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Recordações inúteis

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 7 de março de 2012

Uma fraqueza crônica do pensamento liberal é que, em sua resistência obstinada e não raro heróica ao crescimento do poder estatal, acaba por fazer vista grossa ao fato de que nem sempre os movimentos revolucionários e ditatoriais concentram o poder no Estado, mas às vezes fora dele. Na verdade, nenhum movimento poderia se apossar do Estado se primeiro não se tornasse mais poderoso que ele, criando meios de ação capazes de neutralizar e sobrepor-se a qualquer interferência estatal adversa, bem como, é claro, de manobrar o Estado desde fora e utilizá-lo para seus próprios fins. Qualquer principiante no estudo do leninismo sabe disso.

Que a esquerda petista e pró-petista estava destinada a dominar por completo o Estado brasileiro sem encontrar a mais mínima resistência, é coisa que para mim já estava clara pelo menos desde 1993, quando as famosas CPIs mostraram ser o nosso Parlamento nada mais que um bichinho dócil às injunções da grande mídia, alimentada e manobrada por sua vez pelo onipresente e onissapiente serviço de informações do PT. Foi naquele ano que publiquei A Nova Era e a Revolução Cultural, dando ciência – a quem não desejava ciência nenhuma, por achar que já possuia todas – de que a petização integral do Brasil era apenas questão de tempo. Mal havia então, entre os liberais, quem imaginasse sequer que o PT pudesse vir a ter alguma chance de eleger um presidente da República. E todos me olhavam como a um egresso do Pinel quando eu lhes dizia que, quando isso viesse a acontecer, como fatalmente aconteceria, seria numa ocasião em que o Estado já estivesse completamente dominado por dentro e por fora, a conquista do governo federal nada mais constituindo que a oficialização derradeira de um fato longamente consumado.

Enquanto isso, a intelectualidade liberal gastava todos os seus neurônios no empenho idealístico de defender no plano doutrinário a economia de mercado e a liberdade democrática, duas coisas que a esquerda nem pensaria em atacar muito seriamente naquele momento, já que precisava de ambas para poder parasitá-las e continuar crescendo até ficar forte o bastante para subjugá-las, deformá-las e, no devido tempo (que só agora está chegando) extingui-las.

Havia até quem celebrasse a proliferação das ONGs como um progresso notável da democracia liberal, na medida em que, consagrando as vias não-oficiais de ação social e política, fortalecia a sociedade civil contra as pretensões avassaladoras do gigantismo estatal.

Em vão advertia eu a essas criaturas que a “sociedade civil” era o terreno de escolha para a penetração das forças revolucionárias, decididas a só se lançar à conquista do poder de governo quando estivessem seguras de controlar, por vias não-oficiais, todos os meios possíveis de modelagem da opinião pública, assim como todos os canais de financiamento estatal e privado de uma multidão de empreendimentos revolucionários maiores e menores, setorizados e discretos o bastante para que seu efeito de conjunto simulasse uma transformação espontânea da mentalidade popular. A própria disseminação do termo, insistia este insano colunista, refletia a influência crescente e anônima do pensamento de Antonio Gramsci, naquela época já o autor mais estudado e mais citado em todas as faculdades de letras e de ciências humanas no Brasil, só ignorado por aqueles que mais interesse deveriam ter em defender-se da revolução gramscista.

