Leituras

Malditos farsantes

Olavo de Carvalho

21 de julho de 2011

“Contra factum non argumentum est.”

A apologia que o Sr. Nougué faz da sua própria condição de “repetidor” (http://spessantotomas.blogspot.com/2011/07/avisos-e-o-tomismo-e-doutrina-comum-da.html) é mais uma tentativa patética de escapar dos fatos e buscar abrigo em generalidades. No campo das discussões doutrinais, é claro que o filósofo católico deve ater-se, o melhor que possa, ao ensinamento da Igreja. Mas pretender que alguma questão de realidade factual possa ser resolvida mediante o mero apelo à doutrina e sem exame direto dos próprios fatos é prostituir a doutrina, transformando-a em instrumento de vigarice intelectual e autopromoção. É esta, precisamente, a profissão dos srs. Silveira e Nougué. Daí a pressa com que, antes sequer de ter aprendido o mandamento elementar de abster-se do pecado de falso testemunho, saem usando a doutrina como arma para afastar do caminho os mais capazes e honestos.

Digam com toda a sinceridade: insinuar que com o termo “neotomismo” eu estivesse me referindo pejorativamente a filósofos anteriores de séculos à eclosão desse movimento é ou não é falsificar o sentido das minhas palavras? E fazer isso é ou não é falso testemunho? E o falso testemunho não se torna ainda mais grave se praticado com o intuito declarado de fazer da vítima um personagem suspeito aos olhos da Igreja? E é possível acreditar que o cometessem por mera inadvertência, inocentemente, confundindo tomismo e neotomismo no mesmo instante em que se pavoneavam de supremos conhecedores da matéria?

Essa é a questão de fato que motivou toda esta troca de mensagens. Os Srs. Nougué e Silveira falam, falam, falam, sempre com a boca cheia de doutrina, mas não tocam jamais nesse ponto inicial e central. Tudo o que fazem é desconversar, usando a doutrina como disfarce para acobertar sua conduta pública abominável, nojenta, criminosa no sentido mais estrito e mais técnico da palavra “crime”.

Por isso, rejeito categoricamente a sugestão de que em vez de denunciar esses vigaristas eu devesse “juntar forças” com eles. Ainda que eles pratiquem com relação a mim a mais descarada concorrência desleal, o fato é que não estamos no mesmo ramo de negócios. Posso ter cometido todos os pecados que desejem me atribuir, mas nunca pratiquei crime algum nem muito menos usei a doutrina da Igreja como instrumento para isso. Sou um pecador, mas não um fariseu hipócrita.

Jesus Cristo andava com bêbados e prostitutas, mas nunca se associou com gente do tipo de Nougués e Silveiras, homens de língua dupla, mentirosos, perversos e farsantes.

À tentação de uma “unidade” oportunística forjada na mentira e no engodo é preciso responder com toda a firmeza: Vade retro.

***

Dito o essencial, passo agora a algumas observações sobre a nota anterior do Sr. Nougué, que me acusava de ter fugido à sua proposta de debate.

Todo debate que se pretenda ao menos um pouco honesto é, por definição, precedido de discussões e negociações quanto a seus termos e regras. Ao receber o convite do Sr. Carlos Nougué, iniciei imediatamente essas discussões, questionando os termos das questões propostas e sugerindo modificações. Para adiantar o expediente, resumi até algumas das idéias que pretendia apresentar no debate, pedindo ao Sr. Nougué que dissesse se as admitia ou rejeitava, suprindo pois a deficiência da sua proposta inicial que não deixava claro nenhum ponto de discordância substantiva capaz de fornecer matéria a um debate.

Que é que ele me respondeu? “Não vou responder ao Olavo de Carvalho.” E após assim fechar-se em copas, como uma melindrosa ofendida, ainda teve o cinismo, ou talvez demência genuína, de proclamar que quem fugiu ao debate fui eu, não ele. Quando um dos debatedores se recusa a discutir os termos e regras do debate, torna automaticamente inviável o próprio debate. Se depois disso ele ainda reclama que o debate não aconteceu, com toda a evidência algo de estranho se passa na sua cabeça.

Várias hipóteses podem explicar essa atitude marcadamente teatral e louca.

Talvez ele não saiba realmente o que é um debate, ignorando portanto a necessidade de uma discussão prévia dos termos e regras. Neste caso, não deveria desafiar ninguém para jogar um jogo que ele próprio desconhece.

Talvez não lhe haja ocorrido que seu antagonista possa ter, pelo menos tanto quanto ele, o direito de discutir as regras do jogo antes de entrar em campo.

É possível, também, que na sua absoluta segurança de si como repetidor do magistério infalível, nem lhe tenha passado pela cachola a hipótese hedionda, herética, pecaminosa, satânica, de que sua proposta inicial pudesse conter alguma falha ou imprecisão digna de ser corrigida. Mas qualquer leitor alfabetizado compreende de imediato que o título “As relações entre razão e fé e entre filosofia e teologia em Santo Tomás de Aquino” enuncia apenas um assunto geral, não a contraposição entre duas opiniões possíveis.[1] Isso não é título de debate, mas de tese acadêmica, se tanto. O enunciado do segundo tema era pior ainda: “Deve um teólogo-filósofo católico invocar o magistério da Igreja?” A pergunta que tem resposta óbvia, imediata, inequívoca e universalmente aceita não pode, por definição, ser matéria de debate. Essa resposta já foi dada pelo próprio Sto. Tomás, com pachorra admirável, e nunca existiu no mundo um teólogo ou filósofo católico que a contestasse. Não se pode montar um debate em torno da pergunta “Quantos lados tem um quadrado?” Não entendendo que raio de coisa o meu desafiante pretendia discutir sob esse tópico, tomei-lhe satisfações, pedindo que modificasse o tema ou explicasse que mistérios se agitavam na obscuridade do seu cérebro quando me desafiou para discutir o óbvio. A terceira questão, admiti, podia ser objeto de debate, contanto que o desafiante esclarecesse se pretendia se referir à democracia liberal como modelo teórico ou como realidade histórica existente, que não é cópia do modelo.

Que é que ele me respondeu? “Não vou responder ao Olavo de Carvalho.

Ora, esclarecer aqueles três pontos era condição sine qua non para que o debate pudesse travar-se com alguma seriedade. Fugir deles era fazer da coisa uma palhaçada, um jogo de vaidades, um espetáculo de puro exibicionismo no qual dois patetas dariam o melhor de si para mostrar ao público “qual deles entende mais de Sto. Tomás de Aquino”.

