Olavo de Carvalho
8 de março de 2004
“Sobreviver é escolher, escolher é renunciar.”
“Para compreender uma civilização- dizia Titus Burckhardt – é preciso amá-la, e isto só é possível graças aos valores permanentes, de validade universal, que ela implique.” Walter F. Otto observou coisa similar. Na mesma linha raciocinava Benedetto Croce, ao afirmar que o passado só é compreensível graças à estrutura microcósmica da alma do historiador, que contém em germe princípios e valores realizados pelas civilizações que estuda.
Que acontece, então, quando o estudioso não se debruça sobre outras civilizações, mas sobre a sua própria? Neste caso, ele deve conscientizar o universal “sentido da vida” (na acepção de Viktor Frankl), que se realiza em sua própria pessoa enquanto produto expressivo do meio civilizacional e, ao mesmo tempo, discerne nesse meio os circuitos e os processos que trouxeram o produto à existência. Nessa situação, portanto, a associação de autoconsciência e compreensão histórico-cultural é ainda mais estreita, já que o observador é a um só tempo amostra viva dos valores considerados e testemunha da sua encarnação histórica no cenário maior da civilização a que pertence. De maneira simetricamente complementar, os valores universais apreendidos de outras épocas e civilizações por meio do estudo devem se tornar para ele pontos de comparação com aqueles adquiridos na experiência da vida, e para isto é preciso que os primeiros estejam bem arraigados nele a ponto de constituírem elementos da sua constelação espiritual pessoal.
Um exemplo bem claro dessa complementação dialética e o livro de Hermann von Keyserling, Análise espectral da Europa, no qual o filósofo, traçando o perfil anímico dos vários povos europeus, reencontra neles, com formas e proporções diversas, ora equivalentes, ora contrastantes, os mesmos elementos componentes de valor universal que a experiência vivida cultivou em sua alma de alemão, ao mesmo tempo que elucida a experiência vital alheia.
Se a sinceridade da confissão individual e a confiabilidade objetiva da ciência mostram aí sua raiz comum, é porque, no fundo, a segunda se reduz à primeira, a veracidade do testemunho pessoal do ato de conhecimento sendo, na prática e até metafisicamente, a condição primeira da possibilidade mesma de todo o conhecimento objetivo. Jung estava muito errado ao dizer que “o problema” da psicologia é a coincidência, nela, do conhecedor e do objeto de conhecimento. Isso não é um problema, é uma solução. Se não houvesse essa coincidência, nenhum conhecimento válido seria possível: o mundo externo seria uma coleção anárquica de formas sem sentido, e o interno um abismo eternamente mudo de estados subjetivos inapreensíveis.
Não há por isso, talvez, experiência cognitiva mais frutífera, nem mais exigente, que a do estudioso que se interroga sobre sua própria cultura e civilização, não na condição ingênua da pura testemunha memorialista que pode narrar ou descrever sem se preocupar com o sentido último daquilo que diz ou escreve, tampouco desde o ponto de vista convencional e estereotipado das “ciências” nominalmente existentes – isto é, não como sociólogo, antropólogo ou cientista político que pode operar desde categorias consensualmente admitidas por seu círculo profissional sem assumir a responsabilidade pessoal pela justificação delas – mas sim na condição radical de filósofo, ou seja, do homem que responde, ao mesmo tempo, pela confiabilidade pessoal do testemunho, pela validade universal do sentido aí apreendido e, last but not least, pela confiabilidade científica – entre aspas ou não – do nexo entre uma coisa e a outra.
É essa experiência que o poeta e filósofo alagoano Ângelo Monteiro nos oferece em todos os ensaios deste livro, em especial nas páginas memoráveis do “Tratado da Lavação da Burra”, talvez a mais dramática tentativa que alguém já fez para oferecer à pergunta “Que é ser brasileiro?” uma resposta ontologicamente significativa. O termo “ontologicamente” deve ser explicado.
