olavo de Carvalho
Rio de Janeiro, 18 de outubro de 2001
Transcrição: Fernando Antônio de Araújo Carneiro
Revisão: Patrícia Carlos de Andrade

Sem revisão do professor

Agradeço comovido as palavras do deputado Carlos Dias e da minha querida amiga Mina Seinfeld [1]. E, aliás, essa é não somente uma oportunidade para ela falar a meu respeito, mas para contar também algumas coisas a respeito dela. A professora Mina está envolvida numa luta que é paralela à minha, onde encontra condições muito parecidas. Nós dois estamos envolvidos na luta contra as drogas, apenas a espécie de droga é que muda: sobre as drogas de que ela trata, ainda há a discussão de se serão liberadas ou não, ao passo que as drogas de que falo, não apenas estão liberadas, como são obrigatórias. A diferença é mais ou menos esta. Mas, neste esforço monumental e meritório da professora Mina, ela encontra a mesma resistência que encontro na minha área, porque todos estão contra: os drogados, os traficantes, os que têm interesse político na coisa, os indiferentes e todos aqueles que querem parecer bonzinhos – todos os politicamente corretos. E, de fato, quando você vai para um debate é exatamente como ela descreveu: são trinta pessoas para falar a favor e uma contra e depois, na transcrição, ainda cortam umas frases do que a pessoa falou e ficam lá somente três linhas, para provar que o debate foi bastante democrático. Isto é pior do que não ter debate nenhum, é uma falsificação.

Agradeço muito a meus alunos essa iniciativa. A idéia foi inteiramente deles, que têm um grande mérito em fazer isto, abrir a outras pessoas a mesma oportunidade. Nosso curso aqui no Rio tem sido quase que confidencial. Creio que existe aqui há dezoito anos e nunca foi anunciado nem avisado; continua existindo, não sei como. Em São Paulo há toda uma infra-estrutura montada, o número de alunos é bem grande, e no Paraná são cento e cinqüenta alunos. É um pouco estranho que aqui no Rio de Janeiro, que ainda é a capital cultural do Brasil, nosso curso seja tão secreto assim. Não me incomodo se dou aula para um, dois ou cem alunos: o problema é exatamente o mesmo. Ademais, esse tipo de ensino requer muito tempo para dar frutos. Calculo mais ou menos dois anos, para a pessoa começar a perceber o que está mudando em sua vida, no seu enfoque existencial.

Agora, o tema de hoje, que é a educação liberal, é mais abrangente do que a proposta do meu curso; o curso é uma das modalidades, um dos capítulos do que chamaríamos de educação liberal. Liberal não se confunde com o liberalismo político, a ideologia de Adam Smith, Herbert Spencer e outros, nem com o sentido da palavra liberal nos Estados Unidos que quer dizer esquerdista, mas tem a ver com a noção, hoje em dia puramente nominal, de profissões liberais. Profissões liberais, como o próprio nome diz, se opõem às profissões servis, que são exercidas em troca de uma remuneração. Profissões liberais são exercidas num ato de liberalidade do indivíduo; ou seja, o profissional liberal está de algum modo obrigado a exercer a sua tarefa somente por um mandamento interno, somente por um dever interno, e ele tem que exercer aquilo com ou sem remuneração, ou até mesmo pagando para exercê-la. Esse é o sentido originário. Por exemplo, o médico na ética da idade média não poderia jamais recusar um paciente que não tivesse dinheiro para pagá-lo; o advogado a mesma coisa. E, por isso mesmo, quando havia uma remuneração, esta se chamava honorário. Honorário é algo que damos ao indivíduo não pela tarefa que ele desempenhou, mas em reconhecimento da honra de sua posição na sociedade ou do mérito de seu saber. Tanto faz dar cinqüenta centavos ou cinqüenta mil, porque o que vale é a intenção.

Hoje em dia, não é mais assim. Quando consultamos um advogado a primeira coisa que ele faz é puxar uma tabela de honorários. A expressão tabela de honorários é uma contradição de termos, pois se são honorários, não há tabela. Tabelas são de salários ou de preços, tabela de honorários não é possível.

Na idade média, a formação para as profissões liberais começava com a absorção do que se chamava as artes liberais. Eram um conjunto de disciplinas, das quais três tratavam essencialmente da linguagem e do pensamento e quatro tratavam dos números, entendidos num sentido muito mais amplo do que hoje estamos acostumados a designar por este nome, e das proporções. O número seria o sentido geral da forma e da proporção. As quatro disciplinas que lidavam com o número eram a aritmética, a geometria, a música e a astronomia ou astrologia. A astrologia veio a se dividir em duas áreas: a astrologia esférica, que era o estudo da esfera celeste, e a astrologia judiciária, que era o que hoje chamamos de astrologia – uma especulação, seja científica ou outra coisa, sobre as coincidências temporais entre o que se passa no movimento dos astros e os acontecimentos terrestres. Tudo isso era considerado parte das matemáticas, ou seja, a matemática era, de modo geral, a ciência da medida e da proporção. As outras três disciplinas eram a gramática, a lógica ou dialética, e a retórica.

Esta formação básica, que geralmente começava bem mais tarde do que hoje, aos quatorze anos, visava a transmitir ao indivíduo, por um lado, o senso das proporções, o senso da forma do mundo e, por outro lado, os meios de compreensão, expressão e participação na cultura humana [2].

O que hoje chamamos de educação liberal é uma adaptação das artes liberais antigas, feita sobretudo por dois educadores, Robert Hutchins e Mortimer Adler [3], no começo de século . Nesta adaptação, as artes liberais deixam de se distinguir das artes servis e começam a se distinguir do ensino profissional. Todas as áreas de ensino visam a transmitir determinadas habilidades profissionais; as artes liberais, em contra-partida, visam a formar o cidadão em geral, o cidadão não especializado. Mais especificamente com a ênfase na idéia de cidadão da democracia, subentendendo-se democracia pelo sistema onde vale a pena discutir, onde é possível haver uma discussão e onde há uma possibilidade de que as questões sejam arbitradas por meio da razão e não de motivos desconhecidos que uma autoridade possa ter para decidir assim ou assado.

A discussão é evidentemente inerente à própria idéia de democracia. Mas, por outro lado, a discussão é perfeitamente inútil se não há nenhum critério racional para arbitragem das discussões. Se não há nenhum meio de os lados em disputa provarem as suas razões, ou seja, se todas as razões se equivalem, então a discussão evidentemente não vai dar em nada e a coisa no fim será resolvida pelo meio da força. Pode ser a força física ou a força emocional, o apelo emocional da propaganda.

Adler e Hutchins eram pessoas que pensavam politicamente de maneira muito diferente entre si: Adler era mais conservador e Hutchins era definitivamente esquerdista. Mas, sabendo que há um compromisso inerente entre a idéia de democracia e a idéia de razão, achavam que podiam organizar um novo sistema de ensino não apenas baseado na tradição das artes liberais, mas na experiência acumulada do ensino das elites americanas. Nos Estados Unidos, antes mesmo da independência, se formaram vários colégios para a educação da elite que, quase instintivamente, adotaram como mecanismo básico de ensino, a leitura e a absorção do legado dos clássicos. Entendemos por clássico, uma obra que tem valor e interesse permanente, que tenha dado alguma contribuição que permanece eficaz ao longo dos tempos; aquela obra que, a despeito do tempo que passou depois que ela foi escrita, ainda tem algo a nos ensinar. Particularmente, e mais precisamente, se designam como clássicas obras que estabeleceram certas noções ou transmitiram certos ensinamentos, que vão formando patamares sucessivos de consciência humana, de tal modo que a discussão de determinados assuntos não tenha mais o direito de descer abaixo daquele patamar.

Por exemplo, a partir do momento em que Aristóteles formula a ciência da lógica não é mais possível discutirem-se legitimamente as coisas, como os sofistas e Sócrates discutiam, utilizando uma lógica rudimentar, onde os procedimentos de prova se confundiam provisoriamente a procedimentos destinados a impressionar o ouvinte. O próprio Sócrates, que é um crítico dos sofistas, incorre freqüentemente nesse tipo de argumentação. Não por maldade evidentemente, mas simplesmente porque os dois tipos de argumentação, a que visa a impressionar e a que visa a provar, não haviam ainda se distinguido perfeitamente. Essa distinção só veio mesmo com Aristóteles. E a partir do momento em que essa distinção fica estabelecida, cria-se uma espécie de patamar de consciência: não temos mais o direito de ignorar a existência dessa distinção [4].

A técnica da discussão e da prova foi elevada a nível de requinte quase inimaginável, mais tarde, pelos filósofos escolásticos, que também fixam um novo patamar de exigência. Depois surgem os processos de investigação e prova aceitos nas ciências naturais e isto vai se acumulando como uma série de patamares de exigência de modo que, teoricamente, não teríamos o direito de entrar na discussão de um assunto ignorando esses patamares já conquistados.

Dei o exemplo de patamares conquistados em filosofia, mas temos o mesmo processo em cada uma das ciências e sobretudo nas artes. Por exemplo, o que vai distinguir a escrita literária da escrita vulgar, nas artes literárias, é precisamente a consciência de uma evolução dos meios expressivos da arte, que a primeira traz dentro de si. A escrita literária é cheia de referências aos antecessores; referências a toda uma evolução anterior. É praticamente impossível encontrar um único verso da literatura moderna que não tenha dentro de si várias camadas de significado que foram sendo acumuladas pela evolução da poesia ao longo dos tempos. É evidente que, para o leitor perceber isso, é preciso que ele próprio tenha noção dessa evolução anterior, de modo que na medida que vai absorvendo esta consciência da evolução da arte literária, a leitura que faz de um poeta moderno seria imensamente mais rica do que a que poderia ser feita pelo sujeito que chegasse lá sem ter o conhecimento das referências. Ou seja, essa evolução vai sedimentando novas linguagens e novos códigos, cujo conhecimento é a condição para que se possa participar, de uma maneira consciente, do mundo cultural, do mundo das discussões, do mundo da comunicação.

A transmissão a um estudante ou a um jovem da consciência desses patamares é que seria precisamente a educação liberal.

O sistema político moderno é enormemente complexo. Se compararmos qualquer país hoje – Brasil, Uruguai ou Paraguai – com a República Romana, veremos que sua organização política é imensamente mais complexa. Para discutirmos um problema qualquer da economia ou da política paraguaias, precisaríamos ter um horizonte de consciência muito mais vasto que o que o cidadão romano ou o cidadão da democracia grega teriam que ter para compreender seus problemas locais. A acumulação desses patamares de consciência, portanto, forma a série de condições que, num dado momento da evolução histórica, o ser humano precisa cumprir para entender o que está acontecendo em torno dele. Entender o que está acontecendo não é não é um dever e não é atribuição de uma profissão especializada, mas é, de certo modo, uma possibilidade aberta a todos os cidadãos. Não podemos tornar isso obrigatório porque a aquisição desse patrimônio depende de uma capacidade pessoal e de uma disposição; uma vocação pessoal. Torná-lo obrigatório é, portanto, utópico.

Eu não acredito em educação universal obrigatória, de jeito nenhum. Não acredito em educação de quem não queira se educar. Acredito em oportunidade universal de educação. Abrir para todos, sim, mas tornar obrigatório é absolutamente inócuo.

A aquisição da consciência desses sucessivos patamares é uma possibilidade que está aberta aos cidadãos que desejem compreender o mundo em que estão. Porque o mundo atual não surgiu do nada, não foi inventado ontem, resulta de milhões de decisões e ações humanas que foram se encaixando umas às outras e que produziram resultados que não estavam sob o controle de ninguém. O código civil de qualquer país do ocidente e, de fato, toda a legislação moderna, por exemplo, certamente sofrem a influência do código de Napoleão. Napoleão chamou uma comissão de juristas que escrevia de um modo e ele riscava e dizia que não era daquele jeito, mas de outro. Ou seja, o código saiu da cabeça dele e, a partir desse momento, o impacto foi formidável. Mas se não temos consciência do modus raciocinandi, das razões que Napoleão teve para fazer isto desta maneira e não de outra, sofremos o impacto de novas legislações cujas razões profundas não conhecemos. Ou seja, não estamos capacitados para discutir aquilo.

Hoje em dia todo mundo acredita que existe o direito à liberdade de expressão e o direito à liberdade de opinião. Eu não acredito porque, para haver liberdade de opinião é preciso, em primeiro lugar, haver uma opinião. Mas a maioria das pessoas que exercem a liberdade de opinião não tem opinião. Para ter uma opinião, preciso ter prestado atenção em algo. Freqüentemente vemos pessoas que falam durante dez minutos sobre assuntos nos quais não prestaram atenção nem por dois minutos. Então não posso chamar isso de opinião: isto é uma efusão improvisada de palavras que brotam no momento da pessoa, mas sem nenhuma relação com o objeto do qual ela está falando. Então se acreditamos no direito universal à expressão das opiniões, que ele é um dado primeiro e incondicional, significa que todos têm o direito de falar pelo tempo que quiserem e todos têm a obrigação de ouvir. Então lhes pergunto: o que é o direito à liberdade de opinião sem a contra-partida que é o direito de não ouvi-la, o direito de ir embora? Por exemplo, nenhum de vocês está obrigado a ficar sentado aí. Vocês estão porque querem, mas têm o direito de ir embora a qualquer momento.

A própria idéia de direito à liberdade de expressão, à liberdade de opinião está condicionada ao mérito da opinião, ao valor da opinião. E esse valor é condicionado, no mínimo, pelo interesse que o próprio opinante tem no assunto. Imagina que o sujeito não se interessou pelo assunto o suficiente para se informar a respeito dele por cinco minutos que sejam. Por que ele teria o direito de falar sobre o assunto durante seis minutos e teríamos que escutá-lo? A conquista de uma opinião, portanto, é o primeiro passo para o exercício efetivo da liberdade de opinião. É evidente que quando o indivíduo expressa sua opinião numa assembléia, ele está de certa maneira se personificando; está dizendo: este sou eu, sou o camarada que pensa assim e assado. Dali em diante, ele será encarado como representante daquela opinião. Mas, se o sujeito dá uma opinião que pensou na hora e da qual não vai se lembrar nos próximos dez minutos, ele personifica o quê?

É só reparar um pouco nas discussões públicas que acontecem no Brasil e percebemos um fenômeno esquisito. Sabemos que as pessoas lêem pouco; os jornais de grande tiragem vendem hoje cerca de um milhão de exemplares, sendo que vendiam o mesmo na década de cinqüenta. Ou seja, a população cresceu formidavelmente, o número de escolas cresceu mais ainda, e as pessoas continuam lendo a quantidade de jornais que liam na década de cinqüenta. Quanto aos livros, não tenho cálculos mais atualizados, mas na década de noventa havia menos livrarias no Brasil do que na década de cinqüenta. Apesar dessa total falta de interesse em saber das coisas, as pessoas sempre têm interesse em opinar. Dificilmente vemos um repórter perguntar a uma pessoa na rua o que ela acha disso ou daquilo e receber como resposta: não sei, estou por fora do assunto. Nunca vi isso. As pessoas consultadas sempre têm opinião sobre qualquer coisa.