Diante disso, só o que me resta é apelar ao precedente de Emílio de Menezes, que, segundo dizem, tapeado num concurso de versos promovido por uma tal “Loja das Fazendas Pretas”, puxou no balcão do malfadado estabelecimento o rolo de papel de embrulho e improvisou a quadrinha:

Se o concurso era de tretas,
Por que não me advertiu?
Vá vender fazendas pretas
É na puta que o pariu.

Se tudo o que o Sr. Nougué queria era mostrar que leu mais Sto. Tomás do que este pobre otário, eu não teria a menor objeção em conceder-lhe esse galardão a priori e sem discussões, não porque saiba se ele realmente leu mais ou leu menos, mas porque ele precisa disso desesperadamente e é coisa que, para mim, não custa nada e não faz a mais mínima diferença.

Embora tenha dedicado bons anos de minha vida ao estudo de alguns grandes autores do passado, não me considero um “especialista” em nenhum deles. Acho até engraçada essa peculiar invenção brasileira: o filósofo especialista em outro filósofo. Diversamente do que cabe ao mero estudioso, erudito, professor, pesquisador ou coisa que o valha, a obrigação do filósofo é desenvolver a sua própria filosofia, não a dos outros, por ilustres e grandes que sejam. Ele pode, como aliás todos fazem, utilizar-se de elementos que aprendeu deles, mas integrando-os na estrutura do seu próprio pensamento e dando-lhes por isso, necessariamente, um sentido um tanto diverso do que tinham nos textos originais. Não há nenhuma infidelidade nisso, é apenas a obra da inteligência que vai em frente, descobrindo novas dificuldades e soluções, sem poder ater-se servilmente à letra do que foi ensinado no passado. O próprio Sto. Tomás de Aquino desvia-se da letra do ensinamento de Aristóteles e às vezes é um mau explicador do seu mestre justamente nos momentos em que sua própria filosofia alcança dimensões que Aristóteles desconhecera. Pode-se duvidar da exatidão histórica do Nietzsche de Heidegger, e eu mesmo duvido; mas nem por isso o livro deixa de ser uma admirável exposição do pensamento de Heidegger.

Uma certa erudição histórica é necessária ao filósofo, mas não é a finalidade dos seus esforços nem o critério pelo qual sua obra deve ser julgada. Um filósofo não estuda “autores” e “textos”, estuda problemas, estuda a realidade, estuda a existência e seus enigmas, servindo-se – às vezes, mas não sempre – de autores e textos como elementos auxiliares de uma pesquisa onde eles não são nem o assunto nem o foco.

Daí não ter cabimento um filósofo ceder à tentação vaidosa e fútil de uma competição de cultura filosófica, especialmente quando desprovida de qualquer outra finalidade senão mostrar “quem sabe mais”.

Não digo isso só dos filósofos. Nenhum erudito sério jamais propôs uma brincadeira estúpida como essa. O simples fato de desejar esse espetáculo já desqualifica o Sr. Nougué para qualquer empreendimento intelectual responsável, para além do estrito domínio especializado em que ele demonstrou qualidades modestas, porém reais: o ensino de línguas e as traduções.

Ademais, mesmo a esperança vaga de que eu pudesse, em tal confronto, aprender algo sobre a filosofia de Sto. Tomás de Aquino é desmentida pela própria carreira do Sr. Nougué como investigador histórico de doutrinas filosóficas. Não há nenhum trabalho de erudição publicado sob o seu nome. Não se conhece sequer um só estudo seu, em livro ou revista acadêmica, sobre o próprio Sto. Tomás. Se ele pretende que eu o aceite como professor de tomismo, deveria pelo menos dar-me uma razão mais sólida para acreditar nisso do que a mera promessa de dar cabo de mim num debate. É um caso inédito nos anais da erudição universal: um pretenso investigador sem nenhum currículo de estudos publicados tenta exibir força, logo de cara, mediante um “debate” – e, pior ainda, um debate que, por falta de objeto, se esgota em si mesmo como puro espetáculo para o deleite de torcedores.

O que torna a proposta ainda mais desengonçada e vã é o fato mesmo de que o sujeito, ao se proclamar o bam-bam-bam do tomismo, seja incapaz de formular uma só disjuntiva que expresse antagonismos de interpretação a respeito, fornecendo, em vez disso, três nomes de temas gerais onde em dois não se vê antagonismo algum e no terceiro só o que se vê é um arremedo de antagonismo entre o que ele pensa e o que ele desejaria imaginar que eu penso, mas na verdade nunca pensei. Ao dar a esses três monstrengos o nome de quaestiones disputatae, ele só mostrou não saber o sentido deste termo, isto é, não ter compreendido nem sequer o gênero e o título de algumas das obras que ele se gaba de conhecer como ninguém.

No entanto, se ele faz tanta questão de ostentar a superioridade de seus conhecimentos tomísticos, não custa nada afagar um pouco o seu ego, tão necessitado de reforços. Está bem, Nougué, você é o dono do pedaço, o gostosão do tomismo. Está contente agora? Se você insiste, digo também que você é bonitinho. Nada como fazer uma criança feliz.

Ao conceder essa honraria ao Sr. Nougué, confesso que o faço um tanto irresponsavelmente, pois não conheço as suas obras, as quais inexistem, e devo julgá-lo só por alguns fragmentos ígneos e barulhentos emanados da sua – digamos – cabeça. Para ser sincero, suspeito mesmo que ele não compreendeu uma só linha de Sto. Tomás, porque, ao lê-lo como como a voz direta e pura da verdade final, dispensando-se de confrontar suas palavras com os fatos e até alegando a autoridade do magistério como desculpa para não falar dos fatos, ele vai diretamente contra o ensinamento do próprio Sto. Tomás, para o qual a única autoridade final, em tudo quanto não seja estrita matéria de fé, são os fatos.[2] Ora, a inteligência humana não tem nenhuma via para conferir a adequação entre um pensamento e um fato senão tentar pensar o fato de maneira diversa, dialeticamente, até que a confrontação das várias hipóteses culmine na vitória de uma delas, se não como certeza absoluta, ao menos como campeã de probabilidade. O próprio Sto. Tomás não só adotou esse método como fez dele a matriz literária para a composição das suas Sumas, não havendo, no meu modesto entender, outra maneira de compreender o que ele diz senão prosseguindo o seu trabalho de confrontação dialética à luz dos novos fatos descobertos depois da sua morte. Por exemplo, até hoje ninguém sabe ao certo se Tomás afirmava ou negava a Imaculada Concepção de Maria. Como reler os trechos que ele consagra ao assunto sem levar em conta que a Imaculada Concepção foi proclamada como dogma da Igreja em 1854, seis séculos após a morte do santo? Reexaminando os textos à luz desse dado, os estudiosos modernos concluíram que Tomás não era tão contrário a essa doutrina quanto de início parecera. A discussão continua, e não há nada de mau nisso, de vez que o próprio Tomás proclamara veritas filia temporis, “a verdade é filha do tempo”.