Se o “ser brasileiro” fosse elucidado como forma cultural, social, psíquica ou histórica em comparação com outras formas conhecidas, estas teriam de ser dadas por pressupostas e não poderiam ser problematizadas durante a investigação. Neste caso, a resposta obtida seria apenas a aplicação, a um caso particular, de categorias consensualmente admitidas no uso acadêmico – categorias desenvolvidas, é claro, no estudo de outros povos, culturas e civilizações. Acontece que, como vimos, esse estudo só adquire sentido se o estudioso é capaz de lançar sobre o objeto uma luz proveniente da sua própria alma. E, no caso, é essa mesma alma que está em questão, já que o estudioso é, ele próprio, a amostra e o testemunho do “ser brasileiro” que se pretende elucidar; ao mesmo tempo, as categorias usadas para a compreensão desse objeto não podem ser recebidas prontas de nenhuma “disciplina” convencionalmente admitida, mas devem ser desenvolvidas e justificadas no curso da própria investigação, mediante incursão no problema mesmo da estrutura geral do existir humano. Por isso o “Tratado da Lavação da Burra”, por trás de sua aparência apenas literária e satírica, é uma investigação genuinamente filosófica, que coloca seu autor num patamar bem mais elevado que o dos “estudos brasileiros” usuais.
Um segundo ponto a considerar é que precisamente a pergunta colocada não encontra resposta positiva. O “ser brasileiro” não expressa nenhum valor universal reconhecível, exceto o da sua indefinição mesma, a qual, é verdade, pode ser admitida ad hoc como um símbolo universal do homem radicalmente desaculturado, perdido na indefinição geral das formas. Isso quer dizer que, em última análise, o brasileiro enquanto tal, embora participe materialmente do acontecer universal, está excluído da autobiografia espiritual da espécie humana.
Se perguntarmos a qualquer cidadão, nas ruas, o que é ser brasileiro, ele apelará aos estereótipos mais imediatos da mídia e da moda, sem a mínima ligação com o passado histórico local ou universal, que, radicalmente, não lhe interessa; assim fazendo, afirmará implicitamente que ser brasileiro não é nada, é ser qualquer coisa escolhida a esmo num leque de ofertas desesperadoramente passageiras, contingentes, e, pensando bem, sem sentido algum exceto o utilitário e o lúdico do momento. Quaisquer outros motivos são dados por inexistentes ou atribuídos a idiossincrasias pessoais incompreensíveis.
Utilitário e lúdico, a necessidade e o prazer são os dois fundamentos únicos da conduta no Brasil. Tudo o que se faça é por necessidade imposta ou por diversão. A analogia com os átomos de Epicuro é inescapável. O filósofo brasileiro que se interroga sobre o sentido da sua condição nacional de existência é um átomo de Epicuro que não encontra outra resposta em torno exceto a necessidade e o prazer. Mas a necessidade e o prazer não são valores, não são um “sentido da vida”. São fatos consumados. A investigação tenta se elevar ao sentido da vida e é jogada de volta ao seu ponto de partida, a imediatez empírica do fato consumado.
Tal é a estrutura profunda do modo de ser brasileiro. Ela pode ter sido camuflada, em certo meios e momentos, por valores importados mediante os quais alguns indivíduos ou grupos adquiriram provisoriamente algo como um sentido da vida. Houve cristãos, positivistas, maçons, comunistas, americanófilos, anglófilos, francófilos, germanófilos, europeizantes, indigenistas, africanistas – cada um vivendo para o significado escolhido, mas, justamente nessa medida, não podendo fazê-lo como brasileiro e sim como indivíduo isolado ou membro de um grupo em particular. Quando, na devastação cultural da última década, até mesmo essas formas culturais parciais e temporais se dissolveram, a verdadeira condição do ser brasileiro tornou-se evidente. A verdade profunda do “Tratado da Lavação da Burra” nunca foi tão visível. Não é talvez coincidência que esta obra notável, por tanto tempo guardada na gaveta, venha só agora ao conhecimento do público. Em outras épocas, sua verdade temível podia ser tergiversada, descontada como exagero de satirista, atenuada por uma multidão de subterfúgios. Hoje, não há como escapar dela.