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Ciência e demência

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 20 de agosto de 1998

Vocês já tiveram a ingrata ocasião de tentar aplacar os temores de um paranóico quanto à conspiração urdida pelo universo para destruí-lo?

Quem tentou conhece a dificuldade do empreendimento. Toda argumentação é impotente no caso. Um doente de paranóia raciocina tão bem quanto qualquer outra pessoa, às vezes até um pouco melhor: o medo acende todos os seus bytes de uma vez e ele nos prova , por a + b, que as rotas dos aviões foram propositadamente desviadas para bombardear sua casa, que seu vizinho instalou no porão uma máquina para ler seus pensamentos, etc., etc. Logo percebemos que o erro dele não está no raciocínio, mas nas premissas. Ele parte de informações erradas, porque lhe faltam certas percepções intuitivas e o senso das proporções. Como estas coisas só se adquirem por experiência direta, e as palavras só podem transmitir signos e não os fatos mesmos, é inútil tentar reconduzir o infeliz à realidade comum: nosso discurso cai e se perde no fosso intransponível entre dois mundos eternamente separados.

É desesperador.

Pois bem: de uns anos para cá, discutir com certos intelectuais – chamemô-los assim – tornou-se uma experiência desse tipo. Eles falam, raciocinam, argumentam como se fossem pessoas normais, porém, depois de uns minutos de conversa, percebemos que eles simplesmente não sabem do que estamos falando. Provavelmente a dose de informações eruditas desencontradas ou falsas que receberam na universidade os desarticulou de tal modo que se tornaram incapazes de confiar em suas próprias percepções. Não crendo mais no que enxergam individualmente, apegam-se com desespero ao que imaginam coletivamente. É o primeiro grau da maluquice: a histeria. Mas o histérico, se toma o imaginado como percebido, ao menos só faz isto em estado de excitação. Aos poucos, porém, a quantidade de estímulo necessária para produzir o equívoco vai diminuindo, como num experimento de hipnose, em que a força do hábito faz com que sinais cada vez mais brandos emitidos pelo hipnotizador bastem para produzir o transe. O sujeito que começara por confundir intensidade e realidade termina por afirmar, com toda a calma e frieza, que realmente não sabe se um feto humano é humano, que não enxerga diferença moral entre fazer sexo com uma mulher adulta e com um bebê de 2 anos, que não vê distinção de qualidade entre a Catedral de Chartres e as obras de Basquiat, que entre o carinho físico e uma facada no estômago a diferença é apenas de grau, que a consciência humana não existe, que o amor de uma mãe por seus filhos é efeito da exploração capitalista do proletariado, etc., etc. Aí ele está totalmente esquizofrênico e provou, portanto, sua habilitação a uma cátedra universitária.

Um psicastênico não percebe coisas por trás das palavras, e o enviamos ao médico; um desconstrucionista também não, e lhe confiamos a educação de nossos filhos.

O chamado progresso do conhecimento obriga-nos a discutir, fingindo seriedade, assuntos que um pythecantropus erectus desprezaria como indignos de sua inteligência. Sempre que me vejo na contingência de ter de fazer isso, tenho de me imbuir daquele espírito de mentira piedosa que se sobrecarrega de precauções para não contrariar o louco de frente. Tenho medo de terminar como os empregados do Henrique IV de Pirandello, os quais, à força de fingir que são cortesãos de Henrique IV para não contrariar o patrão maluco que imagina que é Henrique IV, terminam acreditando que são mesmo cortesãos de Henrique IV. Quando não agüento mais e parto para a gozação ostensiva, creiam: faço-o somente em legítima defesa da minha saúde.

Uma das mais trágicas ironias da História é que o prestígio social da ciência tenha contribuído para reduzir multidões inteiras de intelectuais a um estado de idiotice mal disfarçado pela linguagem pedante em que se expressa. Pois a ciência é apenas uma das formas derivadas da razão, e cultuada fora de um senso global da racionalidade se torna um fetiche hipnótico. Quando um sujeito, sob a pressão da vida moderna, vai perdendo a capacidade de perceber certas coisas, certas qualidades, certas diferenças, ele pressente, num primeiro momento, que está ficando maluco. Mas, em seguida, quando lê que “não há provas científicas” de que essas coisas existam, sente um alívio tremendo e, escorado na autoridade da ciência, proclama que cego é quem as vê. Raramente ou nunca um sujeito imbuído dessa ilusão encontrará um professor honesto para lhe ensinar que a ausência atual de provas científicas é, na rigorosa acepção do método, fraquíssimo argumento contra a existência do que quer que seja, principalmente daquilo que se conhece de longa data por percepção direta. Mas, para ensinar isto, é preciso algo mais que conhecimento científico: é preciso saber o que é ciência e o que não é – e isto, em pleno apogeu da autoridade científica, se tornou para a quase totalidade das classes falantes algo como um mysterium tremendum.