Em suma, Tomás não pede que aceitemos suas palavras, mas que as ponhamos em discussão até tirar, se possível, as últimas dúvidas. É obviamente impossível fazer isso se queremos aprisionar a conversa no puro domínio doutrinal, sem apelo aos fatos. A insistência do Sr. Nougué em pular fora dos fatos mostra que ele não quer compreender o ensinamento de Tomás. Quer apenas “repeti-lo”, como ele próprio diz – e, se lhe perguntamos como pode chegar a compreender um texto pela sua simples repetição, sem confrontação dialética, já conhecemos sua resposta: “Não vou responder ao Olavo de Carvalho”.

Diante de tão persistente, fiel e intransigente opção pela ignorância, não me resta senão concordar, sem discussões, com o que quer que ele diga, e sobretudo com o que ele pensa de si mesmo, fechado na sua casamata de ilusões inexpugnáveis. Digo, pois: Sim, Nougué, você é máximo expositor de Sto. Tomás em terras pátrias, o supremo, o nec plus ultra, o fodão do tomismo. Pelo menos na sua casa, não há ninguém que entenda do assunto mais que você.

Também não estou informadíssimo sobre os mistérios e segredos do pensamento de seu irmão em armas, o Sr. Sidney Silveira, mas, confesso, o pouco que conheço a respeito não é de natureza a estimular minha curiosidade quanto ao restante.

Por exemplo (v. www.youtube.com/watch?v=jKpFE1b8v98), ao contestar que possamos conhecer a essência de um objeto por intuição, ele proclama que nada sabemos ao certo “antes” que o intelecto intervenha e classifique o que foi apreendido pelos sentidos. Com isso ele dá um sentido de seqüência temporal ao que é, com toda a evidência, apenas a hierarquia lógica interna de um ato de cognição instantânea. É óbvio que os sentidos não nos dão, por si, a essência de nada. Apreender essências é tarefa do intelecto. Mas isso não quer dizer que, entre a captação pelos sentidos e a entrada do intelecto em cena decorra um intervalo de tempo, muito menos uma separação material, e não apenas formal, entre ver um gato e perceber que é um gato. O ato de reconhecimento instantâneo pelo qual o intelecto apreende um gato naquilo que os sentidos lhe apresentam como gato é precisamente o que se denomina “intuição”, ou, melhor ainda, “intelecção”.

Prova suplementar da sua fulgurante inépcia ele nos dava em seguida, ao fornecer, como exemplo da impossibilidade da apreensão intuitiva de essências, o fato de que se alguém, em segredo, depositasse veneno no seu copo, ele não teria a apreensão intuitiva do copo envenenado.

Raramente vi um professor de filosofia, mesmo de ginásio, descer tão baixo. De um lado, ninguém pode ter a intuição de algo que não chegou ao seu conhecimento nem pelos sentidos nem por qualquer outra via de informação. Se o Sr. Silveira não tem a intuição do que se passou, não é por deficiência da faculdade intuitiva, mas por ausência do objeto. Qualquer criança de cinco anos entende isso num relance, mas na platéia do Sr. Silveira não havia, aparentemente, ninguém com a experiência e a erudição de uma criança de cinco anos, e por isso ninguém o contestou. Todos continuaram ouvindo a patacoada em respeitoso silêncio. Un sot a toujours un plus sot qui l’admire.

Em segundo lugar, conter ou não conter veneno não faz parte da essência de nenhum copo. É um acidente. A intuição reconhece imediatamente um copo como copo, mas não distingue necessariamente a substância que o preenche, pelo simples fato de que diferentes líquidos não se distinguem tão claramente uns dos outros pela sua simples forma visível como objetos sólidos de espécies diversas, diferente nestes e semelhante naqueles. A objeção do Sr. Silveira à eficácia da faculdade intuitiva consiste apenas em alegar que ela não percebe no mesmo instante todos os acidentes – o que é o mesmo que não dizer absolutamente nada.

Em terceiro lugar, um veneno depositado num copo com fins homicidas é, por definição, uma substância sem aparência distintiva que permita identificá-lo como tal. O Sr. Silveira acredita que não tem intuição das essências… porque não enxerga o invisível. Com toda a evidência, o que lhe falta não é a apreensão intuitiva das essências, mas aquele mínimo de capacidade raciocinante que ele precisaria ter para ser um mecânico de automóveis ou um caixa de banco, motivo pelo qual ele preferiu escolher a profissão de porta-voz do magistério infalível.

E pensar que mediante essas tosquices ele queria demolir em minutos nada menos que a obra de Edmund Husserl! Bem, há o rato que ruge e o rato que peida. Qualquer semelhança é mera coincidência.

Por que desejaria eu conferir o estatuto de “adversário filosófico” meu a um sujeito tão obviamente despreparado e inerme? Se à burrice e ao despreparo ele soma ainda a língua dupla e o hábito das insinuações veladas, pretendendo subir na vida na base da difamação e da intriga, que outro confronto posso ter com ele senão de ordem jurídico-policial?

Talvez eu devesse lhe dar uns tapas, mas ele diz que não pode entrar em pugilato comigo por ser vinte anos mais novo. Nisso, ele tem toda a razão: nada mais sábio que fugir ao vexame de apanhar de um velho.

Quanto ao Sr. Nougué, não lhe recusei, em princípio, nenhum debate. Apenas mostrei que, nos termos propostos, o debate era impossível, inútil e supremamente idiota. O Sr. Nougué poderia ter mostrado alguma seriedade de intenções, melhorando a proposta e refazendo o convite. Em vez disso, preferiu, como é de seu hábito, a ostentação teatral de uma superioridade inexistente.

Richmond, 21 de julho de 2011

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Notas:

[1] Só para dar um exemplo, o título do meu debate com o prof. Alexandre Duguin, “Os EUA e a Nova Ordem Mundial” já deixa subentendida nitidamente a pergunta “Os EUA são o centro de poder da Nova Ordem Mundial?” e duas respostas possíveis: “Sim” (Alexandre Duguin) e “Não” (Olavo de Carvalho). É assim que se formula um debate.

