Leituras

Carta de um cego acordado a uma vidente adormecida

Olavo de Carvalho

Maio de 1999

NB — Recebi em 28 de maio de 1999 um longo e-mail, de uma leitora cujo nome não divulgarei exceto se ela tomar a iniciativa de me autorizar a fazê-lo, o qual julguei merecer uma resposta detalhada, não só porque parecia de boa-fé, mas porque resumia, de certo modo, alguns enganos padronizados que determinada categoria de leitores (não muito vasta, graças a Deus) comete quase que invariavelmente na interpretação de meus escritos. Esses erros são sempre do tipo assinalado certa vez pelo educador Cláudio Moura Castro, ao dizer que neste país ninguém lê o que um autor escreveu, mas o que se imagina que ele quis escrever. Lendo-me desta maneira, e diagnosticando minhas intenções com aquela espevitada psicologia divinatória que tantas vezes substitui a pura e simples atenção à leitura, minha correspondente chegou à conclusão de que sou um sujeito “cego de ódio” — um diagnóstico que supõe em quem o faz a capacidade de enxergar, para além do texto, os rins e o coração do infeliz autor. Respondendo-lhe, respondo a outros e me poupo, assim, algumas horas de escrita. Transcrevo a seguir a resposta, intercalada com o texto integral da carta recebida.

 

Caro Sr. Olavo de Carvalho,

Tenho acompanhado (não sem certa perplexidade) o gradual aumento do seu indisfarçado ódio pela “esquerda” ou qualquer coisa que lembre comunismo.

Sempre gostei muito de ler as coisas que o senhor escreve. Tenho simpatia por iconoclastas. Mas o senhor tinha algo mais, era mais consistente, mais coerente. Hoje, quando leio alguns de seus últimos textos, penso sempre num homem dominado pela emoção, pela raiva, espumando enquanto digita.

Antes que o senhor me identifique com o que chama de “hipócritas da KGB” ou coisa equivalente, gostaria de dizer que sou uma leitora imparcial e só.

A razão da minha perplexidade vem de eu ter me enganado a respeito daquilo que o movia a escrever. Achava eu, ingenuamente, que o senhor pretendia sempre buscar a verdade em tudo e em todos, não poupando ninguém. Vejo, desolada, que não se trata disso. O senhor está cego de ódio..

 

Prezada amiga,

Já que a senhora tem dado atenção a meus livros, devo retribuir dando à sua carta a atenção que merece, respondendo-a ponto por ponto, para que não sobrem no fim dúvidas ou suspeitas quanto aos motivos e propósitos do que escrevo.

Não estou entre os que crêem que o ódio seja um sentimento abominável. Estes fingem que nada odeiam, que agem sempre pelo puro amor — mas na verdade não se pode amar o que quer que seja sem odiar aquilo que o nega ou ameaça. A escolha não é entre amor e ódio, mas entre diferentes objetos de amor e de ódio. A perversão lingüística que fez do ódio e do amor respectivamente sinônimos do mal e do bem só serviu para desorientar as pessoas e disseminar a hipocrisia que ama o bem sem odiar o mal ou odeia o mal sem amar o bem. Essa perversão é um dos mecanismos mais insidiosos de esvaziamento do cristianismo para trocá-lo por um pseudocristianismo que se esgota em pura disputa política e que sabemos muito bem quem inaugurou. Cristo, ao contrário de todos os Gandhis de Hollywood, jamais condenou o ódio. O que Ele disse foi: “Na verdade, amais o que devíeis odiar e odiais o que devíeis amar”. Coisas como o comunismo, o nazismo, o fascismo, o regime haitiano dos Tonton Macoute, o estupro, o aborto em massa, a pedofilia, etc., DEVEM ser odiadas por todos os homens de bem e este ódio em nada empana a objetividade do julgamento, já que a objetividade em moral consiste precisamente em discernir e reconhecer nas coisas, segundo o mandamento de Cristo, o odiável e o amável, segundo as várias gradações de relatividade compatíveis com o caráter complexo e misto das realidades deste mundo que não é céu nem inferno. Quanto ao caráter inteiramente odioso do comunismo, ninguém que se pretenda católico pode hesitar um só instante em proclamá-lo, de vez que a isto o obrigam duas sentenças papais proferidas ex cathedra e incorporadas, portanto, à doutrina da Igreja: “O comunismo é intrinsecamente mau” (Pio XI, Divini Redemptoris, 1937) e “O comunismo é doutrina nefanda totalmente contrária ao direito natural” (Pio IX, Qui pluribus, 1846). Terei sido, acaso, mais duro com a esquerda do que o foram esses papas? É evidente que mesmo um fiel católico tem o direito de sondar as razões de tão rigorosa condenação — e não se pode sondar as razões de nada, filosoficamente, sem colocá-lo ao menos temporariamente em dúvida —, mas o fato é que já fiz esse exame, durante trinta anos, tanto pelo conhecimento direto que tive do assunto como militante do Partido Comunista entre 1966 e 1969, como pela reflexão posterior e pelo estudo de livros cuja relação sobe a muitas centenas, incluindo os clássicos do marxismo: tudo isto com a ressalva de que durante um longo período de recolhimento nada escrevi nem disse sobre o assunto, só me pronunciando a respeito a partir de 1995, sem nenhuma pressa portanto. A senhora há de compreender facilmente que atribuir minhas opiniões ao puro ódio — no sentido pejorativo de emoção cega — não é nem um pouco realista.