Vendo isso ao longo dos tempos, vi que esse é um traço antropológico muito estranho: uma sociedade onde as pessoas não se interessam pelo assunto, mas têm um interesse brutal em opinar a respeito dele. Não estranhamos isso apenas porque já nos acostumamos, mas essa é uma conduta anormal. É uma anomalia que, repetida ao longo do tempo, acabamos achando que é normal.

Ora, se tentamos convencer as pessoas de que existe um negócio chamado cidadania e que esta inclui o direito de opinar sobre questões públicas – e todos estão persuadidos disso – e ao mesmo tempo não cria a percepção de que para ter uma opinião é necessário ter prestado atenção no assunto, o que estamos fazendo com essa cidadania? A está transformando numa espécie de bolha de sabão, numa fantasia, numa mentira e numa paródia de si mesma. A noção de cidadania e de exercício da cidadania faz sentido a partir do momento em que as pessoas têm realmente opiniões, não confundindo a opinião com uma efusão qualquer de palavras que brota do inconsciente ou que foi ouvida num anúncio de rádio anteontem e o sujeito repete. Esse tipo de falatório é a degradação da liberdade de opinião, ele não é a própria liberdade de opinião. Sobretudo porque se espera que o exercício da liberdade de opinião contenha dentro de si a possibilidade de uma repetição, de uma reiteração e de uma luta pela própria opinião. Supõe-se que a opinião de um indivíduo valha algo para ele e, por isso, ele luta por ela. Mas se o sujeito não precisou pensar no assunto, se a opinião não lhe custou nada, quanto ela vale para ele? E a pergunta fatídica: por que devo prestar atenção à sua opinião por mais tempo que você levou para formulá-la? Se você levou dois minutos pensando no assunto, por que devo ouvi-lo durante três? Quando queremos que os outros façam o que não quisemos fazer, que sejam o que não somos, entramos diretamente no culto à Papai Noel. E chamar isso de formação da cidadania é achar que puerilizar as pessoas é torná-las cidadãos. Um homem que acha que os outros têm obrigação de ouvi-lo só porque ele é bonitinho é exatamente como aquela criança que, quando vem visita em casa, começa a fazer palhaçada e todos têm que achar bonito e passar a mão em sua cabeça. Qualquer cidadão que se atreva a falar em púbico com essa expectativa está se aviltando, está permitindo que a situação lisonjeie seus desejos pueris. Evidentemente não é esse tipo de formação do cidadão a que visamos.

Educar o cidadão em primeiro lugar não é educá-lo para falar, mas é educá-lo para saber, quer ele fale ou não. A famosa participação é apenas um exercício de uma força interior, de um poder que o indivíduo tem. A educação liberal consiste em dar a ele este poder, esta força interior e não em lhe dar os meios e as oportunidades de exercê-los.

Você já conheceu alguma pessoa que não tivesse nenhuma opinião sobre a sociedade em que vivemos? Acho que a minha avó não tinha mas ela foi a última pessoa. Se perguntasse isso para a minha avó ela perguntaria: ” do que está falando?” Ela nunca achou que existia essa possibilidade de ter uma opinião geral sobre a sociedade em que estava. Mas a partir da minha geração, ou talvez a de meus pais, todo mundo foi educado para ter uma opinião sobre a sociedade, ou seja, exercer uma coisa que se chama a crítica social. Qual é sua real possibilidade de ter uma visão crítica da sua sociedade? Em primeiro lugar, para isso você precisaria ter uma idéia do funcionamento da sociedade. Isso leva algum tempo; é um pouco trabalhoso. Mas mesmo que tivesse a visão geral, você acredita realmente que o membro de uma sociedade consegue colocar a cabeça para fora dela, acima dela, e julgá-la desde cima? Se todos somos de certo modo produtos da sociedade em que estamos, nossas opiniões, incluindo as negativas que sobre a própria sociedade, são criações dela mesma e fazem parte do mesmo mal que denunciam. A única possibilidade de haver uma crítica social legítima, que funcione, é a de que o indivíduo humano de algum modo se coloque acima da sociedade e consiga ver nela algo que ela mesma não vê. É necessário que a consciência dele esteja acima do nível de consciência que aparece nas próprias discussões públicas. Para criticar minha sociedade como um conjunto, preciso me colocar numa perspectiva que me permita vê-la como objeto, e daí já não sou mais um personagem ou um participante da coisa, mas um observador superior; consegui uma posição acima da confusão, de onde posso ver o que está acontecendo e julgar o sentido geral das coisas. Assim como para opinar numa briga entre marido e mulher é preciso que você não seja nenhum deles. Quando um casal com um problema vai procurar um conselheiro matrimonial ou um psicólogo, está supondo que ele tem um ponto de vista superior a cada um deles.

No que consiste esse ponto de vista superior? Consiste em que se tenha um critério de julgamento que se sobrepõe às paixões e interesses em jogo naquele momento. Supõe-se, portanto, que você tenha um conhecimento que o restante da sociedade não tem. Dito de outro modo, você julga a situação real à luz de uma norma, mas esta norma só será válida se não tiver sido criada pela própria situação. Vamos voltar ao exemplo do marido e mulher: a mulher está acusando o sujeito de não trazer dinheiro suficiente para casa e ele a está acusando de não desempenhar as tarefas domésticas a contento. Qual a norma que vai servir para julgar? Pode ser a opinião de um ou a opinião do outro? Não, a norma tem que ser uma terceira coisa que sirva para arbitrar as duas ao mesmo tempo. Ou seja, você tem que ter uma medida do justo e do injusto e esta medida não pode ter sido criada nem pela opinião de um, nem pela opinião do outro. No caso, trata-se de uma proporção entre direitos e deveres. É só o conhecimento dessa norma ou dessa proporção que lhe permitiria julgar a situação e ver qual é a cota de razão e de desrazão que haveria nessa discussão. O problema é: de onde vamos tirar essa norma. Se ela foi criada pela própria situação, apenas expressa um dos lados em conflito. Então ela tem que ser transcendente à situação. Assim como no julgamento de um processo criminal, o sujeito matou outro, roubou outro, aplicou estelionato: o tribunal vai julgar aquela situação à luz de uma lei que transcende a situação.

Se pegarmos nossa sociedade como um todo ou a parcela da história que conhecemos, todos temos opinião a respeito, mas raramente nos preocupamos com o problema da norma. Se digo que a sociedade é injusta, é injusta em face de que norma? Qual é a norma com que estou julgando? Ou tenho uma norma que seja efetivamente superior ao horizonte de consciência da discussão pública, ou não posso julgar. Ou, então, estou tomando partido dentro de um conflito e em seguida sou eu mesmo um membro desse conflito. Estou raciocinando, portanto, em circuito fechado, como um cachorro que persegue o próprio rabo.

Existem situações, no entanto, onde aparece um sujeito que tem um conhecimento que a sociedade não tem. A história de Moisés na Bíblia, por exemplo: Moisés faz uma crítica da situação, a situação do cativeiro dos judeus no Egito. Ele acha que a situação está ruim por isso, por isso e por isso. E se lhe dissessem que a situação é assim desde que o mundo é mundo? que sempre foi assim e sempre será assim? Que sentido faz você criticar uma coisa que não tem remédio de maneira alguma? A crítica estaria anulada. Mas Moisés podia criticar, porque ele tinha conhecimento do que veio antes e do que viria depois – o conhecimento profético. Tinha conhecimento de que seu povo podia ser retirado dali e ir para um outro lugar onde teria uma vida melhor. E de fato fez isto. Como sabemos que Moisés sabia algo que os egípcios não sabiam? Porque provou que sabia. Com a travessia do Mar Vermelho, ele provou que enxergava a situação dos judeus no Egito desde um ponto de vista superior ao da situação real. Sabia que podia fazer e como fazer e, de certo modo, conhecia o futuro. Esse futuro era invisível para os participantes da situação. Era invisível tanto para os egípcios quanto para os judeus. Eles demoraram quarenta anos para ouvir o que aquele homem tinha a dizer. Esse é o protótipo da crítica social válida.

Outra crítica social válida também é feita por Sócrates. Sócrates critica uma situação estabelecida à qual ele não se considera superior. Quando Sócrates é condenado por um tribunal ateniense, se dirige a esse tribunal do ponto de vista de um homem que já morreu. Ele praticamente se considera morto e diz: olha, realmente não sei se vocês ao me condenarem me fizeram um malefício ou um benefício, porque não sei exatamente o que é a morte; tenho a impressão de que talvez seja melhor depois, que talvez vocês tenham me feito um benefício. A consciência do desconhecimento da morte é uma norma válida para o julgamento de qualquer situação humana. Todos sabemos que vamos morrer; e todos sabemos que não sabemos precisamente o que é a morte, o que se desenrola nela e depois dela. Isto nos dá uma base firme para julgar todas as situações humanas.

Me lembro de uma conferência brilhante que o filósofo espanhol Julian Marías fez no Brasil, na época em que a junta militar havia instituído a pena de morte. Durante a conferência lhe perguntaram se era a favor ou contra a pena de morte e ele disse: “sou contra por um simples motivo: não sei o que é a morte e não tenho o direito de condenar um sujeito a uma coisa que eu não sei o que é; sei o que é prisão, trabalhos forçados, mas morte, eu não sei o que é e esses senhores também não.” Então, na hora em que o indivíduo emite este julgamento, coloca-se não apenas acima da discussão pública, mas quase que infinitamente acima dela, porque a discussão pública é feita em termos de posições relativas, de posições que podem ter sua validade maior ou menor numa ou noutra situação. Mas, de repente, chega o filósofo e diz algo que independe de toda a discussão. No meio das relatividades, ele entra com o absoluto. O absoluto é este: não sei o que é morte e vocês também não sabem, e ponto final. Nenhum de nós morreu para contar como é. Isto é o senso da medida. Em certos momentos, portanto, a consciência pode se colocar infinitamente acima das questões públicas e encará-las desde uma medida supeiror que lhe permite um julgamento justo.

Infelizmente isso não acontece sempre. Freqüentemente nos debatemos em questões onde nos falta a medida e não a encontramos. A única coisa que sabemos é que esse senso da medida universal pode ser desenvolvido nas pessoas pela consciência da dimensão histórica, pela consciência dos sucessivos patamares de consciência alcançados ao longo do tempo. Porém, o indivíduo que não recebeu a informação sobre este caso de Moisés, ou simplesmente não meditou sobre o assunto, simplesmente não tem idéia de que uma certa situação pode ser julgada em face de uma possibilidade concreta de mudá-la. Note bem, não é um desejo de mudá-la, mas uma possibilidade concreta conhecida de antemão. No caso, Moisés sabia porque Deus contou para ele. Podia ter sabido de outra maneira. Mas ele não achava que a situação dos judeus na época era ruim apenas porque sim, mas era ruim em face de um poder do qual Deus tinha investido esse povo antes e em face de uma promessa que Ele tinha feito para o futuro. Então, encaixando aquela situação numa sucessão histórica perfeitamente conhecida, podemos dizer que Moisés podia julgar que aquela prisão era ruim, porque ele sabia onde estava a porta.

Agora, se estudarmos a história do século XX, veremos uma infinidade de revoluções, golpes de estado, mudanças políticas feitas por pessoas que criticavam a situação e que diziam poder mudá-la para melhor e que produziram situações infinitamente piores. Na década de oitenta, por exemplo, um cidadão soviético consumia menos carne do que um súdito do czar em 1913. Isto significa o seguinte: Lenin e Trotsky não sabiam onde estava a porta; propuseram uma mudança não porque tinham perfeito conhecimento da possibilidade concreta de realizá-la, mas apenas porque queriam. É o caso de a gente dizer que este tipo de crítica social não é legítima: você está criticando uma situação mas não é melhor do que a situação, é apenas um componente dela; ou seja, a sua crítica não é uma crítica, é apenas uma queixa, é um sintoma da própria situação, e portanto não podemos confiar em você para resolver a situação. Na hora em que você passa por um sofrimento e diz ‘ai’, o ‘ai’ não é uma crítica válida da situação, é apenas uma expressão dela. Tanto que dizer ‘ai’ não vai curar você de maneira alguma.

Ao longo de todo o século XX, vemos que a crítica social, em sua quase totalidade, nunca passou de expressão ou de sintoma da situação. Raramente se viu um empreendimento vitorioso de transformação da sociedade com base na crítica, que produzisse exatamente o resultado prometido. Isto significa que, desde o tempo de Moisés ou Sócrates, a nossa capacidade de crítica social diminui formidavelmente. Simplesmente não entendemos a sociedade, não gostamos da sociedade; gostaríamos de mudá-la, mas não chegamos a perceber que nossa revolta e nosso próprio desejo de mudar são apenas sintomas da própria situação social e, portanto, impotentes não somente para mudá-la, mas até para fazer uma crítica objetivamente justa.

São essas constatações que nos colocam a necessidade de conquista de um patamar ou de uma medida justa e universal, em função da qual a crítica possa ser feita. Todo ser humano tem essa possibilidade e, de certo modo, tem esse direito porque embora seja, sob muitos aspectos, um produto, um efeito ou uma criação de sua sociedade, há algo nele que transcende a sociedade. Há no mínimo a estrutura biológica. Não houve nenhuma sociedade que mudasse substancialmente a estrutura anatomo-fisiológica do ser humano. Esta é uma constante. Portanto cada um de nós pode dizer que é fruto da sociedade brasileira? Bom, sou fruto da sociedade brasileira, mas sou membro da espécie humana e, como membro da espécie humana, existem em mim fatores estruturais constantes que já existiam antes de o Brasil existir e que vão continuar existindo depois que o Brasil acabar. Portanto, como membro dessa espécie animal chamada espécie humana, tenho em meu próprio corpo um dado que transcende a situação histórica em que vivo. É claro que não é só a estrutura anatomo-fisiológica do homem que transcende a situação histórica, existem muitos outros aspectos.

Ao longo da história humana, muitos desses elementos estruturais, constantes e universais foram se revelando à nossa consciência. E foram registrados em obras, depoimentos e atos desses seres humanos. A aquisição desse legado é o que é propriamente o que chamaríamos hoje de educação liberal, que, nesse sentido, é a formação do cidadão consciente e portanto capaz de julgar não só fatos da sociedade, mas a própria sociedade como um todo.