Ralé de toga

 Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 6 de agosto de 1998

Embora não seja estrita verdade o que pretendia Karl Marx, que a condição social dos homens determine a sua consciência, ela o faz às vezes, e no mínimo é imprudente esquecer que ela pode impor severos obstáculos ao conhecimento. É característico dos modernos acadêmicos precaver-se contra esse erro no estudo de todos os assuntos humanos, salvo no deles mesmos. Se há um tema raro nas investigações acadêmicas, é o das relações entre a estrutura do poder universitário e as idéias dominantes entre estudantes e professores.

Mas é claro que a organização social e econômica do trabalho intelectual molda em parte a temática e os pressupostos da investigação e do debate, e não é possível que um tipo qualquer de organização – seja dos letrados chineses, seja a do clero medieval, seja a da moderna burocracia acadêmica – deixe a mente totalmente livre de entraves para enxergar a verdade tal e qual. Por isso é da mais alta conveniência que, numa mesma época, coexistam várias modalidades de esforço intelectual, somando, por exemplo, ao trabalho coletivo das academias as contribuições de free lancers e outsiders . Afastar ou menosprezar estes últimos trará a consagração da organização acadêmica como o único canal permitido de atividade intelectual – e, quanto mais homogênea a classe pensante, mais hão de proliferar nela os erros consagrados em dogmas.

Por isso mesmo jamais me atraiu a profissão universitária, inadequada a uma vocação pessoal demasiado sui generis . O primeiro assunto que me interessou nesta vida foram as religiões comparadas, das quais não havia curso universitário no Brasil e ainda são anêmicos entre nós. Foi a necessidade de esclarecer certos problemas de teologia mística – islâmica, para tornar a coisa ainda mais exótica – que me levou aos estudos filosóficos; e a busca de uma precisa diferenciação entre o discurso da mística, o da poesia, o da filosofia, etc. foi que me pôs na pista da “teoria dos quatro discursos” ( Aristóteles em Nova Perspectiva , Rio, Topbooks, 1997), a qual, se tem algum valor filosófico independente, não é para mim senão etapa de um percurso que começa e termina na vida interior. Como poderia eu adequar esse trajeto às exigências de programas e chefetes, é coisa que escapa à minha imaginação.

Tão alheias são essas questões ao nosso mundinho universitário que ninguém, absolutamente ninguém na universidade brasileira, se deu o trabalho de discutir minhas teses, e, se alguém aí quis dizer algo a respeito, foi para dar o show de inépcia daquele parecerista da SBPC que escrevia “inverossímel”, com “e”, e confundia Santo Alberto Magno com São Gregório Magno. Várias vezes observei que todo o nosso primeiro escalão acadêmico reunido não teria força para empreender uma discussão séria do meu livrinho – e ao dizer isso não estava sendo nada hiperbólico, mas fazendo uma descrição precisa de um estado de coisas alarmante.

Para complicar, a teoria dos discursos incluía estudos de argumentação e persuasão, que depois apliquei ao exame de mil e um debates da atualidade, em artigos de imprensa cuja ligação íntima com um trabalho filosófico nem todos os leitores perceberam, ainda que eu a declarasse no prólogo a Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão (Topbooks, 1998). E jamais a burrice acadêmica se desmascarou tanto quanto nas suas reações a esses artigos. Quando um posudo acadêmico, apanhado em flagrante delito de vigarice intelectual, reage com insultos ou insinuaçõezinhas, sem sequer se dar conta de que não foi vítima senão da aplicação rigorosa de distinções lógicas que ele teria a obrigação de conhecer e praticar, isso só denuncia, mais enfaticamente ainda, a situação calamitosa de um ensino universitário no qual faltam menos verbas do que quem as mereça.

Nessas condições, a entrada em cena de um trabalhador intelectual autônomo, simpático ou antipático não vem ao caso, mas capaz de renovar uma certa ordem de estudos longamente abandonada neste país, deveria ter sido saudada como uma ajuda providencial, o que não se deu porque a nossa casta universitária não tem, para tanto, nem o necessário amor ao conhecimento, nem suficiente desapego a vaidades corporativas.

Mas não é só com os de fora que o meio acadêmico tem má vontade. Quando se vê, de um lado, a indolência com que esse círculo adiou até agora um exame do pensamento urgente e revigorante do professor Roberto Mangabeira Unger, e, de outro, o entusiasmo indecente com que estudantes açulados por professores da UFRJ se apressam em agredir com gritos e pancadas um reitor que não veio ao seu gosto – então se percebe a miséria de uma casta tão empenhada em fugir do seu dever quanto em mandar no que não é da sua alçada.

É a essa gente arrogante e burra, a essa ralé togada que vamos entregar o futuro da inteligência no Brasil?