 

Cego e desmemoriado, pois, se assim não fora, talvez lembrasse do que escreveu sobre Bernanos. Aliás, um lindo ensaio publicado na Revista Bravo. Uma das coisas mais contundentes que já li. Dizia o senhor que Bernanos tinha “razão contra todos”.

 

Cara senhora: quando Bernanos escrevia, existiam na sua pátria uma poderosa direita e uma poderosa esquerda, cada uma com seus jornais, suas cátedras universitárias, suas glórias literárias, seus militantes furiosos, suas tropas de choque, etc. Ele podia colocar-se entre duas facções porque, simplesmente, elas existiam. No Brasil um longo trabalho de “ocupação de espaços” fez com que só restassem em campo as idéias esquerdistas, o vocabulário esquerdista, os sentimentos esquerdistas, etc., de modo que hoje até mesmo o PFL subscreve teses tão profundamente esquerdistas como a affirmative action, enquanto o governo nominalmente de centro-direita dissemina através das cartilhas do MEC a mais pura doutrinação marxista. O deslocamento do panorama mental para a esquerda foi tão completo que hoje um simples neoliberal como Roberto Campos, um centro-direita voitaireano e anticlerical, já é rotulado de “extrema-direita”, o que prova que ninguém mais sabe, sequer, o que é direita. A idéia mesma de direita desapareceu do horizonte visível dos brasileiros. A imparcialidade supõe a existência de partes, minha senhora. Não se pode ficar no meio entre nada e alguma coisa, mas só entre alguma coisa e outra coisa. Opor-me violentamente à esquerda é a única maneira de abrir um espaço para que venha a existir uma direita, e acho imprescindível que exista uma direita, o que não significa que, quando ela aparecer, eu vá estar comprometido com ela e não vá me permitir escrever a seu respeito coisas tão horríveis quanto escrevo hoje sobre a esquerda. O que não teria cabimento seria escrever, hoje, contra uma facção que não existe. Quanto à centro-direita neoliberal, que com todo o seu comprometimento esquerdizante é o máximo de direita possível hoje em dia, tenho escrito um bocado de coisas contra ela, e a senhora as encontrará facilmente na coleção de meus artigos publicados no Jornal da Tarde. Não tenha a menor dúvida de que alguns neoliberais, chocados com meu artigo “Viva o fascismo!” de 5 de março de 1999, me escreveram e-mails tão furiosos quanto o seu, acusando-me de estar cego de ódio contra o neoliberalismo. Discursos contra o ódio, como a senhora vê, não são monopólio de ninguém, e aliás são a ocupação predileta de quem não tem o que dizer.

 

Ainda estava maravilhada com esse texto quando descobri uma palestra feita no Clube Militar em que o senhor dizia aos ouvintes “Não se envergonhem da sua obra. Levantem as suas cabeças, tenham orgulho e não permitam que nenhum hipócrita comunista venha se fazer de seu fiscal.” Que estranho, pensei… Desde quando tortura e perseguição são motivo de orgulho? Ou isso não deve ser considerado parte da obra dos militares? Nesse caso, então Fidel Castro também tem do que se orgulhar, pois não há em Cuba uma criança que não esteja na escola ou que careça de assistência médica.

 

Sua argumentação simplesmente não é honesta. Louvar o saldo global da obra dos militares, somando os bens e descontando os males, é bem diferente de louvar os males. A feiúra moral dos atos de violência cometidos pelo governo militar foi explicitamente afirmada no meu discurso, junto com a grandeza de seus atos positivos, que, no resultado final e dentro do quadro das alternativas permitidas pela situação, superaram grandemente esses males.