[2] E notem que a noção de fé se resume, em última análise, na confiabilidade do testemunho, e o testemunho se refere a fatos. Dirá o fiel católico que o nascimento virginal e a ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo são doutrinas, não fatos? Dirá que o Juízo Final há de transcorrer como uma seqüência de silogismos, não de fatos?

Concurso Santo Palavrão: o prêmio é meu

Olavo de Carvalho

21 de julho de 2011

Prezado Sr. Sidney Silveira,

Com referência ao Concurso “Santo Palavrão” (http://contraimpugnantes.blogspot.com/2011/07/concurso-santo-palavrao.html), reivindico a entrega imediata do prêmio prometido.

S. Thomas More, na sua célebre “Responsio ad Lutherum”, que contesta as objeções do monge alemão a um tratado teológico de autoria do rei Henrique VIII, usa contra Lutero os mais chocantes palavrões disponíveis na época, e ainda os repete e floreia com variações que sublinham o seu propósito declaradamente ofensivo.

Mais significativa ainda é a razão com ele justifica o emprego da linguagem obscena, dizendo que o que havia de mais abominável no escrito de Lutero não era tanto o teor de seus erros teológicos quanto o fato de que, para sustentá-los, o monge de Wittenberg falsificava o sentido das palavras do Rei, exatamente como o senhor mesmo, Sidney Silveira, fez com um texto meu dias atrás. Responder com puras contestações eruditas a semelhante baixeza, dizia o santo, seria conceder-lhe uma honra imerecida, motivo pelo qual ele preferia se dirigir a Lutero nos seguintes termos:

“As long as your reverend paternity will be determined to tell these shameless lies, others will be permitted, on behalf of his English majesty, to throw back into your paternity’s shitty mouth, truly the shit-pool of all shit, all the muck and shit which your damnable rottenness has vomited up, and to empty out all the sewers and privies onto your crown divested of the dignity of the priestly crown, against which no less than against the kingly crown you have determined to play the buffoon.”

Tradução: “Enquanto continuardes decidido a dizer essas desavergonhadas mentiras, a outros será permitido que, em defesa de Sua Majestade Britânica, joguem de volta na vossa boca cheia de merda, verdadeiramente o depósito de toda merda, a sujeira e merda inteiras que vossa execrável podridão vomitou, e esvaziar todos os esgotos e privadas na vossa coroa despida da dignidade de coroa sacerdotal, em prejuízo da qual decidistes bancar o palhaço contra nada menos que a coroa real.”

More pergunta ainda: “Will we not have the posterior right to proclaim the beshitted toungue of this practitioner of posterioristics most fit to lick with his anterior the very posterior of a pissing she-mule until he shall have learned more correctly to infer posterior conclusions from prior premises?”.

“Não teremos nós o direito posterior de proclamar que a língua cheia de merda desse praticante da posteriorística é mais apta a lamber com sua parte anterior o posterior de uma mula mijante, até que tenha aprendido a inferir mais corretamente conclusões posteriores de premissas anteriores?”

Os trechos citados encontram-se na Responsio ad Lutherum, em The Complete Works of St. Thomas More, ed. John M. Headley, vol. V, New Haven: Yale University Press, 1969, pp. 181 ss.

É verdade, sr. Silveira, que não sou o Rei da Inglaterra nem autor de um tratado teológico, mas isso não lhe dá o direito de falsificar minhas palavras nem de fazer-se de santa alma escandalizada só porque me dirigi ao senhor em termos que não chegam a ter metade da virulência da linguagem usada por S. Thomas More, mártir da Igreja beatificado pelo Papa Leão XIII em 1886 e canonizado por Pio XI em 1935.

Atenciosamente,

Olavo de Carvalho

P.S. – O prêmio é meu, mas não quero nenhum livro da sua editora. Venda um exemplar de cada um e dê o dinheiro ao primeiro pobre que encontrar na rua, dizendo que é penitência por ter difamado um inocente.

Resposta a Carlos Nougué

Olavo de Carvalho

17 de julho de 2011

“Se, porém, eles pelas obras profanam a fé e não se escondem,
cobertos de vergonha, debaixo da terra, por que se irritam contra nós,
que condenamos com palavras o que eles manifestam com ações?”

(São João Crisóstomo)

1. Abomináveis palavrões (1) 1

2. Abomináveis palavrões (2) 5

3. Adversário filosófico? 5

4. Impropérios 5

5. Proposta de debate (1) 6

6. Proposta de debate (2) 7

7. Proposta de debate (3) 8

8. Repetidor do Magistério (1) 10

9. Repetidor do Magistério (2) 10

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1. Abomináveis palavrões (1)

Antes de tudo, não posso deixar de dizer-lhe publicamente que a maneira como você tratou a Sidney Silveira, ofendendo-o com os mais abomináveis palavrões, não se faz com um pai de família nem é digna de um homem que se diz filósofo.

A referência ao estatuto de “pai de família” do Sr. Silveira é descabida e só entra aí como apelo emocional kitsch: o homem não foi criticado enquanto pai de seus filhos ou esposo da sua digníssima. Ademais, sou eu mesmo pai e avô de família até mais numerosa que a dele, o que não o inibiu de espalhar contra mim, não uma, mas sucessivas insinuações pérfidas e difamatórias, indignas, já não digo de um filósofo – coisa que ele nunca foi –, mas de qualquer cidadão comum honrado e cumpridor das leis, mesmo solteiro e sem família.

Desde muito antes deste episódio o Sr. Silveira já vinha fazendo intrigas a meu respeito, procurando por todos os meios indispor contra mim o público católico. Um de meus alunos publicou no Orkut uma breve antologia dessas insinuações perversas, mal camufladas sob a aparência caricatural de elevadíssimas discussões doutrinais. Não preciso, portanto, repeti-las aqui.

A persistência obstinada dessas investidas mostrava que não eram efusões ocasionais e espontâneas, mas lances de uma campanha sistemática, deliberada, firmemente disposta a não cessar enquanto não conseguisse tornar minha imagem odiosa e suspeita aos fiéis e à hierarquia da Igreja. No curso dessa guerrinha malévola e sem razão, fui acusado, entre outras coisas, de heresia e de satanismo, e por fim atirado ao inferno sem remissão como autor de pecado contra o Espírito Santo – aquele que não será perdoado nem nesta vida nem na próxima.

Tudo meticulosamente calculado para que um fiel católico, ao ler essas coisas sem me conhecer muito bem, sentisse a urgente conveniência de manter distância de mim e confiar-se, em vez disso, ao magistério de Sidney Silveira e Carlos Nougué.