Formar um homem desses não é fácil. As situações vão se tornando cada vez mais complexas e, de repente, vêem-se emergir no cenário da história situações absolutamente novas que, apesar de todos os dados que acumulou em toda a sua educação, você não é capaz de compreender. Surge, por exemplo, um fenômeno como o totalitarismo moderno, como nazismo, fascismo e comunismo – fenômenos supremamente esquisitos, que tudo o que a humanidade ocidental sabia até o século XIX não bastava para explicar.

A idéia de que tratados internacionais fossem feitos não para ser cumpridos, mas apenas para ser usados como armadilhas para os inimigos: isso foi uma novidade na história. Até o século XIX todo mundo acreditava que tratados eram para ser cumpridos. De repente aparece um estado, a União Soviética, que acha que não é bem assim, que não é importante cumprir os tratados, mas sim apenas assiná-los. De um momento para outro, os tratados se transformam em instrumentos não para limitar a ação dos contratantes mas, ao contrário, para dar mais possibilidades de ação contra os demais contratantes. Hitler levou essa idéia a um nível alucinante: cada compromisso que Hitler assinou foi assinado com a finalidade específica de não ser cumprido. Nos acostumamos tanto com isso que hoje achamos natural.

Certas possibilidades de uso de violência assassina contra países inimigos não entraram na cabeça humana antes do século XX. A guerra sem declaração de guerra é um exemplo: você está em guerra com outro país mas não sabe; de repente soltam uma bomba no seu território. Isso foi mais uma novidade do século XX. Outro exemplo é o ataque sistemático às populações civis: não existe mais a noção de campo de batalha. O que é campo de batalha? É o lugar onde você vai para fazer a guerra. No século XX isso desapareceu. Não há mais campo de batalha, há guerra onde você estiver.

Quando começaram a suceder, esses fatos deixaram as pessoas desorientadas; não havia como explicar. Vemos, portanto, o avanço do totalitarismo no século XX e a impotência da inteligência humana para explicar esse fenômeno na época, já que somente hoje temos uma compreensão mais adequada do fenômeno totalitário. Notamos, então, que às vezes acontecem coisas novas e que mesmo a acumulação de todo o legado desses depósitos de consciência adquiridos ao longo dos séculos não é suficiente para nos situar. Seria necessária uma outra abordagem e as primeiras tentativas de diagnóstico falham, porque estão comprometidas de certo modo, inconscientemente, com o mesmo circuito produtor de idéias que geraram o fenômeno. Você tenta investigar o fenômeno, mas faz parte dele; tenta diagnosticar a doença, mas também está doente. Um exemplo característico é o livro da Hannah Arendt sobre o totalitarismo. Ela investiga, investiga e pega a pista certa: diz que os fenômenos totalitários não querem criar uma nova sociedade, querem modificar a natureza humana. A pista é exatamente esta. Só que, mais adiante, escorrega e diz que acredita na possibilidade de mudar a natureza humana, apenas não por meios violentos. E com isso aí a descoberta influencia a visão de quem descobriu, porque se é possível para o Estado mudar a natureza humana por meios não-violentos então, prestem bem atenção, a diferença específica do totalitarismo deixa de ser o projeto de mudar a natureza humana e passa a ser apenas o emprego da violência. A especificidade do fenômeno, portanto, se perdeu. Assim, Arendt não consegue levar o diagnóstico até o fim. Mas ela escreveu o livro no calor do momento e não podia enxergar a situação com toda a clareza; foi um dos primeiros diagnósticos abrangentes que se tentou. Se investigasse mais um pouco veria que, ao longo dos séculos, não surgiu nenhuma idéia ou doutrina política que visasse a mudar a natureza humana. Todas tomavam a natureza humana, fosse qual fosse, como pressuposto. Consideravam-na fenômeno de ordem natural, cósmica, biológica, no qual a sociedade não pode mexer.

Foi só no século XX que se acreditou que, através da formação de um certo Estado, leis, burocracia, se poderia mexer na própria natureza humana. É a diferença que existe entre você ser um criador de animais, como vacas e galinhas, ou você transformá-los em outra coisa: a idéia de transformá-los em outra coisa rigorosamente nunca tinha aparecido na mente humana até o século XX.

Hoje, passados cem anos, temos uma compreensão um pouco maior do fenômeno totalitário, mas para isso foi necessário remanejar todo o legado de conhecimentos e repensar a coisa sob mil aspectos. Embora não seja sempre infalível, esse processo de recuperação do legado é a única esperança que temos de entender a nossa situação existencial. Não existe nenhum outro meio. Aliás, existe um outro meio; existe o que a Bíblia chama de sabedoria infusa: Deus e os anjos infundem em você, sem que saiba. Vai dormir sem saber e acorda sabendo. Tirando esta hipótese, a única outra hipótese que existe é a da acumulação do legado da consciência humana ao longo dos séculos. A finalidade da educação liberal é exatamente esta. E isto é simples: consiste na aquisição dos documentos necessários, no estudo desses documentos e na revivescência das experiências cognitivas e existenciais que estão registradas nesses documentos. Ou seja, você vai ler a Bíblia, Platão ou Aristóteles, não no sentido apenas de adquirir informação, mas no sentido de tornar suas as experiências cognitivas que se registraram nesses documentos.

Por exemplo, Aristóteles insiste muito numa coisa que chama maturidade. Maturidade não no sentido fisiológico, mas no sentido intelectual. O homem maduro é o homem que teve certas experiências e aprendeu com elas. Uma dessas experiências é a plena experiência da norma, da existência da norma. A maior parte das pessoas simplesmente não teve isso; vê as coisas acontecerem e as opiniões se entrechocarem, mas nunca chegou a experienciar as famosas leis não-escritas de que fala a tragédia grega. Por exemplo, em Os suplicantes de Sófocles, dois jovens gregos fogem do Egito, onde o rei queria obrigá-los a um casamento que não desejavam, e vão parar numa ilha. Nesta ilha pedem asilo ao rei local. O rei fica num dilema porque, por um lado, havia uma tradição de dar asilo a quem pede e, por outro, dando asilo ele se arriscava a uma guerra contra o Egito. Ele imediatamente argumenta para os jovens: ” na legislação egípcia não há nada que impeça o rei de obrigá-los a casar com quem vocês não querem, portanto o rei do Egito não cometeu nenhuma ilegalidade” . E eles respondem: ” é, mas acima das leis do Egito há as leis não-escritas, há as leis divinas. A lei divina diz que ninguém pode ser obrigado a casar contra sua vontade.” O rei se toca com aquilo e, em seguida, tem outro problema: o regime na ilha era constitucional e ele não era monarca absoluto. Tem, portanto, que levar o problema à assembléia. Reúne, então, a assembléia e, por meio de um longo e tocante discurso, consegue persuadir a assembléia a aceitar o risco da guerra, para não infringir as leis não-escritas.

A tragédia grega era um acontecimento cívico, não apenas um espetáculo teatral. Era um empreendimento promovido pelo governo para a educação dos cidadãos. Nessa tragédia e em muitas outras, qual é a mensagem transmitida? A idéia de que um país é obrigado às vezes a se colocar em risco para não infringir as leis não-escritas. Ou seja, esse governo argumentava contra si mesmo, contra seu interesse, e educava as pessoas assim. É claro que o momento da história em que aparece a tragédia grega é um momento excepcionalmente luminoso na história da consciência humana. Há inúmeras tragédias gregas onde se concede razão ao inimigo da pátria, o troiano. Toda a educação recebida na escola, os discursos políticos etc., induziam as pessoas ao patriotismo e a tragédia entrava como elemento compensador, para que as pessoas não tomassem em sentido absoluto os valores do patriotismo, porque esses valores eram relativizados por valores mais altos. Então, quando existe uma comunidade política capaz desse nível de consciência, é evidentemente um momento luminoso da história. E o milagre grego de que falamos não pode, evidentemente, ser encarado apenas em termos de realizações estéticas ou científicas, mas sobretudo como um momento culminante na história da consciência humana.

Existem muitos outros momentos de consciência exemplar na história. Um é a história que se passa com o genro de Maomé, Ali. Um excelente orador, cujos discursos estão entre os mais belos da literatura universal, Ali foi um fracasso total como político, mas um grande guerreiro. Conta-se que, numa das batalhas, ele encurralou um inimigo, conseguiu desarmá-lo e encostou a espada em sua garganta. O inimigo então o xingou; ele ficou perplexo, colocou a espada na bainha e foi embora. Em seguida, o inimigo diz: ” você está com a espada na minha garganta, me derrotou, e só porque o xingo… venci você com um xingamento?” Ele diz: ” não, não é isso, é que fiquei com raiva de você, e se o matasse, eu não seria mais um guerreiro, seria um assassino, porque o teria matado por raiva pessoal e não tenho nada contra você. Isso aqui é guerra..” Esta ética guerreira durou séculos. Até o século XIX ainda havia amostras de um espírito de luta cavalheiresco que predominava na guerra.

Há outro episódio famoso que se passa entre príncipes muçulmanos e espanhóis. Uma batalha estava prestes a ocorrer em determinado lugar e os muçulmanos erraram o caminho. Em vez de parar no lugar da batalha, foram parar no castelo do príncipe espanhol que iria combatê-los. Só que o castelo estava vazio, só estavam lá a rainha e suas aias, mucamas e crianças. Conta-se que a rainha saiu do castelo e passou-lhes um sabão: “não têm vergonha de encurralar mulheres e crianças assim?” Eles pediram desculpas e foram embora.

Se comparamos isso com o panorama do século XX, onde vemos, não massas de população, mas elites intelectuais capazes de se fecharem completamente à metade da realidade, para encarar somente a metade que lhes interessa, então, de fato, nossa comunidade política está infinitamente abaixo do nível de consciência daquelas comunidades.

Imaginem o que aconteceria hoje em qualquer país do mundo. O que aconteceria com o sujeito que dissesse que não ocupou a cidade porque só havia mulheres e crianças? Iria para a corte marcial. Seu dever militar se sobrepõe ostensivamente às normas não-escritas, as quais não são sequer levadas em consideração. Elas simplesmente não existem mais. O que há hoje, não é só um fenômeno de imoralidade, mas um fenômeno de baixo nível de consciência, porque o indivíduo acredita que aquele interesse militar imediato é real e que a norma não-escrita é irreal. Ele infringe a norma não-escrita, porque acredita que ela não existe, que é apenas invenção, produto cultural, crença. Só conhece a norma não-escrita, por referência escrita ou oral, ouviu falar que existe, mas não tem experiência pessoal dela. Não há nem a situação do indivíduo que, através da educação, chegou a perceber que essas normas não-escritas efetivamente existem.

Dike é a idéia grega justiça cósmica; é uma experiência que se pode fazer, não uma invenção cultural; uma experiência que requer certo nível de maturidade. Então, quando Aristóteles enfatiza que somente o homem maduro pode guiar a comunidade, está se referindo aos homens que conseguiram absorver um certo número de experiências decisivas, que colocam a sua alma um pouquinho acima do nível de consciência de sua comunidade. Não quer dizer que precisem ser santos ou profetas ou heróis, mas são simplesmente pessoas que têm uma amplitude anímica um pouco mais vasta, porque chegaram a ter certas vivências. Quando não temos isso e, não obstante, temos uma formação universitária, um diploma, e as julgamos as situações evidentemente pelas experiências que temos. No começo do século XX, houve uma série de antropólogos que saíram pelo mundo fazendo recenseamentos dos usos e costumes dos vários lugares. Quando notaram que aquilo que era proibido num lugar era obrigatório no outro, tiraram a conclusão de que todas as normas eram culturalmente relativas. Isto foi especialmente divulgado no mundo por Margareth Mead e Jules Benedict. Eles fizeram um sucesso tão grande que, hoje em dia, essa convicção do relativismo antropológico é tida como um dogma: todas as morais são culturalmente relativas. É no mínimo curioso que nunca ninguém tenha feito a seguinte pergunta: me aponte uma sociedade onde o homicídio seja legítimo? Ou, me aponte uma sociedade onde o casamento seja proibido. Ou, me aponte uma sociedade onde qualquer forma de conhecimento seja proibido. Simplesmente não existem tais sociedades. Isso quer dizer que, por baixo da variação acidental de normas aqui ou ali, existe uma infinidade de normas universais que nunca foram contestadas por civilização ou cultura alguma. A lista das regras e normas permanente é infinitamente maior do que a das normas variáveis. Então isso quer dizer que esses antropólogos, baseados em sua pequena experiência acidental de ter conhecido uma ou duas comunidades, generalizaram para a espécie humana, de modo que a visão total da humanidade fica reduzida ao tamanhinho da amplitude de consciência de dois ou três antropólogos, que viram meia dúzia de coisas. Nas ciências humanas, isso se tornou norma no século XX: o indivíduo proclama que tudo o que ele não viu não existe e tudo o que está fora de seu círculo de experiência só pode existir como invenção, como crença ou como criação cultural e portanto não tem importância nenhuma.

Uma educação baseada nisso seria uma deseducação, porque ela está de cara bloqueando a possibilidade de certas experiências.

A humanidade toda deixou documentos de pessoas que conversaram com Deus. Eles não existiram? São milhões e milhões de documentos, falei com Deus e obtive tal resposta. Falar com Deus e obter tal resposta é uma experiência. É algo que acontece ou não acontece. Não é uma teoria evidentemente, é um fato, ou ele é fictício ou ele é real. Algum antropólogo de alguma universidade já convidou alguém para fazer essa experiência e ver o que acontece? Alguém ensinou a você: para falar com Deus é assim e assado, a coisa tem uma lógica, requer um certo tempo, tem um vai-e-vem, tem um feedback? Não, porque eles também não sabem. Dizem que houve pessoas que acreditaram em Deus, Deus é uma crença e nada sabemos a respeito. Como nada sabemos a respeito? E esses depoimentos todos? Vamos fazer de conta que nada disso existiu? Toda essa gente estava no mundo da lua e você foi o primeiro que descobriu a realidade? Construíram-se civilizações, legislações, sociedades, vidas humanas, tudo em cima disso, e era ficção? Prefiro apostar na hipótese contrária de que esse pessoal todo sabia do que estava falando. Ou seja, algo nos aconteceu e se não temos o mínimo acesso a esse tipo de vivência então nada sabemos a respeito, e não é uma atitude científica rotular de crença o que você não sabe o que é.

