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Drogas e prioridades

Olavo de Carvalho

Folha de S. Paulo, segunda-feira, 24 de abril de 2000

O dr. José Carlos Dias, ao sair do Ministério da Justiça alertando o governo para “não transigir com os reacionários e a direita”, mostrou que estava no cargo menos para combater o tráfico de drogas do que para fazer política de esquerda. Que esses objetivos fossem conflitantes, nada mais natural: a esquerda fez a apologia das drogas desde a década de 60 e é moralmente responsável pela disseminação do vício. Se, passados quarenta anos, a troca de gerações no poder eleva um esquerdista à posição de repressor oficial do tráfico, ele pode até se esforçar para dar uma aparência verossímil ao seu desempenho, mas acabará se traindo mais dia menos dia e confessando que sua luta não era contra os traficantes e sim contra “a direita”. De fato, como poderia desejar mover guerra ao tráfico um adepto confesso da liberação das drogas? E o ex-ministro não se limitou a suportar como formalidade incômoda seu papel de comandante nessa luta, mas arrogou à sua pessoa o controle dos meios práticos de combate, condenando as iniciativas independentes. Como explicar o ciumento apego desse homem ao comando de uma guerra que declaradamente não era a sua, exceto pela hipótese de que ao assumi-lo ele tivesse outros objetivos, mais discretos e a seu ver mais relevantes?

Para um esquerdista, a luta ideológica é tudo. Todos os demais objetivos e desejos humanos, por mais elevados e urgentes, devem ser subordinados a essa exigência primeira, única e obsediante: derrubar a democracia capitalista, instaurar em seu lugar o império da nomenklatura. O combate às drogas não constitui exceção. Se nas circunstâncias do momento ele serve acidentalmente ao supremo objetivo político, pode até ser usado. Se é inútil ou indiferente a esse fim, deve esperar pacientemente na longa fila de prioridades. E se por acaso se opõe aos intuitos revolucionários, deve ser substituído pela propaganda das drogas e pela resistência a todo esforço repressivo, como o foi nos anos 60 e 70. Os esquerdistas, enfim, não têm nada contra ou a favor das drogas: simplesmente servem-se delas ou da sua repressão conforme lhes convenha.

Não estou pondo em dúvida a moralidade pessoal do ex-ministro, estou apenas dizendo aquilo que sempre disse: que não existe nem pode existir esquerdista intelectualmente honesto, que esquerdismo é, por definição, desonestidade intelectual. Essa desonestidade pode permanecer disfarçada durante algum tempo, mas desponta em toda a plenitude da sua feiúra sempre que um esquerdista sobe a um cargo de poder no “Estado burguês”: aí não é mais possível esconder a dupla lealdade que o compromete, de um lado, com a defesa do Estado, de outro, com a sua destruição. Por mais elevada que seja sua intenção, ele terá de apelar a todas as complacências dialéticas de uma moralidade frouxa para se acomodar a uma condição objetivamente contraditória. Ninguém pode passar por isso sem se corromper interiormente e sem espalhar no ambiente os germes da sua inconsistência. Ser esquerdista, nessas horas, é necessariamente incorrer na maldição bíblica: bilinguis maledictus, maldito o homem de duas línguas.

Isso tornou-se patente não só no caso do ex-ministro Dias como também no do ex-subsecretário da Segurança do Rio de Janeiro, Luís Eduardo Soares, criatura bifronte, que com uma de suas cabeças perseguia os policiais envolvidos com o tráfico e com a outra dava respaldo ao amigo banqueiro para ajudar um traficante a estudar guerrilha. A explicação do aparente paradoxo reside, como sempre, na unidade do critério ideológico subjacente às ações opostas: há um tráfico bom e um tráfico mau. O mau é aquele que se alia a velhas elites policiais comprometidas com o passado, com o regime militar e, numa palavra, com a “direita”. O bom é aquele que almeja fazer parceria com os guerrilheiros de Chiapas para armar no Brasil a maior guerra civil de todos os tempos e instaurar aqui o “reino de Deus na Terra”, que é como Frei Betto, uma indiscutível autoridade em assuntos celestes e terrestres, denomina o regime cubano. A Banda Podre não é podre por ser podre, mas por ser “de direita”. A podridão esquerdista é pura e sem mácula como uma hóstia consagrada. Confirma-o a beatificação de João Moreira Salles, celebrada na Sala da Cinemateca pela fina flor do radicalismo chique quando do lançamento do filme “Notícias de uma Guerra Particular”, um ataque moralista ao hediondo costume que os policiais têm de atirar nos traficantes que atiram neles. Contra esse modo “militaresco” (sic) de lidar com os pobres e oprimidos capitães do tráfico, o seráfico cineasta propõe um método alternativo mais humano e cristão: dar-lhes dinheiro para que vão ao Exterior aprimorar seus conhecimentos da técnica de matar.