Operação Avestruz

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 23 de julho de 1998

O novo mundo de governo planetário e “paz perpétua” que se anuncia para o século vindouro só é reconfortante e tranqüilizador para a população dos cemitérios. Para o restante da humanidade, ele é tão estranho, incompreensível e atemorizador, que as mentes mais fracas se recusam a vê-lo e se refugiam numa feroz nostalgia das guerras e revoluções do século 20, onde pelo menos todo mundo acreditava saber o que estava em jogo. Como fantasmas num teatro abandonado, continuam a reencenar mecanica-mente os velhos enredos, para uma platéia vazia, enquanto em torno o universo rui.

Quando ouço os miúdos discursos domésticos de nossos esquerdistas e de nossos liberais, em defesa do Estado ou da livre empresa, não posso deixar de constatar que tudo não passa de uma regressão uterina para um extinto mundo simples, em reação de autodefesa psíquica ante um súbito e temível alargamento do cenário histórico.

Entre nossos intelectuais, acadêmicos, jornalistas, políticos e comentaristas de tevê, quase ninguém quer realmente saber o que se passa, e, bem ao contrário, todos buscam produzir ansiosamente um discurso qualquer que os dispense de olhar para o mundo e lhes dê a ilusão de estar pisando no terreno firme da década de 40.

Mas a simples ignorância natural não bastaria para defendê-los de um mundo que se precipita, em velocidade atordoante, para dentro do desconhecido. Para manter-se numa reconfortante penumbra, têm de produzir com esforço deliberado uma espécie de ignorância ativa , reforçada todos os dias mediante novas e mais engenhosas negações dos fatos. Toda a imprensa nacional, sem exceções visíveis, é hoje apenas um mecanismo auxiliar dessa vasta Operação Avestruz, a força-tarefa designada para a missão de tapar os olhos da massa às notícias incatalogáveis.

Um exemplo característico é a facilidade unânime com que se dá por pressuposto, seja para maldizê-la, seja para enaltecê-la, que a Nova Ordem Mundial não é se-não um novo nome do bom e velho imperialismo norte-americano. Partindo dessa premissa, tudo não passa de uma questão de reeditar o discurso varguista contra o inimigo estereotípico da soberania pátria, ou de, inversamente, louvar os benefícios de uma economia transnacional. Ano após ano, enquanto o mundo em torno vai se tornando cada vez mais sinistro e ininteligível, o confronto nacional de idéias repete o debate Almino Affonso versus Carlos Lacerda, ou, na mais atualizada das hipóteses, sambão versus Tropicália. A moçada das redações, ignorante até o limite do sublime, reproduz as velhas notícias, com o entusiasmo caipira do trilionésimo Colombo.

Há certos temas de atualidade, no entanto, que por sua simples menção bastariam para desmantelar todo o teatrinho mental em que essa gente se refugia, e os quais, por isso mesmo, jamais entrarão na nossa imprensa, se não for pelo preciso canal por onde estão entrando agora, isto é, por um artigo assinado do campeão nacional de atipicidade jornalística, que não é outro senão este vosso atento criado, obrigado.

Digo logo um deles: em muitos meios conservadores norte-americanos – aqueles mesmos que, no nosso catálogo mental, seriam os mais associados aos interesses das grandes empresas –, a Nova Ordem Mundial é abominada como temível ameaça à soberania nacional dos Estados Unidos . Na visão dessas pessoas, o Federal Reserve System que governa hoje a economia norte-americana é uma intervenção estrangeira, o resultado de uma conspiração de poderosos interesses multinacionais que pretendem transformar a nação ianque em instrumento passivo de um inédito esquema onde, pela primeira vez na História humana, o futuro será inteiramente fabricado em laboratório, re-baixando a democracia à condição de um véu de fumaça para encobrir secretos manejos de engenharia social.

Como os sujeitos que dizem isso destoam das nossas expectativas quanto ao que deve ser a conduta supostamente típica de um imperialista ianque, livramo-nos deles num relance, decretando que devem ser uns esquisitões irrelevantes ou então agentes disfarçados da mesma conspiração que condenam. À horrenda perspectiva de ter de pensar para poder compreender um fenômeno estranho, optamos, no primeiro caso, por imaginar que sabemos melhor que os americanos quem é e quem não é importante na sua política interna; no segundo, como bons paranóicos, apostamos num maquiavelismo hiperbolicamente satânico do denunciante para não ter de nos preocupar com a hipótese mais dosadamente maquiavélica que ele denuncia.

Em ambos os casos, é a Operação Avestruz em marcha.

A intelectualidade brasileira nunca foi muito hábil em prever para onde vai o mundo, e nós dentro dele. Pois agora sua minguada capacidade preditiva vai sendo ainda mais debilitada, com a ajuda de uma imprensa unanimista onde o que não sai num jornal não sai em nenhum deles, e em coro, diante de qualquer fato novo, recua com o horror do poeta García Lorca ante a “sangre derramada” de seu amigo, toureiro morto na arena:

– No! Yo no quiero verla!

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