Mas trinta anos de hegemonia cultural da esquerda neste país mudaram tão profundamente os hábitos de pensamento e os simples reflexos automáticos da opinião pública, que hoje se tornou natural para muitas pessoas — que nem se imaginam esquerdistas — uma completa duplicidade moral no julgamento de atos e homens. De um lado, essas pessoas se acreditam esclarecidas e democráticas, abominam qualquer dogmatismo moral, detestam a idéia de um bem e de um mal absolutos e professam tudo julgar de acordo com a relatividade das situações e circunstâncias. Mas, quando o que está em julgamento é “a direita”, a execrável direita, então abdicam de todo senso das proporções, recusam-se a qualquer avaliação comparativa das circunstâncias e alternativas reais, e tudo julgam segundo padrões absolutistas de certo e errado. Se dizemos que de todas as reações a uma revolução comunista já havidas no mundo a brasileira foi documentadamente a mais branda, a mais respeitosa das leis e direitos, a menos violenta, a menos repressiva, e desafiamos nosso adversário a nos citar um único exemplo contra a nossa tese, ele imediatamente escorrega para fora do ponto em discussão e declara solenemente que um só ato de violência já é abominável e que o fato de a contra-revolução brasileira ter sido menos violenta que as outras é apenas um fator quantitativo que nada significa. Ou seja: quando se trata de julgar “a direita”, a moral dogmática absolutista, abstratista e a-histórica, que essas mesmas pessoas condenam como um reacionarismo ideológico, torna-se de repente o critério único e legítimo para o julgamento de tudo.

Assim, minha senhora, não há condição de discutir, pois o pressuposto de toda discussão é um mínimo de honestidade e de fidelidade de cada parte às suas próprias premissas.

Se a senhora compreende que atos humanos devem ser julgados de acordo com padrões humanos, admitirá também que, em política, não existe o bem absoluto, mas apenas o mal menor ou um bem aproximativo. Nesse sentido, o movimento de 1964, como reação a uma revolução comunista em marcha, foi excepcionalmente brando, considerando-se que os hábitos sanguinários dos comunistas deixavam prever um morticínio incalculavelmente maior no caso de chegarem ao poder. Só para a senhora fazer uma idéia, O LEVANTE COMUNISTA DE 1935 MATOU MAIS DE QUINHENTAS PESSOAS EM MENOS DE UMA SEMANA. Os militares que se puseram em ação no dia 31 de março tinham plena consciência de estar prevenindo o mal maior, pois lembravam-se bem dessas vítimas, então recordadas anualmente numa celebração oficial que o establishment esquerdista pós-Constituição de 1988 aboliu para evitar comparações incômodas e perguntas irrespondíveis. Como a senhora vê, todos os cadáveres são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais que os outros.

Ademais, senhora, faça um breve cálculo sobre os acontecimentos de 1964-1984. Do lado das forças do governo, havia aproximadamente 30 mil soldados e policiais mobilizados contra a guerrilha rural e urbana. Do lado da guerrilha, havia não mais de quinhentos combatentes. O governo fez aproximadamente trezentas vítimas, os guerrilheiros duzentas, o que significa a média de 0,01 vítima para cada combatente governista, em contraste com a média de 0,4 feita por cada guerrilheiro individual. É uma diferença, senhora, de 1 para 40, por soldado. Proporcionalmente, se a esquerda tivesse o mesmo número de combatentes que as forças legais, conservando o poder de fogo de cada soldado, teria matado 12 MIL PESSOAS. Diga agora qual das duas forças, a governista e a esquerdista, foi mais assassina, e diga se para impedir a morte de doze mil pessoas é excessivo matar trezentas. Esses cálculos, senhora, são obrigatórios para quem quer que pretenda, no julgamento de tais fatos, ser justo e imparcial como a senhora diz que é. Recusar-se a essa comparação é ceder a impressões carregadas de ódio irracional, coisa bem diferente do ódio refletido e justo a que se refere N. S. Jesus Cristo.

 

Concordo com o senhor que os militares eram muito menos castradores do que qualquer outro representante de governo comunista e mataram menos. Isso é verdade, mas ainda não vejo motivo de “orgulho”.

 

A senhora não chega a compreender que paralisar com tão pouco derramamento de sangue uma revolução em marcha é uma proeza NUNCA IGUALADA, nem de longe, em toda a história ocidental? Não chega a compreender que, nas circunstâncias, manter a disciplina e reduzir ao mínimo possível os inevitáveis atos de crueldade foi um feito político e moral de grandeza excepcional? A senhora, no comando de um Exército incumbido de enfrentar uma revolução, conseguiria fazer melhor? Quem, no mundo, conseguiu? A senhora se imagina investida de poderes divinos?