Perseguir os traficantes, ajudá-los ou simplesmente esquecê-los é, pois, para a mentalidade esquerdista, uma simples questão de oportunismo. Prioridade, mesmo, só existe uma: eliminar a execrável “direita”, seja com a ajuda dos traficantes, seja a despeito deles, seja enterrando-os na mesma cova com os “reacionários”. O ex-ministro Dias pode, na sua imaginação subjetiva, ter tentado levar a sério o papel de supremo-comandante do combate às drogas. Mas seu velho comprometimento ideológico, mais durável e exigente que as obrigações passageiras de um cargo público, acabou por prevalecer. Outro tanto passou-se na alma do Dr. Luís Eduardo Soares.

Se fosse possível existir um esquerdista intelectualmente honesto, esse homem de exceção compreenderia que a erradicação do flagelo das drogas é um objetivo que deve estar acima de toda picuinha ideológica, que esquerdistas, direitistas e quantas mais facções políticas existam devem unir-se incondicionalmente numa guerra qual depende a salvação das futuras gerações. Mas esse homem não é o ex-ministro Dias, como também não é o dr. Soares.

13 de abril de 2000

Apêndice

Apelo dramático ao sr. Caio Aguilar Fernandes

“No mínimo confusas as idéias do sr. Olavo de Carvalho (“Drogas e prioridades”, Folha de S. Paulo, 24 de abril de 2000): abusando da adjetivação e de generalizações mancas como argumento de autoridade, vincula a esquerda nacional à disseminação das drogas na atualidade. Nada mais intelectualmente honesto que isso.”

Caio Aguilar Fernandes
( Ribeirão Preto, SP)

“Painel do Leitor”, Folha de S. Paulo, 25 de abril de 2000.

Nota de Olavo de Carvalho

Se alguém conhece o signatário da coisa acima reproduzida, favor solicitar-lhe que forneça, para alívio do perplexo e inconsolável autor do artigo mencionado, os seguintes itens:

  1. Lista das confusões que observou no artigo e provas de que elas estão no texto, não na cabeça do leitor.
  2. Lista dos adjetivos sobrantes, e razões pelas quais os referidos seriam dispensáveis.
  3. Lista das generalizações mancas e provas de que mancam.
  4. Explicação de como uma generalização afirmada pelo próprio autor de um texto pode ser ao mesmo tempo um argumento de autoridade invocado por ele.

1 de maio de 2000

João Ubaldo e o besteirol

Texto e comentário

  1. O besteirol dos 500 anos

JOÃO UBALDO RIBEIRO

O Estado de S. Paulo, domingo, 23 de abril de 2000

Levando-se em conta nossa pitoresca realidade contemporânea, até que a quantidade de besteiras ditas e escritas sobre o controvertido aniversário do Brasil não dá para surpreender. O que chateia um pouquinho é que diversas dessas besteiras continuarão a perseguir-nos pela vida afora, algumas talvez trazendo conseqüências indesejadas. A principal delas, naturalmente, é a de que o Brasil começou em 1500, quando nem mesmo no nome isso aconteceu, posto que éramos uma ilha quando os portugueses primeiro viram as terras daqui e, durante muito tempo, o Brasil que duvidosamente existia não tinha nada a ver com o Brasil de hoje.