Durante quanto tempo você é capaz de manter um fio de raciocínio dentro de si, sem se dispersar completamente? Vamos chamar de raciocínio, o encadeamento de silogismos – premissa maior, premissa menor, conclusão. Quantos silogismos em linha você é capaz de fazer dentro de si, sem se dispersar e perder o fio da meada? Um, dois e olhe lá. Isto quer dizer que a dispersão é o seu estado habitual. Compare-se, por exemplo, a um praticante de uma mística ascética qualquer, que aprende a se concentrar numa palavra ou um nome que designa uma qualidade divina durante, digamos, dezesseis horas seguidas; que aprende a afastar qualquer outro pensamento de sua mente. Você acha realmente que a visão que o homem disperso tem pode ser idêntica à do homem concentrado? É claro que não. Isto quer dizer que, em outras épocas, houve homens muito concentrados, capazes de limpidez de pensamento, de auto-consciência – e logo explico o que quero dizer com essa auto-consciência – e que tiveram acesso a certas experiências e deixaram testemunhos delas, e esses documentos são preciosos. Mais tarde, aparece um sujeito sem concentração nenhuma, uma alma totalmente dispersa, totalmente fragmentada, com auto-conhecimento precaríssimo, dizendo que tudo são crenças. Ora, faça-me o favor!, isto é a anti-educação. Se queremos entender esses documentos, temos que criar a condição psicológica para refazer as experiências que estão subentendidas neles.

Alguém já ouviu falar da prece perpétua? É uma técnica da igreja ortodoxa. Existe um livro extraordinário sobre isso chamado “Relatos de um peregrino russo” – uma abreviatura de milhares de escritos dos místicos ortodoxos ao longo do tempo. O peregrino russo é um homem simples que um dia ouve na missa o padre dizer a sentença de Jesus: orai sem cessar. Ele diz: ” como orai sem cessar? Ninguém pode orar sem cessar, a gente reza e depois vai fazer outra coisa.” Sai então procurando, pergunta para um, pergunta para outro, até que encontra um monge que diz: ” você vai rezar junto com o ritmo de sua respiração, vai dizer Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim; e vai dizer isso com plena intenção; você só quer uma coisa na vida: que Jesus tenha pena de você. Vai esquecer todo o resto e vai fazer isso, vinte e quatro horas por dia, pelo resto de sua vida.” Talvez, se conseguir prestar atenção na piedade divina, com um pouco dessa concentração, acabe percebendo que ela existe. Agora, pelo simples fato de ter lido sobre esse negócio de piedade divina, você diz que isso é crença? Mas, como? Você conhece a coisa, sabe do fenômeno que está sendo falado, ou sabe somente as palavras?

Assim como esta prática existem milhares no mundo – budistas, judaicas, islâmicas, hinduístas e outras. Tudo isto é totalmente desconhecido do ensino moderno. O ensino se tornou uma arte de falar sobre coisas que se desconhece completamente. Não estou me referindo ao ensino religioso. Se pedir ao padre, ao rabino, ou ao aiatolá, ele vai ensinar a você algumas coisas da religião dele, o formulário de crenças dele, e vai dizer que todas as outras não interessam. Ele também já não está falando de experiências, está falando de uma crença determinada. Não é disso que estou falando. Estou falando de realidades e não de formulários de dogmas que dizem que isso está certo e aquilo está errado. Do mesmo modo, as experiências subjacentes à filosofia de Platão ou à filosofia de Aristóteles também são condições indispensáveis para que você as compreenda. Quando Platão falava na Academia, ou Aristóteles no Liceu, eram literalmente homens maduros falando com outros homens maduros. Não era uma discussão entre almas dispersas.

Todos aqui já sentiram, por exemplo, acessos de tristeza ou de desespero que não sabiam de onde vieram. Todo mundo já teve isso. Ora, se existe algo na sua própria alma que você não sabe de onde veio, existe um conteúdo que é estranho a você. Ou seja, a sua alma é tão conhecida sua, quanto uma cidade onde acaba de desembarcar pela primeira vez; você está perdido dentro de você. Sua alma é o instrumento pelo qual você conhece o mundo, mas se ela própria é tão desconhecida assim, quantos metros espera avançar no caminho do conhecimento, antes de ter limpado as lentes com que vai olhar este mundo? Uma certa limpidez da alma, portanto, um certo conhecimento do indivíduo por ele mesmo, de modo que ele saiba de onde vêm suas emoções, de onde vêm seus desejos e o que o compõe efetivamente por dentro, são condições sine qua non da verdadeira educação. Não existe a educação sem o efetivo auto-conhecimento. Mas, se num curso de filosofia universitário, você levantar este problema, dirão: “se quer auto-conhecimento, que vá procurar um padre ou um psicanalista, que nós estamos aqui para estudar filosofia.” Que raio de filosofia é esta que não se preocupa nem em saber se a alma do sujeito está habilitada para aquilo? Que raio de ensino é este que não cumpre a condição da maturidade que o próprio Aristóteles e o próprio Platão colocam como condição básica para o estudo da filosofia? Isto quer dizer que, ao longo dos tempos, a noção de educação foi sendo perdida. Ela é conservada apenas em núcleos muito limitados; há grupos de pessoas que sabem e continuam cultivando aquilo, como sempre. Mas o ensino de massas, público e privado, não está dando às pessoas senão um grosseiro simulacro de educação. Não cabe a mim julgá-lo ou modificá-lo; não sou ministro da educação, nem quero ser. Se me pedissem um projeto de educação nacional, me esconderia debaixo da cama e pedir socorro à minha mãe. Esse problema está acima da minha capacidade, como está acima da capacidade do ministro da educação ou de qualquer outro que ocupe o lugar dele.

A educação requer sobretudo essa situação: há o professor e os alunos. Querem um plano de educação para vocês? Esse, eu sou capaz de inventar, dentro de um universo operacional abarcável. O professor conhece seus alunos, sabe até onde pode levá-los e sabe o que pode fazer, isto é o máximo. A idéia de um plano de educação que abarque toda uma nação, isto para não falar em toda a humanidade, como faz a ONU hoje, é evidentemente simulacro, não existe. Os planos atuais de educação que estão sendo impostos no mundo inteiro pela ONU, que é para a formação do cidadãozinho perfeito da Nova Ordem Mundial, foram inventados na década de cinqüenta por um sujeito chamado Robert Muller, que era discípulo de uma pseudo-esoterista chamada Alice Bailey, uma mulher completamente maluca, da doutrina dos raios cósmicos, que conversava com extra-terrestres; esse cara pega as obras de Alice Bailey, adapta para a formação de um plano educacional mundial e este plano está sendo implantado. Evidentemente isto é uma caricatura grotesca. Quando falo dessas coisas, estou falando de mística verdadeira, coisas que foram acumuladas ao longo de cinco mil anos de judaísmo, dois mil anos de cristianismo, mil e quinhentos anos de islamismo, quase dez mil anos de hinduísmo, não de uma doida americana que conversou com extra-terrestres. Então, o sujeito que aprendeu com esta visionária de extra-terrestres pode fazer um plano para educar o mundo e eu, que aprendi coisa melhor, só tenho um plano para educar vocês. É porque sei o que é educação e esse sujeito evidentemente não sabe. Sei quanto é complexa a educação, o quanto ela requer de contato direto e comprometimento total do professor com seus alunos, porque se trata não apenas de transmitir certos conhecimentos, mas de elevar o indivíduo para a possibilidade de certas experiências interiores, que darão poder à sua inteligência e poder à sua capacidade cognitiva. Educar é transmitir um poder. E esse poder, não posso injetar em você; posso dizer mais ou menos onde ele está e você pode procurar, posso dizer como você pode abrir a caixa e pegar o que é seu. É a partir desse enriquecimento da experiência interior e a partir da idéia de concentração, de continuidade da consciência, que o indivíduo se abre à possibilidade de compreensão desses documentos deixados ao longo das eras. Informar simplesmente a existência disso já é fazer alguma coisa. Mas, além de informar, podemos de vez em quando dar alguma dica de como o indivíduo se torna capacitado para pegar esse legado.

Durante muito tempo, o ensino ocidental esteve consciente disso. Se lemos os escritos dos grandes educadores da idade média como Hugo de São Vitor, Santo Alberto Magno, vemos que o começo das universidades preservou ainda a consciência disso aqui. Por volta do século XV, mais ou menos, a universidade se torna objeto de disputa entre Vaticano e estados nacionais. A partir daí, as universidades vão se tornando, cada vez mais, meios para fins que não são os de seus estudantes. Ainda pertenço à escola antiga: acredito que a finalidade da educação é o estudante, é o indivíduo humano, um cara real. O que ele vai fazer com isso depois simplesmente não é da minha conta. Acho um assinte a promessa de educação para o desenvolvimento, porque estará pressuposto que se vai educar o sujeito para fazer determinada coisa, e que essa coisa vai ter um resultado global x. Ou seja, programa-se a vida inteira do cara. Educação para a paz, educação para o desenvolvimento, educação para a cidadania, tudo isto, no fim das contas, é educar o indivíduo para uma finalidade que não é necessariamente a dele. Então isto não é educação, é programação. A finalidade da educação, tal como entendo e tal como foi entendida ao longo de todos os tempos, é a maturidade. O que o homem maduro vai fazer com o que ensinei é problema exclusivamente dele, ele vai exercer a maturidade dele, não a minha. Quando ele tiver um problema na mão a situação será outra, os dados serão outros e não existe nenhuma possibilidade de um professor antever tudo isso. Isso significa que, uma vez conquistada a maturidade, a finalidade da educação está terminada, acabou, seu educador tem que ir embora para casa. E você se transforma num educador, se quiser, ou vai fazer outra coisa, pois não é só na educação que homens maduros são necessários.

Mas essa total desatenção ao fenômeno da maturidade, aliada a uma atenção excessiva aos usos que a pessoa supostamente vai fazer da educação, faz com que praticamente toda a educação do século XX faça do aluno um meio e nunca a finalidade. Ou seja, a educação se torna serva da política, serva da economia, serva da guerra, serva de qualquer outra coisa e o aluno por sua vez se torna servo desse processo. Acho isso uma imoralidade. Não gostaria de praticar isso. A possibilidade de uma educação que não se encaixe nisso é evidentemente aberta, dentro do próprio sistema democrático, pela possibilidade da educação livre. É claro que a democracia, como qualquer outro regime, também programa as pessoas para serem servas de um plano já dado de antemão, mas ela tem uma vantagem: não cerca o indivíduo por todos os lados, deixa aberta algumas possibilidades. A democracia induz o indivíduo, mas não o obriga completamente. O problema é que geralmente as pessoas não sabem das possibilidades que a democracia deixa em aberto. Ou não sabem, ou as desprezam. As possibilidades de auto-educação e de educação livre são coisas preciosas que existem no regime democrático, das quais temos que tirar proveito de algum modo.

A idéia mesma de que essa proposta educacional se encaixasse de algum modo dentro do esquema educacional vigente é contraditória, afinal de contas o sistema educacional vigente tem a sua finalidade também, a formação profissional e o adestramento das pessoas para a mecânica da democracia. Mas é claro que a educação de massas – pública ou privada – visa a formar massas e não indivíduos, o que quer dizer que se trocarmos todos os alunos, não faz diferença alguma. Mas na educação verdadeira, cada indivíduo é precioso. E, até por isso, pode existir na educação efetiva o fenômeno do aborto pedagógico. Eu mesmo já tive uma boa coleção de abortos pedagógicos, em que vi que, num determinado momento, o florescimento da consciência é totalmente obstaculizado pelo meio. O meio coloca no indivíduo certos conflitos que, ou o paralisam, ou o fazem até recuar. O meio social no qual estamos trabalhando não é inteiramente hostil à educação: deixa uma certa margem em aberto. Mas a capacidade de desestímulo que o meio brasileiro tem para a educação é absolutamente fantástica. A curiosidade é desestimulada e o simples fato de o sujeito querer saber alguma coisa não é considerado normal;

Outro dia estava conversando com meu irmão sobre como, quando pequeno, ele gostava de fazer rádios de pilha. Gostava de eletrotécnica. Inventou isso sozinho, da cabeça dele, foi tentar fazer e aprendeu. E todas as pessoas em torno achavam aquilo muito esquisito e diziam: “por que você está mexendo com isso? Tem que se preparar para ganhar dinheiro.”Em muitos meios, não necessariamente nos mais pobres, é assim até hoje.

Vamos pensar na idéia de que o máximo de realismo que se pode ter na vida é pensar apenas em ganhar dinheiro. Ótimo, você se dedica a algo apenas para ganhar dinheiro. Vamos supor que você fabrique copos, mas não porque goste e sim para ganhar dinheiro. No dia seguinte pega o dinheiro que ganhou com os copos e vai comprar água mineral. Mas acontece que o sujeito que abriu a mina e engarrafou a água também fez para ganhar dinheiro. E com o que ganhou, também vai comprar uma outra coisa que só foi feita para dar dinheiro. Então se você compra um sapato, este foi feito para quê? Não para fazer sapato, mas para ganhar dinheiro, o sapato não é finalidade, a finalidade é o dinheiro. Enfim, todas as ações do processo produtivo são exclusivamente meios, e não há uma única coisa que se possa comprar, que valha a pena ser comprada. Ninguém fez nada para que aquilo valesse. A idéia de que a atitude realista e madura na vida é pensar apenas no dinheiro esquece que é necessário que exista algo que se possa comprar com o dinheiro. Que se este algo nunca é a finalidade, é sempre secundário, é sempre sacrificado ao dinheiro. Se eu fizer um objeto ou outro, de um jeito ou de outro, e ganhar a mesma coisa que se fizesse um determinado bem feito, então para que fazer este bem feito? Você faz o seu produto mal feito, ganha seu dinheiro e vai todo contente comprar outro produto que também é mal feito. Isto é uma radical incompreensão do processo econômico. Mas isso é uma coisa que se vê no Brasil. Viajando pelo mundo, não vemos as pessoas agindo assim.

A visão negativa que temos do processo capitalista faz com que o pratiquemos de maneira negativa. Não gostamos dele e por isso o corrompemos. Se fosse socialismo, faríamos exatamente a mesma coisa.

Esse rebaixamento geral das expectativas, dos valores da vida, é um dado constante na sociedade brasileira e é um tremendo desestímulo. Faz com que haja no processo educacional muitos fenômenos de aborto, de indivíduos que vão se desenvolvendo até certo ponto e de repente têm uma crise, um pânico. Uma crise muito comum é a do indivíduo que percebe que, quando está percebendo algo, sabendo algo que os outros não sabem ou não percebem, cria-se uma dificuldade de comunicação. Por exemplo, se você é muito apegado a seu grupo de amigos de juventude, não pode se educar, porque ou você os educa a todos juntos ou vai amadurecer mais do que eles e eles vão se tornar uns chatos para você e não vão gostar mais de você. A educação tem esse preço, aquele que sabe não é facilmente compreendido pelo que não sabe. Muitas pessoas, quando constatam isso, recuam ou caem no seu processo educacional e se castram espiritualmente, para não perder amizades ou apoio familiar, que evidentemente não valem a pena.

