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O sorriso e a baba

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 18 de fevereiro de 1999

Já tenho assinalado, aqui, a perigosa farsa que consiste em rotular de “direitista” o governo FHC. Um governo direitista não tolera paternalmente invasões de terras, não incentiva o sexo livre sob a desculpa de prevenção da aids, não subscreve slogans feministas e abortistas, não impõe o controle estatal do vocabulário e, sobretudo, não transforma o ensino público numa rede de propaganda marxista (v. os artigos de J.O. de Meira Penna no JT sobre os livros didáticos oficiais).

FHC é um esquerdista, um gramsciano de carteirinha, apenas em parte comprometido, na esfera econômica e exclusivamente nela, a fazer aos capitalistas certas concessões que um governo comunista as faria ainda maiores, se isto lhe interessasse, como as fez o próprio Lenin nos primeiros anos da URSS ou as faz hoje a inabalável ditadura chinesa.

A vantagem que os comunistas obtêm da lenda de um FHC direitista é óbvia: nas camadas profundas e de longo alcance – a educação, a formação da mentalidade nacional –, o governo vai preparando o terreno para o comunismo, enquanto na superfície do noticiário todos os seus erros e desvarios são explorados para atrair o ódio popular sobre uma “direita” evanescente e fantasmal. Cinco décadas de hegemonia mental esquerdista fazem o resto, ajudando a manter as atenções dos liberais fixadas nas manchetes econômicas, onde uma inconsciente impregnação marxista os ensinou a ver o motor decisivo do processo histórico – enquanto os comunistas, mais espertos, preferem apostar na ação cultural, usando a doutrina do primado do econômico apenas a título de trompe l’oeil.

Se o governo social-democrata e a oposição comunista houvessem tramado conscientemente a farsa, ela não teria igual sucesso. Mas, de fato, não é preciso planejar nada: que no estupro revolucionário das nações os social-democratas desempenhem docilmente o papel de preservativos, prestes a ser jogados na lata de lixo da História uma vez consumado o ato, é algo que está simplesmente na natureza das coisas. E a partilha do cenário entre duas forças de esquerda, onde a menos truculenta faz as vezes de “direita”, assinala nada menos que o deslocamento estrutural do eixo, da qual se deduz para que lado vai ser a queda.

Mas isso não quer dizer que os comunistas permaneçam inativos, aguardando comodamente a hora de embolsar os lucros do investimento social-democrata. Eles agem mais que nunca. E como, para passar da fase da “revolução passiva” à tomada do poder, nada mais urgente que o apoio das Forças Armadas, eis que, nos últimos anos, a palavra de ordem nos círculos esquerdistas é: lamber o ego militar. Paparicar, bajular, seduzir, ocultar sob a imagem de um futuro róseo um passado de ressentimentos que insiste, não obstante, em se infiltrar nas entrelinhas do discurso incensatório, como a gota de baba no canto de um sorriso hipócrita. Infiltra-se, às vezes, por um simples erro de diagramação: na edição de janeiro da revistinha fidelista Caros Amigos , Gilberto Vasconcellos, comentando na página 10 o número anterior, celebra uma entrevista antiamericana do almirante Sérgio Ferolla como “o fim do dissídio entre civis e militares”. Desnecessário comentar a pretensão calhorda que identifica esquerda armada e “sociedade civil”: o engodo verbal é desmentido com todas as honras na página seguinte, onde um ato falho freudiano de Frei Betto proclama a morte de Tito de Alencar Lima (o dominicano que delatou Marighela) como “o que de mais hediondo produziu o militarismo brasileiro”. No esquerdismo, nem tudo, como se vê, é esperteza maquiavélica: o ódio recalcado vaza pelas rachaduras da máscara afetuosa, desmantelando a improvisada encenação. E, se ninguém se reconcilia com o adversário atirando-lhe na cara discursos sobre seus “feitos hediondos”, talvez seja bom aos esquerdistas saber que a memória militar não é tão facilmente manipulável pela mídia como a dos civis. Vale a sugestão: leiam A Grande Barreira: Os Militares e a Esquerda Radical no Brasil (1930-1968) , do coronel J. F. Maya Pedrosa, publicado meses atrás pela Biblioteca do Exército com o apoio pessoal do ministro Zenildo Lucena, e verão que o Exército brasileiro ainda não está suficientemente idiotizado para começar a acreditar em vocês.