 

Lembro de outra passagem do mesmo discurso em que o senhor diz assim “Será que não está na hora de os adultos aprenderem que os jovens não devem ser lisonjeados e sim educados (…) ?” Eu pergunto, será que a lição das lisonjas só serve para os jovens? Acho que não, acho que é para todos. Não diz a Bíblia que homem que lisonjeia o próximo arma-lhe uma rede aos passos?

 

Cara senhora, quantos candidatos a senhora já ouviu fazerem a apologia do eleitor adulto ou ancião? Quantos filmes e novelas a senhora já viu fazerem a defesa dos pais contra a rebelião dos jovens? Quantas canções populares a senhora ouviu assumirem a defesa dos sentimentos dos adultos contra as pretensões das novas gerações? Por favor, não me faça descrer da sua inteligência. O mundo, no século XX, regurgita de lisonjas à juventude.

 

Bem, eu não tenho nada contra os militares, só por eles serem militares. Mas não gosto de qualquer governo que seja totalitarista. Tanto os confessos quanto os camuflados.

 

O conceito de totalitário não se aplica ao regime militar brasileiro, exceto como figura de retórica muito chinfrim. O totalitarismo implica, além de uma concepção global que os militares nunca tiveram, uma organização popular de apoio, que não houve, o controle da cultura e da linguagem, que não foi sequer tentado, a implantação de uma nova ética através da educação, que não foi nem mesmo cogitada, etc. etc.

 

Apesar de ter ficado bastante intrigada com o seu discurso, ainda achava que o senhor talvez tivesse escrito aquele texto sob coação moral irresistível. Afinal, o autor do “Imbecil Coletivo” não ia dizer a ninguém que se orgulhasse de nada. Pelo contrário, questionaria sempre.

 

Questionar por questionar é tão bobo quanto nunca questionar nada. E direi a um homem que se orgulhe de seus atos, para levantar seu moral, sempre que o veja cercado de acusadores que, imputando-lhe crimes que não cometeu, procurem lhe incutir falsas culpas para o manipular melhor.

De novo, senhora, peço que faça as contas, agora com relação às torturas. O Brasil teve, no regime militar, não mais de 2.000 presos políticos. Supondo-se, para raciocinar per absurdum, que TODOS tivessem sido torturados por um total de 30 horas cada um, seria preciso 60 mil horas de trabalho dos torturadores, ao longo de 20 anos, ou seja, 3 mil horas anuais. Portanto: bastaria um único torturador, trabalhando 8 horas por dia durante 20 anos, para fazer TODO esse serviço. Suponhamos, porém, que o torturador não trabalhasse sozinho, mas com um parceiro: para torturar todos os presos políticos do Brasil seria preciso DOIS torturadores. Para ser mais flexíveis ainda, admitamos que cada torturador só trabalhasse três meses por ano. Neste caso, OITO torturadores bastariam. Mas, para irmos ao absurdo da concessão, admitamos que cada dupla de torturadores agisse sob ordens de toda uma cadeia de comando que, descendo de um general para um coronel, deste para um tenente-coronel, deste para um major, para um capitão, para um tenente, um sargento e um cabo, então teríamos, para cada uma das quatro duplas, mais oito cúmplices. Sendo quatro as duplas, teríamos, além dos torturadores diretos, mais 32 cúmplices, ou seja: um total de 40 torturadores, diretos e indiretos, bastaria, com sobras inconcebivelmente generosas, para torturar TODOS os presos políticos brasileiros, na hipótese aberrante de que nenhum destes tivesse sido poupado. Ora, a senhora acha mesmo que todas as forças armadas brasileiras — 300 mil homens — deveriam se sentir culpadas, e continuar a sentir-se culpadas vinte anos depois, pelas ações de 40 indivíduos? Não é antes mais justo dizer aos outros 290.960 que ergam suas cabeças e não se deixem intimidar por acusadores mal intencionados?

 

Durou pouco essa ilusão. Li há poucas horas o seu comentário da semana e constatei que o senhor acha que a Esquerda é o mal encarnado assim como a Esquerda acha que a Direita é o mal encarnado. Em outras palavras, o senhor ainda é o mesmo jovem indignado e cego dos idos de 64. Está cometendo agora o mesmo erro de julgamento apressado de outrora. Será que daqui a 30 anos o senhor vai estar no Clube Comunista pedindo desculpas também?