A impressão que se tem é que, do povo às autoridades e mesmo aos entendidos, acha-se que o Brasil já estava no mapa, com as fronteiras e características atuais, no momento em que Cabral chegou. Teria tido até um nome nativo, já proposto, pelos mais exaltados, para substituir “Brasil”: Pindorama, designação supostamente dada pelos índios ao nosso país. Não sou historiador, mas também não sou tão burro assim para acreditar que os índios tinham qualquer noção geopolítica, ou alguma idéia de que pertenciam a um “país” chamado Pindorama. Não havia qualquer país, é claro, nem sequer a palavra Pindorama devia fazer sentido para os ocupantes que os portugueses encontraram aqui, se é que ela era usada mesmo. No máximo, significaria o único mundo conhecido deles. Parece assim que os nossos índios administravam impérios e cidades como os dos maias, astecas ou incas, quando na verdade, que perdura até hoje, viviam neoliticamente e a maioria esgotava os numerais em três – era o máximo que conseguiam contar e o resto se designava como “muito”.

Como corolário disso, vem a tese de que fomos invadidos. Com perdão da formulação pouco ortodoxa da pergunta, quem fomos invadidos? Todos nós, salvante os mais ou menos 400 mil índios que sobraram por aí, somos descendentes dos invasores, inclusive os negros, que não vieram por livre e espontânea vontade, mas também não viviam aqui na época de Cabral e hoje constituem parte indissolúvel de nossa, digamos assim, identidade. Imagino que haja quem pense que, diante de uma delegação portuguesa, algum diplomata ou general índio tenha argumentado que se tratava da ocupação ilegal de um Estado soberano do Oiapoque ao Chuí e que aquilo não estava certo, cabendo talvez a intervenção das Nações Unidas.

Se a História tivesse tomado rumos um pouquinho diferentes, nossa área hoje podia estar subdividida em vários países diferentes, uns falando português, outros espanhol, outros holandês, outros francês. Do Tratado de Tordesilhas às capitanias hereditárias, aos movimentos separatistas e à ação do barão do Rio Branco, muita coisa se passou para que nos tenhamos tornado o Brasil que somos hoje. Ninguém chegou aqui e descobriu o Brasil já pronto e acabado (se é que podemos falar assim mesmo agora), isto é uma perfeita maluquice. O Brasil, é mais do que óbvio, se construiu lentamente e às vezes aos trancos e barrancos.

Compreende-se que nativos de países como o Peru, o México e outros, notadamente na América Central, se sintam invadidos. Até hoje são numerosos e discriminados, muitos nem falam espanhol e, quando aportaram os conquistadores, tinham cidades maiores do que as européias. (3) Mas nós? Quem, com a notável exceção do amigo pataxó e da jovem senhora xavante que ora me lêem, foi aqui invadido? Vamos supor, já jogando no terreno da absoluta impossibilidade, que o chamado mundo civilizado ignorasse a existência destas terras até hoje. Teríamos aqui, não o Brasil, mas uns 4 milhões de nativos de beiço furado e pintados de urucu e jenipapo (nada contra, até porque furamos as orelhas, nos tatuamos e usamos batom, é uma questão de estilo), que não falavam as línguas uns dos outros, matavam-se entre si com alguma regularidade e cuja tecnologia não era propriamente da era informática. Brasil mesmo, nenhum.