Rumo ao socialismo

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 4 de fevereiro de 1999

Se há uma entidade que nunca discriminou ninguém por ser de esquerda, é o Instituto Brasileiro de História e Geografia Militar, que funciona na casa que foi do marechal Deodoro, no Campo de Sant’Anna, Rio de Janeiro. O historiador comunista Nelson Werneck Sodré tomou posse lá em pleno 1964, sentando-se ao lado do marechal Castelo Branco, do qual escrevia coisas horríveis na Revista Civilização Brasileira . Outra entidade que ficou famosa pela tolerância mútua entre membros de ideologias diferentes é o P. E. N. Club, organização internacional de escritores que muito fez pela liberdade de opinião no mundo inteiro.

O Instituto não mudou, mas o P. E. N. já não é mais o mesmo. O presidente do Instituto e diretor da Biblioteca do Exército, cel. Luís Paulo Macedo Carvalho, que foi eleito no ano passado para o clube, acaba de receber do presidente do P. E. N., Marcos Almir Madeira, um pedido dos mais extravagantes: que escreva uma carta renunciando a tomar posse, alegando um motivo imaginário qualquer. Madeira explicou ao coronel que uma comissão de escritores esquerdistas o havia procurado para exigir que expelisse da entidade o membro recém-eleito, por ser este um amigo pessoal do general Augusto Pinochet.

O coronel respondeu que, nessa altura dos acontecimentos, seria para ele uma honra ser barrado no baile, mas que ele não era idiota o bastante para barrar-se a si mesmo, cabendo, pois, ao próprio Marcos Almir, se quisesse assumi-lo, o honorável encargo de inventar a mentirinha, com ou sem a ajuda do misterioso lobby esquerdista a cujas exigências se mostrara tão solícito.

O cel. Macedo foi apenas colega de estudos de Pinochet e não teve a menor participação nos acontecimentos que viriam a tornar o general a bête noire da mídia esquerdista mundial. Para o lobby esquerdista, isso não interessa. Partindo do princípio de que na direita não há seres humanos, apenas vampiros e lobisomens, qualquer aproximação com essas criaturas, mesmo casual e extrapolítica, expõe o suspeito a um risco de contaminação diabólica que o torna um potencial inimigo público. Expeli-lo da sociedade decente é, pois, dever do Estado e do cidadão. Já o contrário se passa no outro lado do espectro político, onde mesmo o fato de um sujeito ter sido agente do serviço secreto cubano, como se passou com o líder petista José Dirceu (v. Luís Mir, A Revolução Impossível ), não o desqualifica para os mais altos cargos na administração da República brasileira; e onde a amizade com Fidel Castro, principalmente se acompanhada de cumplicidade política, conta muitos pontos na avaliação de um curriculum para o Senado, o Ministério, a Academia ou a Vida Eterna.

O coronel não é a primeira vítima dos “comitês de salvação pública” que hoje dominam as instituições culturais, o mundo editorial e a imprensa em geral. Em cada grande editora, em cada grande jornal ou revista, já estão funcionando a pleno vapor os comitês internos destinados a no momento devido expulsar os proprietários e tomar de assalto as empresas, mas que, tendo em vista a suposta inevitabilidade da revolução socialista, se consideram desde já os legítimos dirigentes, provisoriamente cerceados no seu direito de mandar pela escandalosa intromissão de usurpadores capitalistas. Cerceados, é claro, timidamente. Nenhum proprietário de jornal ou revista é hoje louco o bastante para contrariar de maneira ostensiva o poder do lobby esquerdista na sua empresa, do qual quase todos se tornaram reféns por preguiça e covardia.

O mais nojento em toda a história é a boa consciência com que os administradores do futuro Brasil socialista se permitem, por antecipação, mandar e desmandar, oprimir e demitir, censurar e controlar. Nunca um deles parou para pensar que, se pode haver algo de imoral na dominação capitalista, que se afirma pelo dinheiro, muito mais imoral é a expropriação socialista, na qual arrivistas e aproveitadores, da noite para o dia, se autonomeiam senhores e donos de tudo sem outro investimento de risco senão uma cota de engodo, de violência e de arrogância.