Mas é essencial entender, para encerrar, que a definição de educação liberal é a preparação da alma para a maturidade. O homem maduro é o único que está capacitado a fazer o bem para o meio em que está. Porque o bem também tem que ser conhecido. O discernimento entre o bem e o mal não vem pronto; não adianta ter um formulário, os dez mandamentos ou ter o código civil e penal. Isto não resolve muito. O bem e o mal são uma questão de percepção, que tem que ser afinada para cada nova situação que você vive, porque costumam aparecer mesclados. Jesus disse: na verdade amais o que deveríeis odiar, e odiais o que deveríeis amar. Este é todo o problema da educação, desenvolver no indivíduo, mediante experiências culturais acumuladas, a capacidade de discernimento para que ele saiba em cada momento o que deve amar e o que deve odiar. Ninguém pode dar essa fórmula de antemão, mas a possibilidade do conhecimento existe e está consolidada em milhões de documentos. Uma educação bem conduzida pode levar o indivíduo à maturidade do verdadeiro julgamento autônomo.

Notas

1. Diretora do programa Drug Watch International.
2. Aliás, a idéia corrente, abundantemente repetida por jornalistas e intelectuais brasileiros, de que o ensino na época fosse limitado aos nobres, é talvez a mais idiota que alguém já meteu na cabeça, porque o característico da nobreza durante toda a idade média era precisamente não estudar. O estudo era considerado uma ocupação imprópria para os nobres e só própria a dois tipos de pessoas: aqueles que se dirigiam ao clero e as mulheres. Portanto as mulheres eram privilegiadas no ensino medieval. Aproximadamente 60% ou 70% do público escolar eram compostos de mulheres.
Este é um detalhe que qualquer estudioso da idade média sabe, mas que você nunca vê mencionado em parte alguma. É como se houvesse um escotoma, um ponto preto que impede as pessoas de saberem disso. Esse detalhe por si basta para derrubar toda uma visão da história, que é aquela visão de que a história transcorre de um estado de escravidão, dominação e autoritarismo para um estado de maior liberdade e democracia. Esta visão está subentendida em praticamente tudo o que se discute nesse país e em metade do mundo. E é evidente que basta um pouquinho de estudo efetivo da história para ver que as coisas realmente nunca se passaram assim. Na verdade, idéias como as modernas ditaduras e os modernos autoritarismos são coisas que, na antiguidade e na idade média, nem passariam pela cabeça de um governante. A hipótese, por exemplo, de haver um cadastro eletrônico onde estão todos registrados, onde se pode acompanhar a conduta de cada um, saber quanto o sujeito gastou, onde ele esteve e, em caso de dúvida, poder usar tudo contra ele, é uma idéia que se fosse dada a Gengis Kahn, ele acharia monstruosa. Ou seja, Gengis Kahn não pretendia ter tanto poder assim, poder que hoje em dia qualquer governante ditatorial, e até democrático, tem sobre as pessoas.
A História, portanto, ao contrário do que diz o famoso clichê, tem seguido no sentido de um crescimento da autoridade. A autoridade vai conquistando meios de ação sobre os indivíduos de que nunca antes dispôs e, ao mesmo tempo, surgem mecanismos compensadores como a liberdade de imprensa e o ensino universal. Mas, elas por elas, o autoritarismo tem ganhado a corrida.3. Mortimer Adler é autor do livro “Como ler um livro” (pegar referências).
4. Ora, não termos o direito de fazer alguma coisa não significa que não a façamos. Na prática, a mistura de procedimentos legítimos e ilegítimos é um fato do nosso dia-a-dia. A maneira mais prática e fácil de fazer prevalecer sua tese, é fazer como fizeram no debate mencionado por Mina Seinfeld, em que você desaparece com a tese do adversário e a sua, por ser a única existente, acaba prevalecendo.
 

Artigos de José Nivaldo Cordeiro

Um funcionário público exemplar

13 de outubro de 2001

Roberto Campos foi um homem de muitos méritos e muitos talentos. Muita gente escreveu sobre a sua rica biografia e sobre os fatos relevantes da sua vida. Não quero aqui repeti-los. O único ponto que, penso, ficou relativamente esquecido, é o fato de Roberto Campos ter sido, toda a vida, um funcionário público exemplar, que reformou o Estado brasileiro, que o representou dignamente nos fóruns internacionais, que ajudou a forjar instituições que se mostraram decisivas na formação da industrialização e, de fato, colocou o Brasil na modernidade.

Por sua obra os brasileiros deveriam prestar-lhe as mais dignas homenagens, pois todos nós devemos muito à sua criatividade, clarividência, capacidade de trabalho e coragem pessoal. Sei, todavia, que o preconceito difuso que os “progressistas” têm contra os liberais impede que o reconhecimento de sua obra seja mais amplo.

Não deixa de ser uma ironia que alguém que sempre foi um arauto da livre iniciativa tenha sido um dos maiores estadistas do Brasil em todos os tempos. Sem a sua ação talvez não tivéssemos conseguido construir o grande parque industrial que temos, uma economia urbanizada caminhando rapidamente para a superação de seus indicadores mais desfavoráveis.

É de gente como Roberto Campos que precisamos no comando das ações do Estado. Infelizmente, patriotas com o seu preparo e a sua visão estratégica são raros. O que vemos mesmo é um enxame de populistas de esquerda, que acham que fazem o bem ao próximo, e a si mesmos, exaltando o caráter confiscatório e distributivista do Estado, algo que Roberto Campos sempre denunciou e combateu. Essa forma de ver o Estado só leva ao caminho oposto do desenvolvimento e aumenta a pobreza, impedindo o país de se desenvolver e os brasileiros de ficarem mais ricos.

Que Deus o tenha junto de si, esse grande brasileiro.

A greve das universidades federais

Todo ano é a mesma coisa: professores e funcionários das universidades federais entram em grave para obter novas “conquistas”. É mais do que evidente que as reivindicações que motivam a greve atual são descabidas, especialmente ao reajuste salarial. Falei motivam? É incorreto dizer isso. Essas pessoas têm feito a greve pela greve, sempre com objetivos político-eleitorais e visando influenciar a opinião pública para as suas bandeiras e os seus candidatos. Há muito a universidade foi aparelhada por grupelhos políticos radicais, cuja marca registrada é não ter qualquer compromisso com o alunado, com o ensino, com a preparação dos jovens para a vida. Tentam, na verdade, prepará-los para a revolução.

Tem muita coisa errada com a universidade pública, a começar pelo excesso de gente e de aposentados precoces, que de aposentados nada têm: continuam a sua carreira produtiva em outro lugar, mas levando na maleta o contracheque integral como sócio da massa tributária que o Estado recebe. É evidente que nem um centavo desse recurso chega para qualquer aluno na forma de benefício educacional. É apenas um assalto aos cofres público. E, toda vez que se tenta elevar os ganhos daqueles que estão na ativa, o efeito cascata obriga que todos os aposentados tenham rendimento igual. Uma iniquidade e uma indecência.

A raiz do mal na universidade começa no chamado modelo de escolha de seus administradores. Universidade é um centro de saber e de produção de conhecimento, à qual são remetidos os jovens pela famílias na suposta esperança de prepará-los para se tornarem a elite dirigente e científica da sociedade. Ora, com o democratismo universitário, o que vemos é o aviltamento do seu papel, a equiparação da opinião de professores com a de simples serventes e outros trabalhadores braçais. A universidade deveria ser, por definição, elitista e meritocrática, devendo os portadores do mais alto saber ter a precedência – e o poder, diga-se claro – dentro daqueles recintos.

O que vimos nos últimos anos foi o oposto disso, o aviltamento, a perda de respeito, o empobrecimento da cultura superior que leva as famílias a procurar alternativas a esses ninhos de grevismo e irresponsabilidade. Em lugar da cultura superior, dão aos alunos rações requentadas de marxismo ultrapassado, com o claro objetivo de tornar os jovens militantes das causas revolucionários. É uma tragédia que não pode ser minimizada, que está comprometendo o futuro – e por que não dizer? – o presente de nosso país.

Por sorte o Brasil está sendo, a cada ano, melhor servido por mais e melhores escolas privadas de nível superior, repetindo o fenômeno que no passado houve com o ensino fundamental, quando as escolas pública dessa faixa de ensino foram sumariamente substituídas em qualidade pelas escolas privadas. Ainda bem que isso está acontecendo, pois do contrário nada teríamos para colocar no lugar. É o mercado resolvendo os problemas criados pela incapacidade do poder público.

Enquanto esse modelo de gestão persistir, enquanto os professores universitários, antes de professores declararem-se militantes de partidos políticos, enquanto funcionários subalternos e braçais traçarem a política universitária, não haverá salvação para essa instituição. Cabe ao Governo Federal tomar as atitudes corretas e duras na direção certa. Tem que ser implacável com o grevismo, descontar os dias parados, responsabilizar reitores, professores e funcionários que se portam como agitadores profissionais, em prejuízo do país, mas sobretudo em prejuízo dos jovens.

Não haver vestibular para o próximo ano letivo é um prejuízo colossal para toda uma geração que está chegando ao nível superior, as grandes vítimas. O poder público não pode permitir tamanha violência. É o tempo de ser firme e inflexível em defesa dos interesses maiores do país.

Aleluia a Lula Lá

8 de outubro de 2001

O jogo político tem algumas coisas incompreensíveis se observadas à distância. Quando, todavia, aproximamos as lentes para uma observação mais de perto, elas são plenamente compreensíveis.Digo isso a propósito do anunciado acordo do PL com o PT com vistas às eleições presidenciais. Como um partido socialista, o PT tem em seus quadros majoritariamente ateus, crentes na fé do materialismo dialético como ferramenta explicativa dos fenômenos históricos e como motor da história. Para eles, a religião não passa de superestrutura ideológica para legitimar a dominação de classe, nada tendo de transcendental e salvífica. Numa palavra, é um engodo, uma ilusão de tolos que persiste até que os missionários da nova fé materialista imponham a sua verdade.

Alguém poderia dizer que os padres e religiosos partidários da teologia da libertação (pfui!) apóiam entusiasticamente o socialismo e o PT. É verdade, mas essas são ovelhas desgarradas, que de cristãos nada mais têm, nem mesmo a casca. Deram tudo a César e esqueceram da mensagem de Cristo.

Quanto ao PL, toda a gente sabe que virou uma legenda dos evangélicos, supostamente crentes na verdade revelada e inimigos declarados dos ateus e hereges. Qual é a lógica? Como os opostos podem celebrar uma aliança? Como o rebanho das ovelhas poderá nos comícios cantar aleluia a Lula lá?

A resposta é bem simples e direta: é puro oportunismo político. Os opostos se dão as mãos porque pensam assim chegar ao poder. Uma vez lá, a história seria outra. Certamente a governabilidade ficaria muito difícil com as posições dos aliados sendo absolutamente antagônica quase que sobre tudo, exceto quanto à regulamentação dos horários arbitrários dos gritos e urros de louvor, como a Dona Marta e seus aliados fizeram aprovar recentemente em São Paulo. Isso para desespero dos vizinhos dos templos que não têm a felicidade de serem portadores da surdez.

A história é rica em contar o que os socialistas fizeram com os homens e mulheres de fé por onde passaram. Foi a destruição pura e simples, a perseguição sistemática, o fechamento das igrejas, como está a acontecer nesse momento na China comunista e que desde sempre aconteceu em Cuba. Então podemos dizer que uma aliança dessas passa ao largo da sensatez, é uma temeridade. É a assembléia das ovelhas elegendo o lobo mau para o cargo de pastor.

Mas em política é assim, é o reino do Tinhoso e as coisas mais surpreendenetes podem acontecer. A vontade de poder supera qualquer escrúpulo e passa por cima de qualquer princípio.

Aleluia, irmãos, e que Deus nos ajude a todos nós.

As simplificações de Umberto Eco

7 de outubro de 2001

A Folha de São Paulo de hoje (07/10) traz um ensaio do escritor italiano Umberto Eco. É um texto sofisticado e muito bem escrito e tem o grande mérito de não cair na esparrela marxista de tentar ver os acontecimentos históricos e os fatos do 11 de setembro sob o ângulo da luta de classes. Ele afirma: “Passemos agora ao confronto de civilizações, por que é essa a questão“. Um intelectual aparentemente honesto, embora seu texto seja portador do mesmo veneno que outros escritores menos talentosos e menos cultivados destilaram igualmente: o relativismo cultural e moral.

Não é fácil fazer a exegese de um texto tão bem feito, tendo que explicitar o que há de errado com a sua forma engajada de fazer a defesa dos atacantes do Ocidente. É o que eu vou tentar fazer aqui.

Eco toma como mote e ponto de partida do seu ensaio a fala de Berlusconi, que afirmou a superioridade da cultura ocidental e cristã em relação à dos muçulmanos agressores e, como um intelectual engajado, compara-o a Bin Laden, “que talvez seja mais rico que o nosso primeiro-ministro“. É claro que Eco vê na riqueza individual uma espécie de defeito congênito. Por isso que ele se preocupa “com os jovens porque a cabeça dos velhos não se muda mais”. Implicitamente, é preciso torná-los semelhante aos Ecos espalhados pelos mundo.

Aqui, com mais elegância e arte, ele bate na mesma tecla em que bateram todos os ícones esquerdistas mundiais: que Bin Laden é rico, é reacionários e que, portanto, é equivalente aos seus iguais do Ocidente. Lá, como cá, tem seus fundamentalistas radicais. O que está errado com essa analogia? O fato de esconder que o Ocidente há muito renunciou à guerra de conquista, à evangelização dos povos não cristãos, que prega o ecumenismo e o Papa, possivelmente o maior símbolo da cristandade perante o mundo não cristão, tem pedido perdão e desculpas pelo passado de “erros” dos cristãos. Eco está errado também por não se lembrar que os muçulmanos simplesmente consideram um profanação que algum infiel pise no solo sagrado da Arábia Saudita, que não reconhecem o direito à existência dos diferentes, que o seu objetivo é construir um Estado teocrático mundial baseado no Corão, enquadrando todas as populações do planeta no obscurantismo em que estão mergulhados.

Dito de outra forma: o Ocidente cristão é tolerante com os diferentes, aceita-os, cultiva-os, recebe-os de braços abertos na sua terra, generosamente tenta lhe passar os seus conhecimentos e pratica a ajuda humanitária, indo as vezes à guerra contra cristãos que não respeitam esses valores, como no caso da Iugoslávia, defendendo os muçulmanos vítimas de genocídio. Alguns indivíduos ocidentais, movidos pela mais generosa das misericórdias, vão àqueles rincões distantes de populações muçulmanas para ajudar e acabam freqüentemente sendo mal tratados e até mortos pela ousadia de ir lá. Então não é possível comparar ambas as atitudes, que são diametralmente opostas. O Ocidente está no século XXI, os muçulmanos pararam no século VII.