Todas essas provocações agüentei quieto. Cheguei, no máximo, a mencionar uma delas, de passagem, num artigo em que respondia a vários mexeriqueiros da mesma espécie:

“Outro, ainda, sem medir o grotesco do que fazia, macaqueava a estrutura dialética das quaestiones disputatae medievais para discutir, com ares de Sto. Tomás na sua cátedra de Paris, esta questão transcendente: ‘É lícito ao filósofo usar palavras de baixo calão?’ – concluindo, evidentemente, pela negativa, e deixando inculcada nos seus devotos discípulos imaginários a impressão enganosa de que o filósofo referido usara aquelas palavras em demonstrações filosóficas, como substitutivos da argumentação racional, e não apenas num programa informal de rádio destinado a responder e-mailse comentar, por alto, as notícias da semana…”[1]

Como qualquer leitor inteligente percebe à primeira vista, é apenas uma anotação vagamente irônica, não um protesto. Muito menos um revide.

Isso foi o máximo que o sr. Silveira ouviu de mim ao longo de toda a série de insinuações ora mais, ora menos veladas que foi despejando sobre a minha pessoa ao longo de muitos meses.

Ele não pode alegar que sou impulsivo ao reagir, nem pronto a desferir socos e pontapés à mais leve provocação.

Só perdi a paciência quando ele, encorajado pelo meu longo silêncio, partiu das meras indiretas à falsificação ostensiva de um texto meu, para dar ares de coisa anticatólica a algo que eu escrevera contra inimigos da Igreja.[2]

Aí seus propósitos de intrigante malicioso já não podiam mais ser ocultados, ao menos aos olhos de quem houvesse compreendido as suas anteriores performances. Aos demais, no entanto, aquele artigo difamatório, meticulosamente fabricado para jogar contra mim a opinião católica inteira de uma só vez, podia parecer à primeira vista não conter nada mais que a elegante e polidíssima correção de um erro doutrinário.

Quando um intrigante astuto faz uso da língua dupla, cavando um abismo de distância enganosa entre o conteúdo peçonhento e o tom de urbanidade respeitosa (quando não de piedade devota), ele coloca sua vítima na difícil contingência de não poder responder ao conteúdo sem romper com o tom, expondo-se assim à pecha de impolido e truculento, nem conservar o tom sem amortecer a virulência do conteúdo, tornando-se assim cúmplice de seu acusador.

A dose de malícia e perversidade necessária para que alguém se dedique a montar esse gênero de armadilha é tamanha, que dispensa explicações. Tudo o que há para dizer a respeito a Bíblia já resumiu em duas palavras:Bilingüis maledictus – “maldito o homem de duas línguas”.

Quem leia a série inteira dos artigos consagrados por ele à demolição da minha imagem notará que essa tensão entre o conteúdo e o tom não é exclusiva de um deles, mas a regra geral e constante do “estilo” – chamemo-lo assim – do Sr. Silveira. Ele não age assim por deliberação malévola, consciente de montar uma arapuca para colocar sua vítima em posição comprometedora. Ele age assim com naturalidade, com inocência até, sem a menor consciência de que pratica o mal. Ele age assim porque ele é assim, porque tal é a sua maneira de ser, a sua personalidade – a personalidade de um santarrão que, ao deleitar-se na falsificação e na calúnia, acredita piamente praticar as mais elevadas virtudes cristãs.

Há uma diferença enorme, na escala de gravidade, entre quem comete um crime isolado, mediante premeditação explícita, e o criminoso habitual que os comete às pencas, sem premeditação nenhuma, com a espontaneidade de quem respira. No primeiro caso, o delito pode ser uma exceção no curso de uma vida que, fora isso, permanece honrada e limpa. No segundo, o sujeito é uma alma estruturalmente deformada, para a qual o estado de crime se tornou uma segunda natureza. O primeiro, por saber que delinqüiu, pode sentir vergonha e ter medo da danação. O segundo, com a consciência mais tranqüila do mundo, pode tornar-se até professor de moral e porta-voz do Magistério sagrado.

É este precisamente o caso do Sr. Sidney Silveira. O tom de pureza santa com que ele fala contrasta de tal maneira com a sujeira de seus atos, que a hipótese da premeditação pontual tem de ser excluída in limine, cedendo lugar à de uma alma dividida em partes estanques, que não se enxerga, que não compreende o que faz, que não tem a mínima condição de julgar seus motivos nem de orientar seus atos.

Que uma personalidade assim tosca e mal formada seja a de um professor de moral e religião, eis aí um sintoma, dentre tantos outros, do estado de alienação, de inconsciência geral que se apossou da sociedade brasileira desde há alguns anos.

Seus ataques imotivados à minha pessoa tornavam-se ainda mais graves por não ser iniciativas isoladas, mas virem em convergência com outras iniciativas do mesmo teor, provenientes de diversos grupos empenhados em revestir-se da aura de defensores da fé para mais facilmente poderem delinqüir em nome da Igreja. Sobre algumas dessas escrevi em 20 de novembro de 2009:

“Não vejo por que me defender de acusações tão francamente imbecis e mal intencionadas. Quem quiser acreditar nelas só fará dano a si mesmo. O único ponto que interessa ressaltar – por ser um fenômeno sociológico de certa importância – é que cada um daqueles que as emitem jura não ter-me ofendido jamais e, ao menor revide da minha parte, sai chorando que foi difamado, atacado, vilipendiado etc. etc. Isso é uma regra geral absolutamente infalível em todos os casos.”[3]

O Sr. Sidney Silveira, como você pode ver, não constitui exceção. A única diferença é que ele não se contenta em verter suas próprias lágrimas de autopiedade, mas ainda toma emprestadas as de seu acólito Carlos Nougué.
2. Abomináveis palavrões (2)

Quanto a essa sua afetação de escândalo sacrossanto ante palavrões de uso comum que eu mesmo já ouvi da sua própria boca (você deve se lembrar da sua versão aliás genial do título do livro do ator Sérgio Brito, “No Palco dos Outros”, como “Pau no Cu dos Outros”), já estava respondida de antemão num post do Adversus Haereses, escrito por alguém que não conheço e que é totalmente alheio à presente altercação. Leia e tente aprender alguma coisa: http://advhaereses.blogspot.com/2010/09/xingando-com-os-santos.html.
3. Adversário filosófico?

Alguém seria capaz de imaginar, já não se diga um Santo Agostinho ou um Santo Tomás de Aquino, e nem sequer um Sócrates, um Platão, um Aristóteles, mas um Kant ou um Husserl ofendendo a mãe e a honra de um adversário filosófico seu?