 

A esquerda não é o mal encarnado porque o mal encarnado é o espírito revolucionário que ora se expressa por meio da esquerda, ora da direita — a Montanha e a Gironda da Revolução Francesa, Leviathan e Behemoth do livro de Jó na interpretação de Blake. Como no momento a expressão dominante e quase única no Brasil é a esquerda, esta assume de fato o papel de encarnação do mal, até que a roda da História complete seu giro e esse papel seja novamente assumido pela direita. Se meus livros tomam como referência uma escala temporal mais vasta, é natural que meus escritos jornalísticos, concentrando-se na atualidade, tomem por alvo o mal onde ele está no momento, e não onde poderá estar amanhã. Para ter uma visão mais completa de ambos os lados da coisa, leia O Jardim das Aflições.

Quanto à pergunta sobre o Clube Comunista, é evidente que, se minhas palavras de hoje servirem algum dia para legitimar uma onda atroz de mentiras contra comunistas e eu na ocasião nem me der conta do que esteja acontecendo, só tardiamente vindo a perceber o mal, terei a obrigação moral de pedir desculpas aos comunistas tão logo venha a percebê-lo. Nunca me considerei superior a esse tipo de dever moral. Apenas espero que, se essa onda de mentiras de fato vier a se desencadear contra os comunistas, eu não esteja na ocasião tão surdo e cego quando estive quando começaram a se espalhar, com a minha insensata ajuda, as mentiras contra os militares. No momento, porém, semelhante onda não é nem de longe previsível, visto que os comunistas dominam com mão de ferro quase todas as redações de jornais e, nas TVs, só não controlam o valente Boris Casoy e o teimoso Alexandre Garcia (a terceira exceção era Paulo Henrique Amorim, mas já deram cabo da carreira dele tão logo ele cometeu o pecado mortal de anunciar diante das câmeras que 96 por cento dos telespectadores consultados eram contra a libertação dos seqüestradores de Abílio Diniz).

 

Isso me lembra outro texto seu: “O abandono dos Ideais”. Quase me esqueço de explicar o que foi que eu vi no comentário que me fez constatar as minhas suspeitas. Bem, o senhor falava sobre o Estado de Direito que “os hipócritas da KGB” gostam tanto de defender. Dizia que hoje não há mais direito a privacidade, que o dinheiro público não pode se sobrepor ao direito de conversar numa boa no telefone.

Caro senhor Olavo, a mesma Constituição que consagrou o Estado de Direito e o direito de privacidade, consagrou outros princípios. Só no artigo quinto são mais de 70. E, sabe de uma coisa, não há hierarquia entre eles. Pois é. Freqüentemente, alguns princípios entram em choque. Aí os juristas precisam fazer uma escolha, uma vez que um terá de prevalecer sobre o outro. Então eles fazem uma ponderação, no caso concreto, para saber qual princípio privilegiar. Parece-me que é justamente o que acontece agora. O senhor sabe que as pessoas que lidam com a coisa pública estão vinculadas a lei. Pois muito bem, a lei diz que o administrador, o agente público deve se reger por princípios tais como o da moralidade, imparcialidade, igualdade e coisas assim. Tais princípios devem ser rigorosamente respeitados porque o agente não está ali administrando o seu dinheiro, o seu patrimônio, para que se tenha alguma garantia de que as coisas se processarão de modo limpo. Ele esta ali com um poder que lhe foi conferido, delegado. Portanto tudo quanto ele fizer deverá e será passível de controle externo. A ponderação de princípios entra aí, estão em jogo dois direitos: o da privacidade do agente e o da sociedade de ver seu patrimônio administrado honestamente, de acordo com a lei, a qual consagra o bem público, se sentir segura. Qual o senhor acha que deve prevalecer, nesse caso?

 

Suas especulações jurídicas, cara senhora, são absolutamente desnecessárias, pois não há contradição alguma entre o direito individual à privacidade e o direito da sociedade à honesta administração de seus bens — e o que está em jogo não é nada disso. O que está em jogo é que, sob a alegação de proteger o dinheiro público, foi feita uma escuta ILEGAL, isto é, um “grampo” não autorizado pela competente autoridade judicial. Isto, em si, é crime infinitamente mais grave do que qualquer desvio de dinheiro público, pois importa em usurpar a autoridade mesma do Estado e não apenas os seus bens materiais. A custódia que o Estado exerce sobre os bens materiais do povo advém da sua autoridade, e não esta dos bens materiais. De maneira complementarmente análoga, o direito que a senhora exerce sobre seu dinheiro advém da cidadania, e não esta da posse do dinheiro, a qual está para o primeiro como a conseqüência está para a causa, ou como a parte está para o todo. Logo, a usurpação de seus bens materiais atenta contra um de seus direitos, mas um atentado contra a sua cidadania viola todos eles ao mesmo tempo. Do mesmo modo, é mais grave atentar contra a autoridade do Estado do que contra os bens públicos. Qualquer criança pode compreender este raciocínio, que é juridicamente insofismável, moralmente certo e logicamente exato.