Não, essa gente não tem problemas de consciência. E terá menos ainda no futuro, quando ao seu poder de fato se acrescentar a conquista do poder nominal, que tudo santifica perante a deusa História.

A metonímia democrática

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 21 de janeiro de 1999

Devo aos leitores, talvez, uma explicação sobre o artigo anterior, que saiu muito compacto. O que eu dizia ali é o seguinte: ao contrário do que afirma Bobbio (repetindo Jefferson, segundo me lembra um amável missivista), mais democracia não é o remédio para os males da democracia: é o começo da ditadura.

Explico-me.

Com tanta freqüência e de boca tão cheia os tolos e os espertalhões falam de “democracia social”, de “democracia cultural” e até de “democracia sexual”, que acabamos esquecendo que o uso da palavra “democracia” fora do estrito domínio político-jurídico é apenas uma figura de linguagem – a qual, tomada ao pé da letra, resulta em completo nonsense .

Democracia é o nome de um regime político definido pela vigência de certos direitos. Como tal, o termo só se aplica ao Estado, nunca ao cidadão, à sociedade civil ou ao sistema econômico, pois em todos os casos o guardião desses direitos é o Estado e somente ele. Só o Estado pratica – ou viola – a democracia. A sociedade civil vive nela e se beneficia de seus direitos, mas nada pode fazer a favor ou contra ela, exceto através do Estado. O homem que oprime seu vizinho não atenta contra “a democracia”, mas apenas contra um direito individual, o qual existe só porque o oprimido e o opressor são ambos cidadãos de um Estado democrático: democracia é o pressuposto estatal desse direito, não o exercício dele pelo sr. fulano ou beltrano. Se o mesmo direito não existisse, isto é, se o Estado não o reconhecesse, não é o opressor individual que seria antidemocrático, mas sim o Estado. Quando se diz que um cidadão “pratica a democracia” porque respeita tais ou quais direitos, o uso da palavra é rigorosamente metonímico: democrática não é a ação individual em si, mas sim o quadro jurídico e político que a autoriza ou determina.

Do mesmo modo, se uma empresa decide nivelar as diferenças de salários entre seus empregados de funções idênticas, ela não está “praticando a democracia”, mas apenas pondo em prática um direito que existe porque o Estado democrático o assegura. E se ela fizer o mesmo fora de um Estado democrático, nem por isto estará implantando uma democracia, pela simples razão de que age por iniciativa isolada, incapaz, por si, de estatuir direitos. Democrático ou antidemocrático é o Estado e somente o Estado; os cidadãos e os grupos sociais são apenas obedientes ou desobedientes à ordem democrática. A democracia é nada mais que a ordem política e jurídica na qual certos atos são possíveis – e dizer que estes atos são “democráticos” é tomar o condicionado pela condição que o possibilita: é metonímia.

Mas o erro em que incorre quem toma literalmente a sério expressões como “democracia econômica” ou “democracia social” vai muito mais fundo do que um mero deslize semântico. Pois a transposição da idéia democrática para outros campos além do político-jurídico, em vez de estender a esses domínios os benefícios que a democracia assegura no seu domínio próprio, resulta apenas em ampliar o domínio político-jurídico: tudo se torna objeto de lei, tudo fica ao alcance da mão da autoridade. Mas a democracia, por essência, consiste justamente em limitar o raio de ação do governante: estendê-la é destruí-la.

Daí que a vitória mundial da idéia democrática traga, consigo, a tentação suicida de tudo democratizar, que no fim das contas é tudo politizar, dando àquele que tem o poder político um poder ilimitado sobre todos os outros domínios e esferas da vida. Só por uma ilusão verbal é que se pode imaginar uma “democracia sexual”, por exemplo, como um paraíso libertário: a submissão da vida sexual aos critérios democráticos é a universal invasão de privacidade – e esse grão-hierofante da democracia ilimitada, que é o sr. Bill Clinton, está finalmente sentindo na carne os efeitos da sua própria bruxaria.

O remédio para os males da democracia não está em mais democracia: está em reconhecer que a democracia não é o remédio de todos os males.

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