“Adversário filosófico”? Cadê? Não estou vendo nenhum. Só vejo um criminoso, um bandidinho, praticante obstinado da difamação e da calúnia, que deveria ser respondido mediante um processo judicial e considerar-se um afortunado por ter recebido, em vez disso, apenas uns palavrões mais que merecidos.

Foi a esse tipo de gente que S. José Maria Escrivá de Balagüer se referiu ao dizer que, contra ela, não restava outra saída senão recorrer ao que ele chamava “o apostolado dos palavrões”, oferecendo-se, ademais, para ensinar alguns a quem não os conhecesse em número e potencial ofensivo suficientes. Convém lembrar, aliás, que os palavrões espanhóis são bem mais ferinos, mais agressivos que os brasileiros, sempre atenuados pela sua conotação humorística.

Mas S. José Maria, com toda a evidência, é apenas um “santo boca suja”, indigno de figurar nas páginas de Contra Impugnantes.
4. Impropérios

Um milhão de impropérios, Olavo, não fazem um silogismo…

E um milhão de insinuações maliciosas não têm o valor e a dignidade de um palavrão bem aplicado.
5. Proposta de debate (1)

Como porém em meio a tais palavrões devemos reconhecer, como quer que seja, um fundo doutrinal seu com respeito ao escrito de Sidney Silveira, venho por meio desta carta aberta fazer-lhe um convite:
Você aceitaria participar comigo de três quaestiones disputatae transmitidas por videoconferência e com direito universal de acesso? Explico-me.
1) A primeira quaestio disputata giraria em torno do seguinte tema: “As relações entre razão e fé e entre filosofia e teologia em Santo Tomás de Aquino”.

Você está realmente decidido a posar de meu “adversário filosófico”. À noite, ou até de dia, com os olhos abertos, deve sonhar que é Sto. Tomás de Aquino pisoteando a cabeça de Averróes.

O debate que você propõe não faz o menor sentido.

Com relação ao primeiro ponto, já expus minha opinião dezenas de vezes. Vou resumi-la aqui:

1. A teologia católica foi, historicamente, a primeira ciência que, fora do domínio estritamente formal, se organizou como um edifício lógico-dedutivo integral, fornecendo assim o modelo para todas as demais ciências, que em vão se esforçam até hoje para copiá-lo. É verdade que para isso ela contou com o aporte do precedente aristotélico, mas Aristóteles, pelo próprio caráter fragmentário dos seus escritos, antes sugeriu essa possibilidade do que a realizou materialmente, cabendo este mérito, sem sombra de dúvida, à teologia católica.

2. Portanto, essa teologia não pode ser vista como uma tentativa de “conciliar” a fé com uma razão científica que até então não existia e que ela própria estava criando no ato mesmo de constituir-se. Entender a obra dos autores das Sumas medievais como esforços no sentido dessa conciliação é projetar sobre ela, retroativamente, uma visão extemporânea.

3. Uma vez compreendida a identidade de suas estruturas lógico-formais, a única diferença substantiva que pode restar entre a teologia e as demais ciências, sob o ponto de vista da sua respectiva cientificidade, é que a teologia aceita entre suas premissas os dados da fé, enquanto as demais ciências aceitam somente os dados dos sentidos confirmados experimentalmente. Mas essa diferença é antes um estereótipo midiático do que um fato da realidade. De um lado, a função dos dados da fé no edifício teológico resume-se à da confiabilidade do testemunho – o testemunho dos evangelistas, dos Apóstolos e do próprio Nosso Senhor Jesus Cristo. De outro, não existe nenhuma “demonstração experimental” que também não se baseie, em última análise, em testemunhos convencionalmente admitidos como confiáveis – o testemunho das máquinas e equipamentos, do técnico que os manipula e de toda uma complexa cadeia de transmissão que inclui até mesmo a variável da subjetividade pessoal. Passou o tempo em que se imaginava o “fato científico” como a própria voz da realidade. Hoje sabe-se, e a nenhum teórico da ciência com um mínimo de idoneidade ocorreria negá-lo, que a “experiência científica” é apenas um elemento ou aspecto da formação do testemunho, e não há nenhuma, absolutamente nenhuma razão para supor que o testemunho de profissionais envolvidos numa constante disputa de posições, verbas e prestígios seja, a priori, mais confiável que o dos autores e personagens dos quatro Evangelhos. Nesse sentido, a diferença de credibilidade entre a teologia e as demais ciências se reduz a zero.

4. Assim sendo, o confronto de “fé” e “razão” é menos um debate proveitoso do que um equívoco retroativo nascido da concepção kantiana, inteiramente gratuita aliás, da fé como ato arbitrário da vontade.

Se você tem alguma objeção séria ao que acabo de dizer, escreva-a e verificarei se há nela substância que baste para alimentar um debate. Se não tem, vamos debater o quê, hein?
6. Proposta de debate (2)

2) A segunda quaestio disputata giraria em torno do seguinte tema: “Segundo a doutrina de Santo Tomás de Aquino, deve um teólogo-filósofo católico invocar o magistério da Igreja?”.

Este ponto não é de maneira alguma uma quaestio disputata. Ninguém discute se o filósofo católico deve ou não invocar o Magistério. É claro que deve. E desde os tempos de Sto. Tomás já está estabelecido que, caso esteja argumentando apenas como filósofo e não como teólogo, não deve invocá-lo como prova e sim apenas como elemento auxiliar de esclarecimento, mas nada impede e tudo ordena que deva fazê-lo ao falar como pregador, apologista e exegeta.Não vejo onde poderia se introduzir, aí, uma divergência capaz de dar margem a um debate.

Ao propor esse debate, só o que você faz é ocultar, sob o manto de uma divergência doutrinal tão nobre quanto inexistente, o verdadeiro ponto em questão. O que estou contestando não é que o filósofo ou quem quer que seja deva ou possa “invocar o Magistério”. O que contesto é que invocar o Magistério seja tão bom quanto usá-lo como pretexto para a prática de um crime.

Desviar o debate para uma questão geral de princípio é um expediente muito safado para camuflar o mau uso do princípio. Essa é aliás outra característica do modus pensandi não só do Sr. Silveira, mas do seu. Atendo-se às discussões gerais e de princípio, esquivam-se do exame das finalidades concretas com que o fazem.