É evidente que, no curso de uma investigação de corrupção ou de qualquer outro crime, o Estado tem o direito de grampear telefones, contanto que isto seja feito de maneira legal, isto é, determinado pela autoridade judicial competente e não pelo arbítrio de um policial qualquer e muito menos de um “araponga” a serviço de uma facção política. Se, por acaso, o grampo ilegal revela uma verdade, ele presta com isto um desserviço à justiça, pois invalida essa verdade como prova judicial e dá ao suspeito uma oportunidade de ouro para se safar incólume. Ademais, só quem pode decidir da veracidade ou não de uma prova judicial é a própria justiça e não a senhora, nem a imprensa, nem a assembléia inteira dos arapongas reunidos. Ao proclamar que o grampo é prova verdadeira de um verdadeiro crime, a senhora prejulga o acusado e dispensa o exame judicial da questão. Se milhões de pessoas pensarem como a senhora, a gritaria do povo numa praça valerá como tribunal supremo, e isto evidentemente nada tem a ver com o Estado de direito, que NUNCA é o reinado absoluto da massa enfurecida. O poder emana do povo, sim, mas não por quaisquer meios, e sim somente através das leis que esse mesmo povo tenha aprovado por meio de uma assembléia eleita pelo voto. Se o povo deseja tornar lícitos todos os grampos e instituir o direito universal à espionagem, então que eleja outra assembléia e vote outra Constituição, louca o quanto seja — mas, até lá, que aja dentro das leis que ele próprio instituiu.

 

O indivíduo ou a sociedade? Essa “autoridade do Estado” que o senhor fala não casa com o princípio dito violado pelos “arapongas” da esquerda. Que eu saiba, no Estado de Direito, o poder é do povo. O povo é o poder constituinte originário, portanto, não há que se falar em autoridade estatal, como se isso fosse uma redoma insuspeita e inviolável.

 

O povo, senhora, não é um monarca absoluto que possa mudar o curso das coisas por mero capricho, a qualquer momento. O povo, senhora, não tem todos os direitos e, sobretudo, não tem só direitos. Mais que o governante, ele tem deveres — e o primeiro deles é não violar, movido pelo ódio que lhe inspire uma determinada pessoa ou um fato em particular, os princípios gerais que ele mesmo estabeleceu antes que o ódio lhe subisse à cabeça. Um povo que não é capaz disto não é um povo — é uma horda de loucos e bandidos. Infelizmente, esta distinção, apagada pelo discurso interesseiro de jornalistas intrigantes e políticos ávidos de poder, está desaparecendo cada vez mais das consciências neste país, e as pessoas, de boca cheia, chamam de “Estado de direito” a tirania da massa insuflada por demagogos.

 

O presidente deve satisfações (e muitas) de tudo o que faz. Então o princípio da moralidade pode ser mitigado pelo princípio do sigilo das ligações telefônicas? Pode até ser que isso ocorra em sede de direito penal, mas é inconcebível em política.

 

O favorecimento ilícito é crime previsto na legislação penal e é portanto uma questão penal. Nenhum julgamento político deste mundo pode, legitimamente, sentenciar que houve ou não houve crime, nem muito menos condenar o acusado a qualquer penalidade que seja. O julgamento político pode apenas decidir de o acusado deve ou não permanecer no cargo, INDEPENDENTEMENTE DE SER ELE CULPADO OU INOCENTE. Julgamentos políticos decidem mandatos, não culpa ou inocência. Se a senhora quer um julgamento político para FHC, tem todo o direito de defender a sua proposta, mas jamais o de proclamar, antes do julgamento pelo devido tribunal penal, que seu odiado presidente da República é culpado de crime. O simples fato de a senhora tomar uma mera punição política como atestado de uma culpa real é sinal de que o ódio cego não está precisamente onde a senhora o supôs, mas sim nos seus próprios olhos.

Infelizmente, o critério político vem se substituindo cada vez mais não apenas aos princípios do Direito mas à própria moralidade, pretendendo decidir sobre a veracidade ou inveracidade das denúncias, sobre a culpa ou inocência dos acusados e, last not least, sobre o bem e o mal em sentido absoluto. A a politização de todos os domínios da existência é, precisamente, a definição do totalitarismo.

É bom saber, minha senhora, que um impeachment é apenas uma derrota política, absolutamente alheia ao direito e à moralidade. Numa democracia, uma sentença judicial transitada em julgado prova alguma coisa; um impeachmentprova apenas que o outro lado foi mais forte. Um país onde a força política é sinônimo de justiça e de moralidade está bem próximo da ditadura pura e simples.