O primeiro sinal de que alguém havia me prestado alguma atenção não veio senão decorrida quase uma década, e não veio dos liberais. Um artigo memorável do general José Fábrega, publicado em jornal de pequena circulação, mostrou que entre os militares havia ainda alguma inteligência desperta, o que veio a se comprovar nos anos seguintes com os dois livros espetaculares, tecnicamente perfeitos, do general Sérgio Augusto de Avelar Coutinho, A Revolução Gramscista no Ocidente (Rio, Estandarte, 2002) e Cadernos da Liberdade (Belo Horizonte, Grupo Inconfidência, 2004), infelizmente publicados tarde demais para poder inspirar qualquer ação eficaz contra o projeto de controle hegemônico da sociedade brasileira, àquela altura já praticamente vitorioso. O general Coutinho faleceu em 27 de dezembro de 2011 (v. http://www.forte.jor.br/tag/general-sergio-augusto-de-avellar-coutinho/), amargurado de ver a facilidade estonteante com que a malícia organizada – que a estratégia de Gramsci não passa disso – havia se apoderado do país. O que mais o entristecia era que um processo de dominação tão óbvio, tão patente, tão bem explicado de antemão e tão fácil de compreender, pudesse ter sido aplicado a toda uma nação de maneira tão anestésica e imperceptível que qualquer gemido de protesto acabasse soando como extravagância intolerável e quase sinal de demência. Se no resto do mundo a vida imita a arte, no Brasil ela imita a piada: nossa democracia realizou à risca, com séculos de atraso, a boutade de Jonathan Swift sobre o cidadão que morreu mas, não tendo sido avisado disso, continuava acreditando que estava vivo.

Por que a direita sumiu

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 2 de março de 2012

Em artigo recente (http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,uma-nova-direita–por-que-nao-,839845,0.htm), João Mellão Neto define muito corretamente o espírito do conservadorismo, mas falha em explicar por que a direita se enfraqueceu no Brasil ao ponto de todos os candidatos, nas duas últimas eleições presidenciais, serem de esquerda. Isto aconteceu, diz ele, porque a direita apoiou a ditadura e a ditadura não respeitou os direitos humanos. Esse diagnóstico revela mais sobre a mente que o produziu do que sobre os fatos a que pretende aludir. Mellão, com toda a evidência, aceitou a narrativa histórica dos adversários e argumenta contra eles numa perspectiva que, no fim das contas, continua sendo a deles.

Ninguém entenderá a história do período militar sem estar consciente de que em 1964 não houve um golpe, porém dois: o primeiro removeu do poder um governante odiado por toda a população, que foi às ruas aplaudir entusiasticamente a derrubada do trapalhão esquerdista. O segundo, meses depois, traiu a promessa de restauração democrática imediata e iniciou o longo e deprimente processo de demolição das lideranças políticas conservadoras, substituídas, no poder, por uma elite onipotente de generais e tecnocratas “apolíticos”. A grande ironia das duas décadas de governo militar foi que este, movendo céus e terras para liquidar a esquerda armada, nada fez contra a desarmada, mas antes a cortejou e protegeu, permitindo que ela assumisse o controle de todas as instituições universitárias, culturais e de mídia, fazendo daqueles vinte anos, alegadamente “de chumbo”, uma época de esfuziante prosperidade da indústria das idéias esquerdistas no Brasil.

Vasculhem a história do período e verão que, se o governo perseguia e amaldiçoava a violência guerrilheira, ao mesmo tempo nada fazia para combater o comunismo no plano ideológico, muito menos para ensinar à nação o valor perene dos princípios conservadores, que pouco a pouco foram caindo no total esquecimento até tornar-se como que uma língua estrangeira, desaparecida do cenário público decente já antes de que os líderes esquerdistas mais notórios voltassem do exílio.