Quando Eco afirma que “As guerras de religiões que ensangüentaram o mundo por séculos nasceram de adesões passionais a contraposições simplistas, como nós e os outros, bons e maus, negros e brancos” esqueceu-se de dizer que esse é um capítulo superado no Ocidente, mas é a alma viva do Islã, que se alimenta do ódio ao Ocidente, da mítica idade do ouro que teria havida no passado em que a fé islâmica dominava o mundo, na certeza escatológica de que o domínio político do mundo e a imposição, a ferro e fogo, dos preceitos do Islã, será a instalação do paraíso na terra. E não passa de mera figura de retórica tentar justificar as ações dos radicais islâmicos com os fatos históricos do passado, é a relativização da gravidade dos fatos e a ocultação da sua hedionda imoralidade. De uma vez por todas é preciso ter em conta que não é possível desfocá-los (os fatos históricos) do seu tempo e muito menos transportá-los para o momento atual. Do ponto de vista histórico, os fatos são o que são e não faz sentido enquadrá-los em um tribunal de inquisição. Nisso o Papa está redondamente errado. Não haveria do que pedir desculpas. Todos os agentes históricos possivelmente culpados estão mortos.

De forma correta Eco afirma que “A verdadeira lição que se deve tirar da antropologia cultural é que, para dizer que uma cultura é superior a outra, é preciso fixar parâmetros. Uma coisa é dizer o que é uma cultura, outra é dizer com base, em que parâmetros a julgamos“. Só que a sua argumentação parte para campos passíveis de equalizar o Ocidente com o mundo muçulmano, fugindo dos pontos realmente fundamentais, que tornam o Ocidente positivamente superior. Ora, ir buscar na história os grandes feitos científicos e filosóficos do árabes de nada serve para explicar o atual atraso científico, filosófico e tecnológico dos mesmos. É um argumento mal intencionado, mentiroso. E aqui não se trata de discutir questões teológicas relativamente às questões ditas sagradas, mas como essas questões influem sobre o indivíduo, sua liberdade, sua criatividade, sua afirmação diante do mundo. “Os parâmetros de julgamento são outra coisa, depende de nossas raízes, de nossas preferências, de nossos hábitos, de nossas paixões, de um sistema de valores nosso“. Exato. Então porque Humberto Eco não tocou na questão feminina, no sistema de Justiça, nas liberdades individuais, na separação entre o poder político e o poder religioso, no princípio da sacralidade da vida individual e dos limites em que o Estado deve atuar, respeitando a privacidade do cidadão? É isso o que verdadeiramente separa hoje ambas as culturas e o que torna o Ocidente muito superior ao mundo Islâmico e nisso qualquer pessoa sensata tem que concordar com Berlusconi. Se uma corrente migratória, por hipótese, se estabelecesse de um país europeu para o Oriente Médio nem seria recebida e mesmo nem seria estabelecida: os indivíduos seriam mortos em pouco tempo. O que dizer de uma Europa e uma América que não apenas recebem os muçulmanos, mas respeitam exaltadamente as diferenças e aceitam o cultivo de suas tradições, mesmo sabendo que eles consideram o mundo judaico-cristão o Grande Satã?

Eco usa de expediente retóricos insidiosos para relativizar e igualar ambos os pólos, especialmente quando afirma: “Bin Laden e Saddam Hussein são inimigos ferozes da civilização, tivemos senhores que se chamavam Hitler ou Stálin“. Ora, esses dois últimos são a degeneração do Ocidente, a sua própria negação, enquanto os dois primeiros apenas são a encarnação na forma de poder político do que pensam as massas islâmicas. É inaceitável colocar Hitler e Stálin como exemplos do ser ocidental. Eles são o seu oposto.

É muita confusão sob o céu“, afirma Eco, pois “parece que a defesa dos valores do Ocidente se tornou uma bandeira da direita, enquanto a esquerda é, como sempre, simpatizante islâmica”. Eis o ponto. A direita e as pessoas sensatas imediatamente perceberam a gravidade e a grandiosidade histórica dos acontecidos do 11 de setembro. Os esquerdistas continuaram a bater na mesma tecla, a de que o inimigo da civilização e deles próprios são as forças da ordem. Preocupados em tomar o poder político de assalto e enraivecidos por Bush ter vencido o seu candidato, perderam o timing e a capacidade analítica. Eco percebe isso e tenta chamar os seus companheiros ideológicos para a razão. Os esquerdistas não se aperceberam que as querelas políticas paroquiais perderam relevo diante de uma ameaça real à nossa forma de ser. Não falo aqui apenas da ameaça física daqueles infelizes que casualmente estavam onde fizeram cair os aviões e onde poderão estar quando explodir o próximo artefato de morte. Falo da perda, ainda que temporária, das liberdades civis, falo do alargamento das distâncias, falo do muro invisível que foi instantaneamente construído entre nós e os outros e também entre nós mesmos.

A defesa dos valores da ciência, do desenvolvimento tecnológico e da cultura ocidental moderna em geral foi sempre uma característica das alas laicas e progressistas” (ele quer dizer esquerdistas). “Contrário foi sempre o pensamento reacionário (no sentido mais nobre do termo – pelo menos começando com a negação da Revolução Francesa – que se opôs à ideologia laica do progresso afirmado que se deveria voltar aos valores da Tradição“. Isso é uma inverdade. Ora, Eco deveria dizer que sem a Tradição os valores superiores do Ocidente jamais teriam germinado e a sociedade aberta que construímos não existiria. Sem cristianismo não haveria capitalismo, e sem este não existiriam as liberdades individuais e a exaltação do indivíduo que conseguimos, a duras penas, construir. A liberdade consiste precisamente nisso, na liberdade individual, diante do Estado, da Igreja e de qualquer poder que se opõe à afirmação individual. Eco esqueceu de dizer também que os intelectuais de esquerda perderam o bonde em 11 de setembro porque continuaram a ver fantasmas em lugar de fatos, a falar mal do capitalismo e da globalização, quando na verdade deveriam enxergar que o perigo estava chegando no lombo dos camelos.

O autor finaliza o texto com uma inversão total do que escreveu. O tempo todo ele mostra como os engajados quebraram a cara e perderam o timing. No final, todavia, afirma: “Os mais sérios pensadores da Tradição… sempre se voltaram, mais do que para ritos e mitos dos povos primitivos ou para a lição budista, para o próprio islã, como fonte ainda atual de espiritualidade alternativa. Sempre estiveram ali a nos lembrar que não somos superiores, mas, sim, diminuídos pela ideologia do progresso, e que devemos ir procurar a verdade entre os místicos sufis ou entre os devixes dançantes“. Ora, a Tradição consiste precisamente na defesa da Tradição, contra as concorrentes alternativas. Quem tem cultivado o exótico são precisamente os esquerdistas, que fizeram de elementos religiosos estranhos e exóticos instrumentos de propaganda para destruir a moral vigente e enfraquecer as forças da ordem. Essa afirmação é absolutamente falsa, como também é falsa a conclusão que ele tirou:

Nesse sentido, na direita está se abrindo uma curiosa rachadura

Deus meu, rachada e desorientada está a esquerda em todo o mundo. É patético ver, por exemplo, Tony Blair como mensageiro da guerra, sabendo que ele tem como eleitores precisamente as hordas esquerdistas do lema paz e amor e todos os simpatizantes orientalistas, que acreditam que as grandes verdades reveladas estão nas civilizações atrasadas. A rachadura é na esquerda, que poderá inclusive encolher formidavelmente, até porque os tempos não serão tolerantes nem com a dubiedade, nem com a tibieza e nem com a mentira. É o tempo de afirmação da Verdade indelével e ela toda está contida em nosso Livro.

Bin Laden não é o conselheiro

11 de outubro de 2001

Um dos comentários mais mendazes que li sobre Osama Bin Ladem está na Folha de São Paulo de hoje (11/10), escrito por Márcio Aith (“Cabul e Canudos evocam luta do bem contra o mal”). Esse autor tenta traçar um paralelo entre Bin Ladem e o nosso Antônio Conselheiro, personagem central do nosso infausto Canudos.

E por que não procede o paralelo? Por que em Canudos houve uma guerra civil, se é que podemos chamar assim. Foi um conjunto de mal entendidos de parte a parte que deu na grande tragédia. Tudo que o Conselheiro e seus adeptos queriam era viver em paz a sua vidinha camponesa, paroquial, mas quis o destino que as coisas dessem no que deu. Canudos era um fim-de-mundo esquecido e seus habitantes jamais quiseram agredir ninguém, desde que lhes deixassem em paz e respeitassem a sua crença. E, em hipótese alguma, alguém poderia colocar sobre ele a pecha de terrorista.

Já o saudita é o oposto de tudo isso. Tem o projeto de estabelecer um Estado islâmico mundial; tem força e determinação para combater a própria civilização ocidental. Não obstante ser oriundo de um fim-de-mundo é, paradoxalmente, um globalista, que tenta construir um império. E ele acredita que o terror é uma arma que deve ser usada em todos os lugares e por todos os meios, sem qualquer restrição moral.

O Conselheiro e seu povo apenas defenderam-se quando invadiram o seu pequeno mundo. Osama Bin Ladem, ao contrário, agrediu sensacionalmente o coração da América, em um ato covarde planejado com muita antecedência, usando de conhecimentos militares requintados que o povo de Canudos nunca teve. Um ato de guerra.

Esse é um exemplo de comentário que busca equiparar os diferentes. Todos sabemos que a epopéia de Canudos é algo que os brasileiros vêem com muita simpatia e piedade. Será que o autor tenta produzir esse efeito para os terroristas muçulmanos junto à opinião pública? Espero que não, pois seria de uma indignidade sem tamanho. Espero que o texto tenha sido apenas um equivoco.

Giannotti ocultando o real

7 de outubro de 2001

Os últimos artigos de José Arthur Giannotti publicados na grande imprensa até que foram bem interessantes, ocasião em que denunciou a campanha pela ética como um instrumento de luta política e afirmando que há uma zona cinzenta na ação política em que os termos éticos não são muitos claros. Sinal de vida inteligente e de amadurecimento diante da vida.

O artigo de hoje (07/10), publicado no Caderno Mais! (“A ocultação do real”), da Folha de São Paulo, todavia, devolveu o autor ao seu ninho. Além de ser fraco e pouco original, ele conseguiu em poucos parágrafos fazer algumas afirmações insustentáveis. O maior dos absurdos foi louvar como atos de coragem a ação dos terroristas suicidas. Eu tive a oportunidade, na semana que passou, de escrever especificamente sobre esse absurdo. O suicídio já é, sozinho, um ato de extrema covardia diante da vida. Feito para matar outras pessoas é um hedionda covardia. Não há virtude alguma no que fizeram: só baixeza, tibieza, aleijão moral, covardia. E não é possível afirmar que esses suicidas sejam indivíduos: são máquinas no exato sentido do termo, instrumentos de outros para executarem tarefas que são sujas e dispendiosas. Não eram mais seres humanos, pois perderam a capacidade de julgamento moral, o senso de proporções, a piedade que é normal em um ser humano. Como filósofo profissional, é imperdoável que Giannotti tenha escrito essa bobagem. A coragem é altruísta e objetiva obter algo superior. A baixeza moral jamais pode estar associada à virtude da coragem. Os atos do 11 de setembro foram exemplos da mais suprema covardia.

Corretamente o autor se pergunta: “Até que ponto essa guerra é ainda política? Não se resume no combate de uma forma de vida contra outra, prestes a sufocar a própria vida?” E conclui: “Restaura-se a antiga hipótese segundo a qual o conflito entre as classes e os Estados teria sido substituído pela luta de morte entre civilizações antagônicas”. Nada a objetar, a não ser a conclusão que ele tira de que, “contra o terror, o Estado se converte em Estado terrorista”. É uma forma de acusação antecipada contra a ação norte-americana de combate ao terror, em defesa dos terroristas. Essa mentira gratuita permeia todo o artigo e contraria os fatos, ocultando o real. O que vimos até agora foi os EUA portarem-se de forma contida, irem em busca das investigações para fundamentar a sua ação, exercerem a atividade diplomática no limite das suas possibilidades, a ponto de colocarem o Paquistão entre os seus aliados. Não houve vingança por parte das autoridades daquele país. Se há alguma forma de comportamento civilizado em tempos de guerra, podemos dizer que os EUA conseguiram isso. Contrariando a expectativa de muitos, não disparou um único tiro antes de concluir todo um ritual de convencimento da opinião pública mundial e dos muitos governos pelo mundo, especialmente os governos dos países islâmicos. Podemos acusar a reação dos EUA de terrorista? Em hipótese alguma.

Giannotti tenta equiparar Bin Laden a McVeigh e a ultra-ortodoxia judaica. Ora, McVeigh pode ter sido um delirante terrorista, mas a única coisa que ele queria era ter uma menor presença do governo na sua vida e na dos seus próximos; o mesmo pode ser dito dos ultra-ortodoxos, pois tudo que estes querem é viver o seu modo de vida, sem querer submeter ou destruir o resto do mundo. Bin Laden e sua gang, ao contrário, tem o explícito propósito de exterminar todos aqueles que lhes são diferentes, em qualquer lugar do planeta, por qualquer meio. São genocidas. Isso muda qualitativamente a situação.

Como psicólogo, Giannotti também deixa muito a desejar. Ele afirma que “a história nos ensina que o militante se converte em guerrilheiro quando está irremediavelmente acuado, quando os exércitos em que poderiam se integrar foram desbaratados, nas mais lhe restando, para continuar a luta, do que se dispersar em pequenos grupos, tentando derrotar o inimigo pelas costas, pelos lados, nunca de frente”. Ora, Bin Ladem e seus fundamentalistas muçulmanos de maneira nenhuma se enquadram nesse figurino. O distinto guerrilheiro é tido e havido como milionário, herdeiro de fabulosa fortuna na Arábia Saudita e possivelmente, se quisesse, teria lá um lugar de destaque nas forças armadas. Então a sentença de Giannotti não se aplica a seu caso. Daí a receita inaplicável do autor para a solução do conflito: “O remédio então é criar um espaço em que a luta continue em termos civilizados e, por fim, se transforme em negociações democrática”. Santa ilusão! Se um Giannotti caísse no meio dos muçulmanos só haveria uma maneira de sobrevier: dobrando-se sobre os joelhos várias vezes ao dia, com a cabeça voltada para Meca, e as mulheres da sua família passando a envergar modelitos dos tempos da Virgem Maria. E, quanto à democracia, só aquela que viabiliza o diálogo do chicote do Mulá com o lombo dos açoitados.

Caminhando para a conclusão do artigo, o autor faz uma afirmação estarrecedora, justificando os atos terroristas: “O patriota muçulmano (como se ser muçulmano configurasse uma unidade política – JNC) que vê seu país sendo dominado por uma corja de abrutes (o poder legitimamente constituído – JNC), Estados sendo criados e abolidos segundo os desígnios dos vitoriosos das grandes guerras, não tende a voltar sobre si mesmo, encontrar sua própria identidade nos segredos de sua fé?” Ele, como filósofo, deveria pelo menos lembrar que nenhuma situação do mundo justifica a abolição da moral, especialmente no que tange à sacralidade da vida.