Para encerrar, cara senhora, talvez a senhora não esperasse uma resposta tão meticulosa, mas percebi que escreveu sua carta sob forte emoção, que prova o seu sincero interesse no assunto, e julguei que suas observações, por injustas e até insultuosas que fossem, não indicavam qualquer má-fé da sua parte, e que por isto deveriam ser respondidas com paciência e método, como perguntas de um aluno numa aula.

Creia, senhora, que não sou nada do que a senhora diz. Mas, se a senhora antes me admirava tanto quanto diz ter admirado, o choque de encontrar em meus escritos alguma opinião flagrantemente contrária às suas pode ter transformado repentinamente a admiração excessiva em injusto desprezo, pois, como diz o provérbio árabe, “se alguém te louva por qualidades que não tens, logo estará te condenando por defeitos que também não tens”.

Escreva quando quiser. Respondo em geral a todos os e-mails, mas não me comprometo a fazê-lo na hora porque viajo muito e às vezes minha correspondência fica aguardando semanas a fio.

Com meus melhores votos,

Olavo de Carvalho

Muniz Sodré se explica

Olavo de Carvalho

14 de maio de 1999

Aviso aos navegantes

Em 4 de setembro de 1996, poucas semanas após a edição de O Imbecil Coletivo, o Jornal do Brasil reuniu em espalhafatosa primeira página do seu segundo caderno alguns intelectuais esquerdistas que, sem ter lido a obra, emitiam a seu respeito declarações furiosas e assombrosamente uniformes, como se obedecendo a uma mesma voz de comando. As entrevistas refletiam bem o estado de terror pânico que o livro havia semeado entre o alto sacerdócio comunista, revelando ao mesmo tempo a vacuidade intelectual e a índole mesquinhamente corporativa do domínio que esse clero do demônio exercia sobre as universidades e as instituições culturais em geral, seja para fins de mafiosa ajuda mútua, seja para utilizá-las como peças de uma estratégia de dominação comunista.

Um dos entrevistados — o mais veemente — foi o prof. Muniz Sodré de Araújo Cabral, ex-diretor do Instituto de Comunicações da Universidade Federal do Rio de Janeiro, teórico dos cultos afro-brasileiros e autor de vários livros, entre os quais A Verdade Seduzida (Rio, Francisco Alves, 1983) e Jogos Extremos do Espírito (São Paulo, Rocco, 1994), este último severamente criticado em O Imbecil Coletivo.

As declarações do prof. Sodré já não importam, mesmo porque ele as renegou. O que importa é que a justiça acabou por prevalecer no caso, desde que o declarante, convocado pelo meu advogado Dr. Jayme Mesquita a explicar-se perante o juiz da 28ª Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro, apresentou a seguinte retratação formal:

Categórica e formalmente, nada sei, não sendo de meu conhecimento qualquer obra ou fato que desabone a honra e a dignidade do sr. Olavo de Carvalho, sobretudo no concernente ao livro O Imbecil Coletivo, cujo teor jamais me ofendeu ou agrediu pessoalmente. Apesar de eventuais divergências de opinião, nada sei que desabone o autor, intelectual sério. Finalmente, qualquer declaração contrária a isso, a mim atribuída, não deve ser considerada, mas relegada ao esquecimento.

MUNIZ SODRÉ DE ARAÚJO CABRAL

Assim terminou, melancolicamente, mais uma investida do bloco carnavalesco “Acadêmicos de Sierra Maestra” contra a reputação de um escritor brasileiro que ousou não acompanhar o ritmo da sua marchinha.

O episódio é altamente educativo. Mostra que sempre vale a pena recorrer aos tribunais contra ataques desse gênero, por insignificantes que sejam, pois é a repetição impune de pequeninas mentiras que acaba por produzir as grandes injustiças.

Nunca é sábio deixar que inimigos covardes, apostando na própria insignificância, nos dêem agulhadas confiando em que não haveremos de reagir a agressões tão mesquinhas.

Todos os boquirrotos que, fugindo de uma discussão honesta, preferirem ultrapassar as fronteiras da licitude na sua ânsia de usar contra mim o expediente vil e calhorda da difamação, e que não tiverem no devido tempo a prudência e o bom-senso do prof. Muniz Sodré, serão tratados com o rigor que merecem.