Mas está ficando politicamente correto, suspeito eu que por motivos incorretíssimos, abraçar a tese da invasão do Brasil. “Nós fomos invadidos, fomos invadidos!”, grita em português brasileiro, a única língua que sabe, um manifestante mulato, em Porto Seguro. Será possível que não se perceba a vastidão dessa sandice? Daqui a pouco – e aí é que mora o perigo – entra na moda de vez e os resquícios das nações indígenas que ainda subsistem deverão aspirar à soberania sobre os territórios que ocupam. Como na Europa Oriental, cada etnia quererá ter seu Estado e sua autonomia, com bandeira, hino, moeda (dólar, para facilitar) e passaporte. Que beleza, forma-se-á por exemplo, depois de um plebiscito entre os índios, o Estado Ianomâmi, completamente independente e ocupando área bem maior do que muitos outros países do mundo juntos, reconhecido pelas organizações internacionais e protegido pelo grande paladino da liberdade dos povos, os Estados Unidos, que mandariam missionários e ajuda econômica e tecnológica e, dessa forma, investiriam desinteressadamente numa área tão pobre em recursos econômicos e que tão pouca cobiça desperta, como a Amazônia. E, se protestássemos, a Otan bombardearia o Viaduto do Chá, a ponte Rio-Niterói e o Elevador Lacerda, como advertência. Cometeram-se e cometem-se crimes inomináveis contra os índios, que devem ter seus direitos assegurados. Também se cometeram e cometem crimes contra grande parte dos brasileiros não-índios, outra vergonha que precisa ser abolida. Mas isso não tem nada a ver com a tal invasão, assim como a outra série de besteiras intensamente veiculada, segundo a qual, se não houvéssemos sido colonizados pelos portugueses, estaríamos em melhor situação, assim como estão em melhor situação a antiga Guiana Inglesa, o Suriname, a Indonésia, a Nigéria, a Somália, o Sudão e um rosário interminável de ex-colônias européias, quando na verdade se trata de um caso claro de o buraco achar-se bem mais embaixo. Como é que se diz “babaquice” em tupi-guarani?

  1. Comentários de Olavo de Carvalho

Não há nada a comemorar. O descobrimento foi uma violência, um estupro, um roubo que privou de seus direitos os autênticos brasileiros, habitantes e donos desta terra por usucapião desde milênios antes da chegada dos portugueses, que só trouxeram maldade e doenças a esses povos que aqui viviam em harmonia paradisíaca.”

Nenhuma frase foi mais repetida na comemoração dos 500 anos de Brasil. Martelada e remartelada dia e noite por intelectuais e políticos, índios e antropólogos, Tvs e rádios, jornais e cartazes, camisetas e livros de escola. Um massacre publicitário. É próprio desse tipo de propaganda atemorizar preventivamente os recalcitrantes, numa advertência tácita de que não se atrevam a contestar nem mesmo em pensamento a mensagem onipresente. E de fato ninguém se atreve: cada um teme ser olhado com hostilidade, excluído da comunidade dos bons cidadãos, acusado de racismo, de nazismo, de virtual assassino de índios e negros, um genocida, um inimigo da espécie humana, um verdadeiro Judas, responsável pelo Holocausto, pela crucificação de Cristo, pela extinção do mico-leão dourado, pelas taxas de juros e pela explosão de Chernobyl.

Nenhuma campanha de persuasão pública, ao longo de toda a nossa História, se compara a essa lavagem cerebral de proporções continentais. Nem para fazer a Guerra do Paraguai, para derrubar o Império, para abolir a escravatura, para enfrentar o Eixo nos campos da Itália ou para vencer quatro Copas do Mundo mobilizamos tanta energia propagandística quanto nesse esforço nacional para transformar 500 anos de história numa ocasião de vergonha, luto e penitência, para negar enfim a legitimidade moral da nossa existência enquanto nação.

Curiosamente, ouvi essa frase pela primeira vez aos dez ou onze anos, e não levei mais de cinco minutos para perceber que se tratava de um raciocínio esquizofrênico, de uma contradição de termos, de um joguinho lógico tipo Aquiles e a tartaruga. Mas, naquela época, ela era dita cum grano salis. Quem a pronunciava tinha a consciência de enunciar um gracejo para mexer com portugueses ou uma mentirinha piedosa para massagear o ego indígena.

Hoje todos a repetem a sério, com ares de quem ensina uma verdade científica ou uma doutrina moral da mais alta dignidade. A reação espontânea de um cérebro sadio, de perceber no ato a incongruência, é sufocada como tentação abominável, e logo termina por desaparecer das consciências. A absurdidade consagra-se como um lugar-comum, incorpora-se à linguagem corrente como a tradução universalmente aceita de uma verdade evidente de per si.

Quando a mente de uma criatura chega a esse grau de paralisia, de estupidez, de letargia abjeta, já não há mais nada a conversar com ela. Assim é hoje o homem brasileiro. João Ubaldo Ribeiro está de parabéns por ser, dentre as vozes oficiais das classes falantes, a primeira que vence o natural desânimo e se dispõe a discutir o que, em condições normais, não teria jamais de ser discutido.