À imperdoável omissão dos governos militares no campo da guerra cultural e ideológica somou-se o desprezo da clique oficial pela classe política, onde as grandes lideranças conservadoras foram sendo apagadas, uma a uma, como velas sob um vendaval. Foi durante aquele regime que vozes poderosas do campo conservador, como as de Carlos Lacerda e Adhemar de Barros, foram caladas, enquanto outras, como as de Pedro Aleixo e Paulo Egídio Martins, foram menosprezadas e esquecidas, e outras ainda, como a de Roberto de Abreu Sodré, acabaram se acomodando à mediocridade oficial até perderem toda relevância própria. Tanto foi assim que, quando o governo Geisel deu sua virada à esquerda, adotando uma política nuclear antiamericana, estimulando o mais obsceno “terceiromundismo” na diplomacia e até fornecendo armas, dinheiro e assistência técnica para Fidel Castro invadir Angola, não se ouviu um protesto sequer das lideranças civis. E a única resistência que apareceu, vinda do campo militar por meio do valente general Sylvio Frota, foi logo sufocada sob acusações de “golpismo” e aplausos gerais ao presidente triunfante que estrangulara a “linha dura”. Nas universidades, a direita foi sistematicamente preterida na distribuição de verbas e cargos, que a generosidade insana do governo prodigalizava aos esquerdistas na ilusão de neutralizá-los ou seduzi-los (o processo, de uma indecência sem par, é descrito em http://www.ecsbdefesa.com.br/defesa/fts/QTMFB.pdf pelo estudioso venezuelano Ricardo Vélez Rodriguez, um dos mais abalizados conhecedores da vida universitária no Brasil). Até mesmo no jornalismo, foi ainda durante o período militar que a esquerda assumiu de vez o controle das redações (v. meus artigos a respeito em http://www.olavodecarvalho.org/semana/111124dc.html,http://www.olavodecarvalho.org/semana/111125dc.html e http://www.olavodecarvalho.org/semana/111130dc.html), enquanto porta-vozes fulgurantes do pensamento conservador, como Gustavo Corção, Lenildo Tabosa Pessoa e Nicolas Boer, iam sendo jogados para escanteio sem que ninguém desse pela sua falta. A direita pensante e atuante foi, literalmente, esmagada pela ditadura, que ao mesmo tempo, na esperança idiota de dividir os adversários e ganhar o apoio de uma parte deles, abria as portas e os cofres das instituições de cultura para o ingresso da revolução gramsciana.

Quando terminou a era dos governos militares, em 1988, só quem era ainda conservador no Brasil era o povão mudo, desprovido de canais para fazer valer suas opiniões, enquanto o espaço cultural inteiro – mídia, movimento editorial, universidades, escolas secundárias e primárias, etc. – já era ocupado, gostosamente, pela multidão de tagarelas da esquerda que ainda mandam e desmandam no panorama mental brasileiro. Aos sucessos retumbantes que obteve na economia e no combate às guerrilhas, a ditadura aliou, em triste compensação, uma cegueira ideológica indescritível, que expulsou a direita do cenário público e entregou o espaço inteiro àqueles que até hoje o dominam. Cabe, nesse contexto, lembrar mais uma vez o dito de Hugo Von Hofmannsthal, segundo o qual nada está na política de um país que primeiro não esteja na sua literatura (tomada em sentido amplo de alta cultura). A direita saiu da política nacional, porque, com a complacência e até a ajuda do governo militar, foi primeiro banida da cultura nacional.

Coerência e integridade

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 28 de fevereiro de 2012

Meu artigo anterior poderia dar ocasião a inumeráveis outros, tantas são as conseqüências que anuncia e as perguntas que sugere. Uma destas é: qual a importância da lógica na formação do filósofo? De certo modo essa pergunta já foi respondida pelo próprio desenrolar dos fatos históricos: existiu filosofia, e grande filosofia – a maior delas –, uma geração antes de que Aristóteles formulasse pela primeira vez as regras da lógica. O pensamento lógico é, decerto, uma capacidade natural do ser humano, e desde os tempos mais remotos a especulação filosófica faz uso dele quase que por instinto, mas a lógica enquanto técnica explícita só apareceu quando a filosofia, sem ela, já havia alcançado seus mais altos cumes, nunca ultrapassados pela evolução posterior. Quando Arthur N. Whitehead disse que a história da filosofia não passa de uma coleção de notas de rodapé aos escritos de Platão, incluía nisso, é claro, a filosofia inteira de Aristóteles. Assim como esta é apenas a exploração avançada de sendas já abertas pelo platonismo (e o filósofo de Estagira é o primeiro a reconhecê-lo, ao referir-se a si próprio como um de “nós, os platônicos”), a tekhne logike não passa de um ramo especial da filosofia aristotélica, que a transcende infinitamente e não é de maneira alguma determinada por ela nem na sua forma expositiva, nem no seu sentido íntimo.