Rio de Janeiro, 14 de maio de 1999

OLAVO DE CARVALHO

O pequeno difamador Ivan Cavalcânti Proença

Olavo de Carvalho

Rio de Janeiro, 11 de maio de 1999

Ao
Sindicato dos Escritores do Estado do Rio de Janeiro
Jornal Tribuna do Escritor
Av. Heitor Beltrão, 353, Tijuca
Rio de Janeiro 20550-000 RJ

e-mail: seerj@vetor.com.br

Prezados Senhores,

Em carta à Tribuna do Escritor de março de 1999, o sr. Ivan Cavalcânti Proença informa ter lido, num artigo meu publicado em O Globo de 19 de janeiro, “entre outras indecências, que até que foram muito poucos os esquerdistas mortos pela Ditadura, levando em conta a população“. Decente como ele só, e escandalizado de que semelhante truculência fosse assinada por um indivíduo que aquele diário qualificava de “escritor”, o sr. Proença foi correndo delatar o fato ao Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro, o qual por sua vez se apressou em comunicar ao distinto público que o indigitado apologista de morticínios, para alívio geral da classe, não pertencia ao seu quadro de associados.

O sr. Proença parece considerar-se escritor, e talvez até o seja, pois não há razões para duvidar da autenticidade da sua matrícula sindical que, na falta de maiores glórias curriculares, ele pode esfregar na cara de qualquer um como prova de algo que, pelo exame estilístico da sua cartinha, ninguém chegaria a imaginar. E como um escritor tem de ser necessariamente leitor habilitado, não posso admitir a hipótese de que o sr. Proença tenha compreendido tão mal ou porcamente aquilo que com a maior simplicidade jornalística escrevi em O Globo e com cujo sentido tantas empregadinhas domésticas e pilotos de carrinhos de sorvete atinaram sem qualquer dificuldade.

O que ali realmente se diz é que três centenas de esquerdistas mortos por um governo direitista num país de cem milhões de habitantes são uma dose bem modesta de crueldade política em comparação com os dezessete mil direitistas mortos por um governo esquerdista num país de população quinze vezes menor. Nada podendo contra esses números em que o cotejo estatístico de Brasil e Cuba tanto empana a imagem beatífica que os comunistas apreciam alardear de si mesmos, e em cuja autoridade postiça se escoram para impingir ao mundo a lenda do monopólio direitista da maldade, o sr. Proença optou por manipular cirurgicamente a minha frase, amputando dela toda menção ao caso cubano, de modo a dar a impressão de que não se tratava de uma comparação e sim de um horripilante apelo retroativo ao massacre de mais esquerdistas.

O dano injusto que o sr. Proença pretendeu fazer à minha reputação entre os escritores cariocas já está feito. A mágica besta da citação falseada já iludiu os leitores da Tribuna do Escritor. Este jornal tem agora o dever de impedir que a mentira se propague, e para tanto basta que publique este desmentido, sem cortes ou alterações. Mas, para não cair naquele tipo de imparcialidade cínica que se mantém a igual distância da verdade e da mentira, o Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro tem a obrigação de tirar o caso a limpo, examinando o meu artigo linha por linha para verificar que não tem, mesmo de longe, a nuance homicida que lhe atribui perversamente o sr. Proença. Anexo, para tanto, uma cópia do texto, e apresento a essa entidade, neste ato, não somente o pedido de retificação que me é facultado pelo direito de resposta, mas também uma comunicação formal da infração de ética profissional cometida pelo seu associado Ivan Cavalcânti Proença, um escritor que não se vexa de remanejar as palavras alheias segundo o molde de uma intenção difamatória baixa, vil e covarde.

Indivíduos como o sr. Proença apostam sempre na própria insignificância, contando com que suas vítimas, por compaixão ou preguiça, não se darão o trabalho de punir agressores tão miúdos. Fique ele avisado de que agora mexeu com alguém que não é suficientemente orgulhoso para se dispensar de esmagar um piolho que o incomoda. Contra o sr. Proença já estão sendo tomadas portanto as medidas judiciais cabíveis, sem prejuízo da solicitação que ora encaminho à entidade representativa dos escritores cariocas.

Não sou, é verdade, membro do Sindicato, mas tenho mais de uma dezena de livros publicados, objetos de enfático louvor de Jorge Amado, Josué Montello, Herberto Sales, Ariano Suassuna, Edson Nery da Fonseca e tantos outros escritores de primeiro plano, escrevo regularmente artigos de crítica literária para a revista Bravo! e, como se isso não bastasse, sou também membro da União Brasileira de Escritores, Seção de São Paulo, inscrito sob o número 2775.

Por fim, como não há mal que não traga em seu bojo algum bem, aproveito a ocasião para pedir a minha inscrição no Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro, dado que agora resido nesta cidade e muito apreciaria ter um contato mais próximo com os colegas de ofício que essa entidade dignamente representa.

Atenciosamente,

Olavo de Carvalho

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