E o que propõe Giannotti? Sutilmente, a revisão do Estado de Israel (“A história do Oriente Médio teria sido diferente se o Estado de Israel não fosse criado, alargando a ferida que já maculava suas relações com o Ocidente. Será possível desbaratar as redes de terrorismo muçulmano sem fechar essa ferida, sem aterrar a fonte de frustração que gera terroristas em potencial?”) como se isso fosse possível, como se isso, consumado, não significasse a completa derrota do mundo ocidental, como se os judeus, residentes ou não em Israel, fossem aceitar passivamente uma solução desse tipo, tão inútil quanto estúpida. Fico até pensando se ele se deu conta da monstruosidade do que escreveu.

E para finalizar, como bom militante de esquerda, culpa a globalização pelo conflito: “A chamada globalização até agora aprofundou as diferenças regionais, relegando parte da humanidade à instabilidade ou à miséria permanente. Desse modo, globaliza-se as sementes do terror, cria novos bárbaros capazes de ameaçar a tranqüilidade das novas Romas”. Ou seja, o culpado, em última instância, é a própria vítima. Quem manda ser rica, tecnologicamente avançada e ainda servir de modelo para o resto do mundo?

O terrorismo fica plenamente justificado nesse artigo infame.

O inimigo de Wall Street

12 de outubro de 2001

Para quem gosta de escrever artigos definir o título é um momento importante do processo. Eu às vezes faço-o e depois deixo fluir o texto. Quase nunca tenho que mudá-lo. Às vezes, faço o texto e depois defino o título. E, mais raro, faço o texto, defino um título provisório e fico me roendo, insatisfeito, pois acho que poderia ser melhor, mais fiel ao texto.

Para as linhas que abaixo foram escritas, o título que ficou definido foi uma das muitas possibilidades que me ocorreram. Pensei em “O Mentiroso”; outro foi “Uma Ode ao deus-Estado”; outro foi “O Estatista”; Outro, “O Lucrofóbico”; Outro, ainda, “O Bin Laden da Economia”. Por último, “Um Candidato ao Prêmio IgNobel”. Os leitores podem, à sua escolha, substituir o que está acima por um desses, porque, penso, até que todos refletem, em maior ou menor proporção, a idéia central deste comentário.

Refiro-me ao artigo publicado na Folha de São Paulo de hoje (12/10), da lavra do recém ganhador do Prêmio Nobel de Economia, Joseph Stiglitz. O título do artigo é mais do que sugestivo: “EUA têm de rechaçar fundamentalismo de mercado”. Havia muito tempo que eu não lia algo de um economista de renome tão anti-mercado e tão pró estatista. É claro que para conseguir essa proeza ele teve que cometer grandes absurdos de lógica e falsificar a verdade dos fatos.

Fundamentalismo de mercado: é como se dissesse que as explosões dos aviões que fizeram desaparecer o World Trade Center tivessem como causa primeira a sociedade capitalista, a própria vítima, no caso. E que Bin Ladem fosse uma agente da transformação social, um gajo vingador das forças submersas dos estatistas. A luta de vida e de morte que travam os partidários da livre iniciativa e os socialistas (essa é a palavra técnica para definir a posição política de Stiglitz) teve na eleição de Bush um instante vitorioso para os primeiros, ficando os segundos na cômoda posição de franco-atiradores contra a nova estrutura de poder.

Stiglitz, todavia, e não obstante o laurel obtido, no curto artigo conjuga um amontoado de bobagens, dignas de ganhadores do IgNobel. Começa com uma pérola impagável: “Há um sentimento crescente de que talvez nos tenhamos equivocado ao dar ênfase demais aos interesses materiais egoístas, esquecendo um pouco de compartilhar”. O autor não percebe e não quer perceber que as empresas capitalistas só o que fazem é compartilhar, que as trocas do livre mercado são a essência do compartilhamento da produção social e que sem esse compartilhamento as empresas simplesmente quebram. Se o distinto consumidor se recusar a compartilhar a produção de alguma empresa, uma abraço, é caixão e vela preta para ela, quebra. Basta ver o dramático exemplo que está a acontecer com a indústria de aviação civil e com o setor hoteleiro nos EUA. Sem compartilhar é quebrar. O consumidor tem o poder de vida e de morte sobre as empresas. Para elas, compartilhar é sobreviver.

O que o distinto IgNobel entende por compartilhar é que aqueles que trabalham, dão duro e coisa e tal devem pagar mais impostos para que burocratas com Stiglitz possam gastá-los de acordo com os seus preconceitos. Isso é na verdade uma injustiça, castiga quem faz a sua parte no processo e premia aqueles que não querem nada com o batente (menos) e os burocratas intermediários das benesses do Estado (mais).

O homem bate duro contra a privatização da segurança dos aeroportos, acusando-a, entre outras coisas, de ser culpada pelos atentados dos terroristas muçulmanos. Nas suas palavra: “Não faz sentido privatizar uma área de vitral interesse público como a segurança dos aeroportos. Os baixos salários pagos aos agentes privados de segurança geraram grandes lucros. Linhas aéreas e aeroportos ganharam, a curto prazo, mas tanto elas quanto o povo dos Estados Unidos terminaram perdendo – e muito – como hoje sabemos, horrorizados”.

Vamos analisar a citação por partes. 1- Afirma que os atentados e suas dramáticas conseqüência para a indústria de aviação civil foram causados pela privatização da segurança dos aeroportos; 2- Os baixos salários são também um elemento etiológico da tragédia, tendo como vítima os infelizes trabalhadores que os ganham; 3- Os grande lucros também são os culpados, agentes ativos que beneficiam os desalmados capitalistas; e 4- O povo americano foi a vítima inocente desse processo de privatização.

Até a pequena Maria, minha filha de quatro anos, sabe que a luta contra o terror é difícil e que esse se vale sempre e sempre do elemento surpresa, de difícil prevenção. Foi isso que aconteceu, numa ação muito bem planejada, com muito tempo de antecedência, que ninguém e, sobretudo os órgãos de Estado, a quem caberia antecipar-se, pôde prever. A responsabilidade sobre os acontecidos é, antes, da CIA, do FBI e das forças de inteligência como um todo, não dos coitados dos seguranças dos aeroportos, que cumpriram à risca as determinações emanadas do Estado, supostamente capazes de prevenir ações do tipo. Se houve falha, foi do Estado e não das empresas privadas de segurança. E até acho que não houve falha, os EUA estavam vivendo em paz, sem ameaça ostensiva e dentro de uma relativa segurança, mas isso não retira a falta de antecipação e de planejamento dos órgãos de inteligência do Estado, que são pagos para isso. Fosse eu um funcionário das empresas de segurança dos aeroportos, entraria na Justiça contra Stiglitz, por calúnia e difamação. O homem é, de fato, um mentiroso.

Ora, dizer que há baixos salários é como se fosse uma arbitrariedade das empresas praticá-los, e não uma realidade de mercado. Salários não podem ser descolados da sua produtividade. Por definição, sem a interferência do governo e dos sindicatos os salários praticados refletem o seu valor. É provável que a taxa de salários vigente nesse mercado fosse compatível com a necessidade de manter as tarifas dos bilhetes aéreos a um preço razoável, permitindo a prosperidade de toda a indústria, significando o bem-estar dos consumidores usuários desse serviço. O sujeito que escreve uma opinião dessa, com um diploma de economista laureado, só pode ser considerado um agente da mais pura má fé, pois supostamente não é um ignorante. Que diabos tem a ver os supostos baixos salários com a vontade criminosa da terroristas? Simplesmente nada.

Falar dos lucros das empresas é apenas a expressão verbal do preconceito com que essa grandeza econômica é tratada pelos socialistas. É uma acusação gratuita, típica de engajados na guerra gramsciana de desinformação. Também nada tem a ver com o ímpeto homicida dos terroristas.

Americanos vítima da privatização? A realidade é exatamente o contrário. São, os americanos, o povo do mundo que melhor se beneficia da falta de presença do Estado na produção de bens e serviços. Stiglitz está tão obcecado com seu ódio ao mercado que não enxerga o óbvio: que os americanos foram vítima da vontade criminosa de tresloucados, que foram fazer a guerra em pleno solo americano. Essa é a causa primeira e derradeira do processo, todo o resto são quimeras das cabeças espumantes do ódio de classe. É o mesmo que dizer que o ataque dos japoneses na Segunda Guerra teve como causa a privatização de algum serviço. Só um doido varrido para fazer uma afirmação dessa.

Ele faz uma pausa para escrever alguns parágrafos contra os chamados “paraísos fiscais”. Tudo que burocratas estatistas como Stiglitz querem é garrotear a livre circulação de capitais pelo mundo, objetivando taxar os seus ganhos, o seu estoque (confiscá-los com algum tributo sobre a riqueza) e definir a sua alocação. Querem a implantação do socialismo mundial. Nem vou discutir essas sandices, que são tão óbvias que não pagam o tempo. Fica o recado aqui que criminosos são os banqueiros e investidores de Wall Street, que só pensam naquilo, ou seja, no lucro e reduzem o Estado, prejudicando a segurança. O homem é, de fato, um lucrofóbico, com a licenaça do neologismo.

Na seqüência ele acusa uma outra ação de privatização nos EUA, para uma empresa que faz enriquecimento de urânio (United States Enrichment Corporation – Usec). Nas entrelinha deixa claro que se algum artefato atômico explodir pela mão dos loucos de Alá será responsabilidade dessa empresa privada. Ele afirma: “Como pôde o governo levar adiante essa privatização absurda sob qualquer ponto de vista? Ainda que a ideologia da privatização seja parte do motivo, os interesses financeiros influenciaram o caso: a empresa de Wall Street encarregada da privatização pressionou e lucrou, muito”. Alguém pode imaginar crime maior que esse, lucrar muito?

Penso que nem os mais xiitas dos economistas do PT produziriam um artigo tão absurdo, tão cego em relação aos fatos e tão ideológico, no pior sentido da expressão. Uma verdadeira peça de propaganda socialista.

O artigo do homem é, de fato, ignóbil, no sentido dado pelos dicionários de língua portuguesa à palavra. Alguns deles, a escolher: 1- Baixo, vil, desprezível; 2-Que não tem honra, vergonhoso, torpe; 3- Que possui pouco ou nenhum valor. Acho que qualquer das definições dão muito bem a medida do conteúdo do texto.

O PT e o socialismo

A Folha de São Paulo torna-se, cada vez mais, a porta voz oficiosa do Partido dos Trabalhadores. A edição de hoje dedica a página cinco inteira do caderno A ao ciclo de seminários que o PT está fazendo sobre a questão do socialismo, tema eternamente recorrente dentro da legenda. Mas acaba prestando um serviço para aqueles que estão fora da agremiação. Alguém já viu a agenda dos encontros dos partidos da ordem publicada em destaque no jornal? Eu nunca vi. Isso é um privilégio petista.

Interessante os temas da agenda:

Em 15/10 – A luta pelo socialismo no século XXI

Em 22/10 – O negro e o socialismo

Em 05/11 – O meio-ambiente e o socialismo

Em 12/11 – A mulher e o socialismo

Em 19/11 – A religião e o socialismo

Ao lado da divulgação da agenda, uma espécie de convocação para discutir o conspícuo tema, está uma entrevista com o organizador dos eventos, Antônio Cândido. A entrevista vale por si. Antônio Cândido coloca implicitamente o PT como o legítimo herdeiro das bandeiras e táticas de luta do velho PCB. Perguntado pelo repórter se havia um descompasso entre a proposta de socialismo e a ação política do partido para alcançar o poder, ele foi de toda franqueza:

“Sinceramente, não creio que haja esse descompasso. Para mencionar algo óbvio, em toda atividade política [Note bem: da esquerda no Brasil – JNC] há dois níveis, desde que não se trate de mero oportunismo. Dois níveis que nem sempre coincidem exatamente, e o esforço deve ser no sentido de fazê-los coincidir o mais possível. Assim é que o PT tem objetivos remotos, que podem ser resumidos como esperança de uma sociedade realmente igualitária… E há os objetivos imediatos, ligados à conquista do poder para ter condições de tentar a realização o quanto antes da esperança… Não creio que isso esteja acontecendo com o PT, porque a cada oportunidade os seus órgãos e os seus líderes continuam afirmando os seus princípios e a sua deliberação de caminhar segundo eles. Por isso costumo dizer que a política socialista é essencialmente bifocal, combinando a busca do futuro e a injunção do momento num esforço simultâneo…  A nossa (dialética) consiste em modular a atividade política distinguindo bem o que é transitório e o que é alvo final”.

Para quem conhece a história política do Brasil, as declarações de Antônio Cândido não contêm nada de novo. A esquerda sempre foi bifocal, sempre mentiu em público para ganhar votos, pousou de moderada, mas a sua liderança sempre quis implantar o socialismo. Este, todavia, só se implanta pela via militar, pela força, pela abolição da ordem democrática. Socialismo é apenas um outro nome para totalitarismo. Então podemos dizer que a franqueza de Antônio Cândido consagra essa tradição de imoralidade, de tentar enganar o eleitorado para, chegando ao poder, fazer aquilo para o qual as urnas não deram mandato.

E não é surpreendente que as mesmas pessoas que usam essas táticas imorais sejam as que mais clamam pela ética na política. Ora, eles são a própria expressão da ação política sem ética, que fazem da mentira a ferramenta por excelência para obtenção do triunfo eleitoral. Ética torna-se, portanto, um mero discurso, um disfarce, um instrumento de ação política.

Um ser bifocal, bifronte, é um esquizóide. É o monstro disfarçado de médico; é a fera disfarçada de príncipe. A luz tênue que irradia esconde uma sombra violenta e sedenta de sangue. Onde as forças bifocais assumiram o poder a miséria praticada não foi pequena e o totalitarismo triunfou.

A novidade é que isso é agora candidamente dito pelos dirigentes e publicado pelos grandes jornais, que se tornaram seus porta-vozes. Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça; quem tem olhos para ler, que leia.

E valha-nos Deus.

O túnel do tempo

6 de outubro de 2001

Um dos efeitos colaterais dos acontecimentos do 11 de setembro foi mostrar ao mundo em que condições as populações muçulmanas vivem, seus hábitos, seus costumes, seu modo de ser. A TV tem mostrado com farturas de imagens o cotidiano daquelas pessoas, tão diferentes de nós, ocidentais. Contudo, eles estão menos distantes na geografia do que no tempo. Pelo tubo da TV como que fazemos uma instantânea viagem ao passado, um retorno aos costumes que devem ter sido de toda a gente nos primórdios da Era Cristã. O que mais deprime é ver todo o sexo feminino reduzido à condição mais abjeta, equivalente ou inferior àquela dada às bestas de carga.