A coerência do discurso, objeto da lógica, é decerto importante, mas apenas como expressão exteriorizada de uma coerência mais profunda: a consistência da percepção do mundo, manifestação, por sua vez, da unidade e integridade da alma – o equilíbrio interno do spoudaios, o homem maduro e maximamente desenvolvido, consciente de si, dominador do seu universo interior, capacitado a buscar, se me permitem citar-me a mim mesmo, “a unidade do conhecimento na unidade da consciência (cognitiva e moral) e vice-versa”.

Separado desse fundo, o culto do discurso coerente torna-se apenas um fetichismo, hipnoticamente atraente como todos, arriscando erguer as mais sofisticadas construções intelectuais em cima de uma base perceptiva pobre ou deformada. Que tantos filósofos notáveis pelas suas contribuições à lógica tenham descido ao nível da mais acachapante puerilidade quando abandonaram os domínios do puro formalismo e se aventuraram a tratar de problemas substantivos da história, da moral, da religião e da política (Wittgenstein e Russell são casos exemplares), não é um detalhe marginal das suas biografias, mas o sinal de que a busca da integridade do discurso pode ser às vezes a camuflagem usada para encobrir uma consciência fragmentária e dispersa, incapaz de responder por si mesma ante as realidades da vida.

Aristóteles sempre esteve consciente de que o discurso lógico não surge no ar, mas se ergue em cima de todo um caleidoscópio de percepções e recordações que não cede ao impulso da formalização lógica senão após uma série de depurações muito trabalhosas, que vão passando da linguagem poética (muitíssimo bem definida por Benedetto Croce como expressão de impressões), através das escolhas retóricas e confrontações dialéticas, até o formalismo da demonstração lógica, incapaz de abranger senão um fragmento mínimo da experiência humana (escrevi um livro inteiro sobre isso e não preciso me repetir). Quando se perdem de vista as raízes que o raciocínio lógico tem nas modalidades menos abstratas de discurso (e estas na complexidade da alma vivente), os progressos da formalização arriscam tornar-se pretextos de uma irresponsabilidade cognitiva quase demencial, tanto mais danosa quanto mais adornada de perfeições técnicas imponentes.

Não por coincidência, as escolas filosóficas que privilegiam acima de tudo a análise lógica concentraram-se no idioma padronizado das ciências e na “linguagem cotidiana” (muitas vezes constituída de frases banais inventadas ad hoc pelo próprio filósofo, do tipo “a vassoura está atrás da porta”), fugindo de enfrentar a linguagem da grande literatura e da revelação, as únicas em que se expressam as potencialidades máximas da fala e, portanto, nas quais transparece a verdadeira natureza da linguagem. Foi por isso que, nos seus célebres confrontos com Ludwig Wittgenstein, o genial crítico literário F. R. Leavis, que só enfocava a linguagem com base em exemplos reais colhidos na complexidade da trama social e da herança literária dos séculos, acabou por se definir como um “antifilósofo”. No sentido grego, seria um filósofo até maior do que aquele seu amigo e antagonista. Num ambiente de filósofos “profissionais” apegados ao formalismo lógico, só podia ser mesmo um “anti”.

Uma certa dificuldade no aprendizado da lógica moderna (nada, no entanto, que não se possa superar com um pouco de paciência) ameaça dar ao estudante a impressão de que ali se encontra o máximo de “seriedade” que a inteligência humana pode alcançar. Mas a integridade do discurso lógico só é verdadeiramente séria quando arraigada na integridade de uma visão pessoal responsável, de uma percepção abrangente e madura da realidade, estendida para muito além das possibilidades acessíveis da prova lógica.

A disciplina do pensamento lógico não é, definitivamente não é o padrão máximo da honestidade filosófica, ela é apenas a sua expressão mais externa, mais “visível” e menos essencial. O filósofo que descura da disciplina da alma e capricha ao máximo na coerência lógica é como um capomafioso, que, vivendo da jogatina, da exploração do lenocínio e do assassinato dos concorrentes, se achasse muito honesto por manter seus livros de contabilidade na mais perfeita ordem.

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