Mutatis mutandis, é como se um delinqüente, perguntando se deve usar um crucifixo, visse na resposta positiva uma autorização para usá-lo como gazua para arrombar portas.
7. Proposta de debate (3)

3) E a terceira quaestio disputata giraria em torno do seguinte tema: “É possível conciliar a doutrina ético-política de Santo Tomás com o liberalismo e a democracia liberal?”.

Neste ponto seria talvez possível um debate, mas não com quem começa por confundir os termos da questão. Você se refere à democracia liberal como modelo abstrato, tal como concebido por John Locke e similares, ou às democracias liberais reais, historicamente existentes, nascidas não da imitação servil de um modelo e sim de circunstâncias histórico-sociais complexas, praticamente incontroláveis? No primeiro caso, não há o que debater: a resposta é obviamente “Não”, com a ressalva de que esse modelo, por definição, inclui espaço para a luta pelas concepções tomistas e portanto para a modificação possível da democracia liberal num sentido adequado à doutrina de Sto. Tomás. No segundo caso, a pergunta é imbecil, porque não se pergunta se uma coisa é compatível com as condições da sua subsistência. Desde o advento dos modernos regimes totalitários, a Igreja buscou abrigo sob as asas das democracias liberais e só graças à proteção destas últimas pôde subsistir e prosperar ao longo de todo o século XX.[4] E quando digo “a Igreja”, incluo aí a totalidade dos estudiosos do tomismo. Não consigo imaginar Garrigou-Lagrange ou Joseph Maréchal lecionando em Moscou sob Stalin ou em Havana sob Fidel Castro. Desse estado de coisas, puro dado empírico surgido de circunstâncias históricas, nasceu ex post facto, e quase espontaneamente, a tentação de “conciliar” tomismo e democracia liberal no plano doutrinário mediante remendos maritainianos. Embora reconheça nesses arranjos alguma utilidade política, ao menos no sentido de poupar à Igreja a acusação de ingrata e autocontraditória (por viver da compatibilidade prática com aquilo que ela mesma havia declarado incompatível na doutrina), eu seria o último a desejar defendê-los em teoria, que é precisamente o que você pretende que eu faça nesse seu “debate”.

Como as três questões sugeridas são extemporâneas e despropositadas, é evidente que o seu convite não tem outra finalidade senão dar ares de alta divergência teológica àquilo que não passa, em substância, do confronto moral, se não judicial, entre vítima e difamador.

Note, por favor, que nas observações com que respondi ao Sr. Silveira não levantei nenhuma objeção de ordem teológica ou filosófica; apenas denunciei a falsificação patente que ele fizera de um texto meu. É uma questão de fato, não de doutrina. Como é fato vergonhoso, torna-se bem compreensível que o Sr. Silveira e seu paladino estejam ansiosos para fugir de tão desagradável assunto para as alturas do debate doutrinal, exatamente como um ladrão que, pego em flagrante, tentasse camuflar o vexame provocando uma discussão erudita de Direito Penal.

Um debate não serve de nada se não parte de divergências sinceras, pertinentes e arraigadas na situação real. Fora disso, é puro teatro.

Quer ver como se monta um espetáculo nesse teatro? É simples. Pegue um sujeito que mencionou por alto algumas vantagens parciais e transitórias da democracia liberal, vista nele a camiseta de doutrinário do liberalismo (até mesmo sem distinguir entre o liberalismo como fórmula política e o liberalismo teológico já condenado como heresia), e convide o sujeito para um debate onde ele apareça como defensor de idéias que não tem. Aí você surgirá, no momento culminante, como porta-voz do Magistério e destruidor de heresias. Aplausos gerais. Pano.
8. Repetidor do Magistério (1)

Antes porém de terminar esta carta, quero frisar dois pontos:
a) Não sou teólogo nem filósofo, mas mero e pequeno repetidor do magistério infalível da Igreja e de Santo Tomás de Aquino e seus auxiliares.

E quem jamais pensou que você fosse filósofo, teólogo ou coisa assim? A espécie humana, que eu saiba, está informadíssima de que você é um professor de português e blogueiro, se tanto. O aviso, portanto, tomado na sua intenção aparente, é desnecessário e inútil.

Lido, porém, com mais atenção, revela uma utilidade mais profunda, insensível à primeira vista.

Se você fosse apenas um filósofo ou mesmo um teólogo, suas palavras expressariam meras opiniões pessoais, mais escoradas ou menos escoradas em fundamentos racionais e na doutrina da fé, mas nunca portadoras de qualquer autoridade superior à razão humana.

Como “mero repetidor do Magistério infalível”, você se torna automaticamente o representante, a personificação mesma da infalibilidade. Discordar da sua pessoa, nessas circunstâncias, só pode ser heresia, satanismo ou mesmo pecado contra o Espírito Santo.

Como a proposta de um debate afirma desde logo a existência de uma discordância, eu já entraria nele ostentando na testa esses rótulos ou outros piores ainda, se os há.

Você há de compreender que eu sinta uma certa inibição de discutir com Deus.

A afetação de humildade com que o seu aviso se apresenta é apenas a camuflagem de uma presunção demencial.
9. Repetidor do Magistério (2)

Mas que faz, exatamente, um “repetidor do Magistério”? Repete, literalmente ou por paráfrases, o que já foi dito. Qualquer um pode fazer isso. Um computador faz isso muito bem, principalmente se tem uma conexão com a internet e uma impressora.

Jesus, salvo engano, não ordenou que “repetissem” os seus Mandamentos, mas que os cumprissem. Não é algo que se possa fazer na esfera abstrata das afirmações gerais. Cumprir os mandamentos é imitar Jesus no campo das ações reais, das situações concretas e particulares. Não se pode compreender nenhuma situação concreta por mera dedução das regras gerais. Ao contrário, para saber qual regra aplicar, e como, você precisa já ter compreendido a situação concreta antes disso.

Não há limites para a quantidade de conhecimentos que podem ser necessários para a compreensão de qualquer situação concreta. Você pode extraí-los do senso comum, da experiência pessoal, da cultura literária e histórica, da psicologia, do Direito, da filosofia ou da teologia.

Não é como puro “repetidor do magistério” que você pode compreender qualquer situação concreta. É como homem – no sentido de uma alma formada pela totalidade das influências culturais absorvidas e organizadas numa síntese pessoal. Ora, pensar como homem, mas fazê-lo com pleno senso de responsabilidade, é precisamente o que se denomina “filosofar”.

Como não é possível filosofar sem incerteza, sem um senso atemorizante da falibilidade humana, é compreensível que algumas mentes covardes se recusem a fazê-lo e prefiram refugiar-se na segurança absoluta de “repetidoras do Magistério infalível”.