O embaixador Meira Penna tem analisado essas diferenças sob o ângulo das relações entre os sexos como o motivador principal da hostilidade dos radicais islâmicos para com o Ocidente. Em excelente artigo ainda não publicado (“O Terror Islâmico e a Revolução Sexual”) coloca a questão em termos bastante originais, mostrando que, de fato, trata-se de um embate entre civilizações, não apenas entre os muçulmanos e as demais, mas sobretudo na relação arcaico x moderno. E o moderno tem seu cerne diferencial na relação entre os sexos. O que construímos no Ocidente em termos de liberdades individuais, igualdade jurídica e prática, igualdade de oportunidade e a efetiva emancipação feminina do jugo do macho, algo sem paralelo na história, ameaça qualquer outra forma de organização social e, em especial, a islamita. Nas suas palavras:

Em conclusão, podemos acentuar que a seriedade da problemática criada pelos Fundamentalistas, como infensos à modernidade, reside na recusa obstinada a superar seu machismo patriarcal, seus ressentimentos e seus impulsos homicidas. Em nenhuma outra religião ou sociedade política (no Islam, elas se confundem) a resistência ao feminismo é tão tenaz. Mesmo na Igreja católica, é pouco provável que as injunções papalinas ainda persistam por muitos anos de aggiornamento. É um problema de rebelião contra a modernidade que poderá acarretar conseqüências funestas no futuro. A questão se relaciona, evidentemente, com o extremismo chauvinista do macho, sustentado em Escrituras religiosas arcaicas que agravam o dilema desses países quanto à integração à modernidade global – uma alternativa que poderá ser de árdua solução. Chego a acreditar que o Islam vai configurar, neste século, um dos maiores problemas políticos e sociais da Humanidade. Se a esta obstinada resistência à modernidade persistir e conduzir ao agravamento do fenômeno do Terrorismo de estilo “haxixim“, a apartheid islâmica poderá ensanguentar o mundo. Uma Jihad não está fora das cogitações.

Esse ponto de vista é consistente com a visão de psicólogo junguiano treinado que tem o nosso ilustre embaixador Meira Penna. E penso que, de todas, a sua análise é a mais precisa e que deságua em uma encruzilhada que não permitirá meios termos: ou o Ocidente moderniza as civilizações arcaica, aí significando a emancipação feminina como aqui foi conseguido, ou os arcaicos moverão contra ele guerra de extermínio sem quartel, por todos os meios, inclusive e sobretudo através de ataques suicidas, dada a inferioridade tecnológica em que se encontram.

É bom que não nos enganemos. O atraso tecnológico não lhes impede de ter acesso a artefatos de destruição em massa que poderão causar morticínios indizíveis. Eles não têm grandes armadas, nem armas em quantidade, nem aviação que ameacem as forças normais de combate do Ocidente. Nem foguetes lançadores de ogivas nucleares. Mas têm o conhecimento suficiente para produzirem artefatos menores, quase artesanais, de grande poder de destruição, podendo ser transportados por um único homem disposto a morrer em sacrifício. É uma ameaça mortal, que deverá perturbar a existência cotidiana do Ocidente por muitos anos. Um pequeno artefato atômico ou um pequeno avião pulverizador com armas químicas e biológicas podem destruir parcial ou totalmente um grande centro urbano. É um cenário de horror que está na iminência de acontecer.

A conclusão que se impõe é atravessar o túnel do tempo, seja trazendo os bárbaros para a civilização, para o século XXI, seja regredindo a uma situação pré-moderna. É essa a escolha. Vacilar e fraquejar na guerra que se inicia poderá trazer o retrocesso. Perder a guerra significará a perda das conquistas e dos valores mais desenvolvidos pela espécie humana, precisamente aqueles criados no hemisfério Ocidental.

Pobreza e terrorismo

9 de outubro de 2001

O megaburocrata James D. Wolfensohn, presidente do Banco Mundial, publicou na Folha de São Paulo de hoje (09/10) artigo intitulado “Pobreza merece coalizão mundial”. Sempre que burocratas, grandes e pequenos, falam em pobreza, é preciso ter cuidado com a carteira. Quase sempre eles estão mesmo é preocupados com o seu poder e a sua influência. Pobreza é um mero instrumento de afirmação do seu próprio poder e um ótimo instrumento de discurso legitimador. Daí porque sempre enxergarem que a superação da pobreza é tarefa do poder público, ou seja, deles mesmos, e não do mercado e da ação de cada indivíduo. Se governos e seus burocratas fossem eficazes contra a pobreza, esta há muito teria sido erradicada do planeta. A realidade mostra que isso é simplesmente falso.

Mas eu falava do artigo do burocratão. Considero espúria e completamente falsa a associação entre pobreza e terrorismo. Essa tese é um eco das teorias marxistas, que vêem na questão econômica a razão e o motivo dos fenômenos políticos. Isso também é falso. E mais falso ainda é associar o niilismo moral, que se traduz no terrorismo, à miséria de quem quer que seja.

A prova mais óbvia de que o terrorismo não se alimenta da miséria está no fato de que os chamados países ricos sofrem do flagelo do terrorismo desde sempre. Quem não se lembra de McVeigh nos EUA, ou do IRA na Irlanda e Grã Bretanha, ou do ETA na Espanha e os mais antigos movimentos, como as Brigadas Vermelhas na Itália e o grupo Baader-Meihoff na Alemanha? E dos recentes atentados no metrô de Tóquio? Essas evidências simplesmente nos revelam que não se sustenta a tese da miséria como causa etiológica do terror, uma vez que ele está em todo lugar, é bem distribuído por todo o mundo.

Então qual é a raiz do terrorismo? Em primeiro lugar, a degenerescência moral de indivíduos inescrupulosos, que fazem qualquer coisa para estar no centro do poder. É esse fascínio que está na raiz de tudo e mostra que os ensinamentos milenares das tradições religiosas enfraqueceram para aquelas pessoas, eliminando qualquer sombra das virtudes superiores. Em segundo lugar, a pregação das teorias revolucionárias, que prometem o paraíso na terra (e no céu, no caso dos muçulmanos) aos que se engajarem na sua violência política. E aqui está claro: os manuais marxista-leninistas são a base teórica e o instrumento de doutrinação da juventude, o catecismo para a formação dos futuros terroristas. Em terceiro lugar, o fanatismo religioso, mais das vezes combinado com a pregação marxista-leninista, cujo propósito é arregimentar militantes para algum lunático aventureiro, a la Lênin, que se proponha a tomar o poder pela força, atropelando o próprio destino. Aqui tradição e religião não passam de meros discursos para a elaboração de apelos emocionais, de grande ressonância em populações onde há homogeneidade de uma tradição e um enraizado conservadorismo.

Vendo as poéticas e tristes fotos publicadas na mesma edição da Folha de São Paulo, dos afegãos em fuga, com seus burricos carregados com suas mulheres e seus pertences, fica difícil imaginá-los jogando bombas em Nova York. Até mesmo o conceito de riqueza muda para essas pessoas: talvez se traduza no seu pequeno rebanho, nas suas poucas terras, na fartura de mesa para si e para os seus nos tempos do rigoroso inverno. Sim, o conceito de riqueza é também relativo e depende de cada cultura. O homem do burrico certamente se sentiria infeliz vivendo em alguma mansão de na Europa e no EUA, mas certamente estaria muito feliz fazendo a sua própria colheita e cuidando do seu pequeno rebanho, sentindo-se um homem rico. Da mesma forma, para torná-lo um terrorista é preciso, antes, cortá-lo de suas raízes.

Propor uma coalizão mundial contra a pobreza é mera retórica vazia de burocrata arrumando o que fazer. Só se combate a miséria com trabalho organizado, sem a ingerência de governos e burocratas, que são uma praga a devorar os recursos duramente produzidos pelas pessoas. São verdadeiros parasitas. A ação do Estado e da burocracia só diminui a riqueza, jamais contribuindo para aumentá-la. É óbvio que o burocrata-mor jamais reconheceria essa verdade auto-evidente. E claro que a ação dos burocratas tem efeitos nulos sobre as causas reais do terrorismo.

Kubrick e Jung

José Nivaldo Cordeiro


10 de outubro de 2001

O recente lançamento dos filmes de Kubrick em DVD permitiu-me revisitá-lo em seqüência, o que ajuda a reconhecer a unidade da obra, seja na sua temática inspiradora, seja na técnica. Toda a obra de Kubrick é uma saga em busca do Divino; a pergunta permanente que faz o grande diretor é sobre o sentido da vida. O que retrata radicalmente é o diálogo e a oposição entre o Bem e o Mal. Seus filmes são recheados do simbolismo mais sagrado, cruzes, mandalas, círculos, estrelas, cores rituais, as dualidades corpo/alma, razão/emoção, eterno/efêmero, homem/mulher, luz/sombra, consciente/inconsciente, morte/renascimento, Criador/criatura, entre outras.

Em qualquer dos gêneros que explorou, da sátira (Dr. Strangelove, Laranja Mecânica), ao drama romântico (Lolita), passando pelo épico (Spartacus, Barry Lyndon), terror (O Iluminado), guerra (Nascido para Matar), ficção científica (2001, Uma Odisséia no Espaço) e, sobretudo, no drama religioso por excelência que é o Eyes Wide Shut, sua obra síntese, o apogeu do trabalho de toda a vida, está a referência constante a Jung. Por isso seus filmes têm sido tão incompreendidos pela crítica, que insiste em colocar o instrumental do materialismo dialético e da psicologia freudiana onde não cabem. Ambas as correntes de pensamento são incapazes compreender a obra, pois estão muito aquém do objeto a ser compreendido. Como, via de regra, a crítica só dispõe desses toscos instrumentos, perde-se em palavras vãs, descoladas completamente do objeto analisado.

É impossível a compreensão da obra de Kubrick para aqueles que são pouco versados em religião. É claro que o espectador poderá até satisfazer seus gostos estéticos, pela maestria da condução do diretor, pelo detalhismo requintado das narrativas, pelo ótimo elenco escolhido a dedo para cada papel, pelos cenários magníficos, pela música magistral, pelos efeitos especiais, sempre à frente do tempo de cada produção. Mais difícil ainda é a compreensão para quem desconhece as obras de Jung. Kubrick é integralmente um junguiano, desde o princípio. Não apenas pela temática religiosa obsessivamente perseguida, mas sobretudo pela exploração dos duplos em praticamente todos os filmes, pela investigação sistemática das profundezas da alma. A sua obra é a psicologia profunda aplicada ao cinema. Não bastasse isso, ele faz uma citação literal de Jung no Nascido para Matar, na cena em que o soldado/repórter responde ao coronel sobre o lema escrito no capacete (born to killer) e o símbolo da paz no broche pregado no peito. Em O Iluminado, a criança com a dupla personalidade é ela mesma uma homenagem à pessoa do Jung, que relata a mesma experiência no seu Memórias, Sonhos e Reflexões.

O símbolo da cruz pode ser encontrado em praticamente toda a obra. Quem não lembra de Spartacus crucificado com os seus, numa tocante e poética prefiguração de Cristo? Não obstante ser um judeu, Kubrick mostra uma fascínio enorme pelas coisas do Cristianismo. E, ao contrário Spilberg, não fez nenhuma obra com temática tipicamente judaica. No Barry Lyndon, por exemplo, obra na qual o Fado é sublinhado de forma muito junguiana, na cena do duelo entre o personagem-título e seu enteado, em um ambiente que mais parece a nave de uma igreja, como um duelo entre o Bem e o Mal, vemos no alto as cruzes resplandecentes na forma de janelas, iluminando o nobre gesto de Lyndon, o guerreiro, poupando a vida do enteado ressentido. Magnífico instante daquele filme.

Da mesma forma, o 2001, Uma Odisséia no Espaço vai levar aos confins do Sistema Solar um engenho humano recheado de símbolos, cruzes, mandalas e círculos, em que o diálogo da criatura com o Criador é metaforicamente exposto na relação da tripulação com o computador Hal. Este humaniza-se ao errar e, ao tornar-se humano, repete a cena inaugural na qual macacos tornam-se assassinos caçadores, testemunhados pelo mesmo enigmático monolito. O próprio formato da nave lembra um espermatozóide penetrando na escuridão cósmica, fertilizando o universo. É o mergulho da humanidade em busca de si mesma.

Em O Iluminado, a frase grifada pelo personagem (“Mais siso e menos riso fazem o Jack infeliz”) é um instante em que a dualidade razão/emoção, mente/coração, o apolínio e o dionisíaco se chocam. Há um claro renascer de Dionísio no Ocidente nos últimos séculos, um nome pagão para o que a mitologia cristã chama de Diabo, em disputa com o caráter apolínio de Cristo. Siso contra o riso, razão x emoção: é o Diabo enganador mais uma vez desviando a humanidade mediante a promessa da felicidade fácil e falsa. A existência é e sempre foi um fardo, uma cruz a ser carregada. A festa que ele oferece é apenas uma festim antropofágico contra a entrega da alma, ou seja, da própria liberdade espiritual, da própria essência do Ser. Nesse filme, o sonhado e real se confundem. O sonho é a realidade.

Finalmente, o Eyes Wide Shut leva a expressão dos sonhos interagindo com a realidade ao limite dos recursos do cinema. O olho interior pode ser desnudado mediante a retirada de um simples pano negro. Inversamente, ao colocar o pano negro, ou seja, ao adormecer, a pessoa passa a viver uma outra realidade pelo olho interior, pelo onírico. E esse olho vê aquilo que está sob a superfície, o nefando, o sensualidade desenfreada, a perda do “siso para o riso”. No entanto, o mergulho no mundo onírico é a condição para o conhecer-se a si mesmo, para o encontrar-se, para a redenção. No Laranja Mecânica há uma cena em que o personagem protesta que a retirada do julgamento moral em alguém retira-lhe a condição humana. Em outras palavras, é necessário ao Homem confrontar-se com o Mal na plenitude de sua liberdade e inteireza, Mal que lhe aparece de todas as formas, nos duplos feminino/sombra/interior. Para buscar a luz é antes necessário renascer do reino das trevas. Para a plenitude, é preciso descobrir o Outro, sobretudo o feminino (o inverso vale para a mulher). Para renascer antes é necessário morrer. O sexo despojado de seus aspectos demoníacos é o que permite a Vida, a vinda das novas gerações, a sacralidade da união homem/mulher que é a magia da existência e a própria expressão da Divindade. Let’s a fuck!

A obra de Kubrick é uma oração ao Indizível. É o olho de um filósofo perscrutando as profundezas da alma. É uma lição de vida, mas para isso é preciso ter olhos para ver, é preciso retirar a trava do olho que impede ao espectador a percepção da realidade mais profunda.

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