Na medida, porém, em que o Magistério se compõe de afirmações gerais que não podem substituir a compreensão das situações concretas, mas antes a requerem como condição prévia da sua aplicabilidade, o resultado é que o puro “repetidor do Magistério” se exime da responsabilidade de examinar a situação concreta antes de emitir sobre ela julgamentos que permanecerão tão infalíveis quanto deslocados e impróprios.

Dito de outro modo: o “repetidor do Magistério” dá aos fatos uma interpretação qualquer, impulsiva e irrefetida, e em seguida sai desferindo condenações e anátemas com a infalibilidade da doutrina eterna.

Em suma: o “repetidor do Magistério” está livre para fugir da realidade e buscar abrigo num reino etéreo de idéias gerais. Para mentir e dar à mentira o prestígio e a autoridade do ensinamento magisterial.

É exatamente isso o que você faz nesta sua “resposta”, ao dar a aparência de ataque despropositado e gratuito ao que foi, na realidade, a reação tardia, moderada e justa a uma longa e persistente campanha de intrigas e difamações.

Uma vez tomada como verdadeira a priori e sem o mais mínimo exame essa versão dos fatos, você está livre para tecer em torno dela as mais lindas considerações doutrinais, sempre no tom modestíssimo, humilíssimo, da infalibilidade divina.

É o mesmo procedimento usado pelo Sr. Sidney Silveira na sua ridícula “Resposta em tom de sermo vulgaris”, onde, fazendo de conta que ignora tudo o que andou dizendo e escrevendo contra mim desde muitos meses sem jamais ser respondido ou repreendido por isso, se apresenta como vítima inocente de um ataque verbal repentino, imotivado e sumamente pecaminoso.

Você vai até um pouco além: aproveita a ocasião para promover-se ao estatuto de adversário intelectual do Olavo de Carvalho – sonho dourado de tantos tagarelas idiotas neste país! –, desafiando-o para um debate que, como é bem do seu estilo, foge ao contato com a situação real e sai voando para a esfera sublime das puras questões doutrinais.

Não, Nougué, não quero participar do seu teatrinho, não quero ajudar você a posar de Sto. Tomás pisoteando Averróes, pela simples razão de que Tomás nunca mentiu contra Averróes nem o difamou.

Se você quer um debate, o tema deveria ser: “É justo, na doutrina tomista, o defensor da fé mentir, e mentir mentir nem mesmo contra um inimigo da Igreja e sim contra alguém cujo maior pecado foi defender a fé com mais eficiência do que ele, pregando, ensinando e convertendo, ainda que nem sempre o fizesse (concedo ad argumentandum) pelos meios convencionais e admitidos do magistério eclesial?”

b) Como sei de seu hábito de vituperar com impropérios, digo desde já: não responderei a eles, de modo algum. Se há algo que aborreço, são os bate-bocas, que geralmente não servem senão para inflar a soberba e provocar a má ira do homem. Ademais, dizia Santo Agostinho que, para pecadores como nós, todo sofrimento é justo. Pois bem, acrescento: se não posso deixar de defender, como fiz aqui, a honra de um pai de família e amigo como Sidney Silveira, saiba que, quanto à minha pessoa, toda e qualquer ofensa de sua parte a considerarei justa. Afinal, não devemos todos oferecer nossas miúdas humilhações Àquele que sofreu por nós as mais graves injúrias?

Oooooh, não exagere, não seja tão rigoroso consigo mesmo! Assim as pessoas vão até pensar que você é santo. Ponha um pouco de brandura nisso, ame a si próprio o suficiente para poder amar seus semelhantes ao menos um pouquinho.

Exageros teatrais à parte, o fato é que você não merece todos os xingamentos. Nunca o chamei, por exemplo, de veado, pois isso o colocaria numa situação deprimente e injusta: se você fosse veado, feio como é, teria de viver num estado de privação erótica deplorável, sendo os homossexuais, segundo dizem, hipersensíveis ao fator estético, do qual as mulheres, para sua sorte, às vezes prescindem na escolha de seus parceiros. Não, Nougué, você não é veado. Como no título que você inventou para o livro do Sérgio Brito, você só traz dano ao traseiro dos outros, não ao seu próprio, e aliás não o faz por meios genitais e sim bloguísticos.

Também não o chamei de filho da puta, pois, se sua mãe exercesse esse ofício, você apelaria à desculpa de ter sido criado num bordel e não ser, portanto, culpado de ter uma consciência moral deformada. Definitivamente, você não é um filho da puta. É o safadíssimo filho de uma senhora respeitável e gentil, da qual bem me lembro, que Deus a tenha.

Não precisa mesmo responder. Não há resposta para o óbvio.

Richmond, 17 de julho de 2011

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Notas:

[1] V. http://www.olavodecarvalho.org/textos/091120tanquerey.html. O trecho referia-se aos artigos “Filósofo boca-suja?” (http://contraimpugnantes.blogspot.com/2009/09/filosofo-boca-suja.html) e “Ainda o filósofo boca-suja” (http://contraimpugnantes.blogspot.com/2009/09/ainda-sobre-o-filosofo-boca-suja.html). Note-se que, ao retornar ao assunto neste segundo texto, o autor nem em sonhos tentava retificar a falsa impressão de que o filósofo acusado usara de palavrões contra “adversários filosóficos” e não contra políticos ladrões, líderes genocidas, seqüestradores, traficantes de drogas e tipos similares, que são os alvos costumeiros das minhas investidas radiofônicas. Fazendo-se novamente de humilde servidor da Igreja, reincidia na difamação com os ares mais inocentes do mundo. Também aí nada respondi, esperando que o episódio não voltasse a repetir-se, poupando-me assim o enfrentamento público com alguém que, malgrado tudo, era um católico. 

[2] Diga ele o que disser, não há desculpa para quem, ao ler uma crítica a algo chamado “neotomismo”, tente dar a impressão de que a crítica se refere a autores que viveram dois, três ou sete séculos antes da eclosão desse movimento. Foi mediante esse truque sórdido, impossível de ser praticado por erro inocente, que o Sr. Silveira, para me tornar abominável aos olhos da Igreja, tentou fazer de mim um inimigo de todos filósofos tomistas. Se isso não é difamação, a palavra “difamação” mudou de sentido. 

[3] Id.

[4] Os casos da Espanha e de Portugal sob Salazar e Franco merecem um estudo em separado, mas aí a pergunta teria de ser: “É possível conciliar as doutrinas de Sto. Tomás com o fascismo?”

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