Sua crônica “O besteirol dos 500 anos” (O Estado de S. Paulo, domingo, 23 de Abril de 2000) é uma obra de caridade feita para aliviar, por instantes ao menos, a miséria mental de um povo que hoje se acomoda tão bem à mais espantosa privação intelectual quanto mais baba de indignação ante qualquer vazamento de dinheiro.

Eu gostaria apenas de acrescentar-lhe as seguintes notas:

  • Que líderes negros, ao mesmo tempo que chamam os brancos de “invasores” do Brasil, isentem da mesma pecha os membros de sua própria raça sob a alegação de que vieram a contragosto, eis um argumento muito usado nos últimos dias, e no qual há menos burrice do que racismo puro e simples. Os brancos trazidos à força como prisioneiros já formavam um contingente enorme quando os escravos negros começaram a chegar. Se a condição de invasor é definida pela participação voluntária na ocupação do território – o que está subentendido no argumento que desculpa os negros -, esses brancos evidentemente não podem ser catalogados como invasores, a não ser que o critério adotado para condenar ou absolver o participante involuntário seja estritamente racial: forçado a lutar contra os índios, o prisioneiro será declarado culpado se for branco, inocente se for negro.

 

  • Não é muito realista explicar como emanação espontânea da babaquice nacional o requintado argumento sofístico que, atribuindo a sociedades tribais as prerrogativas de modernos Estados soberanos, torna o público cego e surdo para a mais óbvia das realidades: que a noção mesma de soberania, bem como de lei e direito em geral – inclusive o direito de usucapião invocado para nomear os índios “os verdadeiros donos do Brasil” – foi trazida e ensinada pelos europeus a povos que não tinham a menor idéia dessas coisas. Para qualquer ser humano no pleno gozo de suas faculdades mentais, um direito que vem trazido no bojo de uma mudança histórica não pode ser alegado contra essa mesma mudança histórica: não se pode alegar em defesa da autoridade imperial de Pedro II as prerrogativas constitucionais dos governantes republicanos, em favor da antiga religião estatal romana os princípios cristãos que a aboliram ou em prol do domínio colonial inglês os direitos estatuídos pela Constuição Americana. A percepção intuitiva dessas coisas faz parte da natureza humana. Faz parte do que os escolásticos chamavam sindérese, o conhecimento espontâneo dos princípios básicos subentendidos em qualquer regra moral. Mas pode ser suprimida por uma doutrinação estupidificante do tipo 1984, que habitue as almas a repetir slogans autocontraditórios e a aceitá-los sem exame, até que a abstenção do juízo crítico se torne automática e irreversível. O cidadão que aceite uma vez o argumento da “nação indígena” injeta na própria mente uma espécie de vírus informático puerilizante que o incapacitará para o julgamento moral dos casos mais óbvios. Essa técnica mistificadora não foi inventada por índios analfabetos, mas por técnicos a serviço de ONGs e governos estrangeiros. Até a ONU e a Unesco dão cursos regulares sobre como criar e dirigir “movimentos sociais”, e hoje não há em parte alguma do Terceiro Mundo um só grupo revoltado que não tenha sido formado e treinado por profissionais suecos, ingleses, americanos, franceses. O discurso vem pronto e é muito bem calculado para paralisar o raciocínio crítico ante qualquer protesto apresentado em tons patéticos. No caso brasileiro, a rebelião extemporânea contra um dominador que já foi embora há dois séculos é o melhor diversionismo preventivo contra qualquer veleidade de revolta contra os invasores atuais. Crianças e adolescentes são particularmente vulneráveis a esse tipo de manipulação psicológica, hoje aplicado em todas as escolas com a aprovação e o estímulo das autoridades. Não é preciso enfatizar a brutalidade psicológica, o maquiavelismo criminoso por trás desses esforços soi disant humanitários. Mas é claro que pessoas adultas, mesmo letradas, caem no engodo com a mesma facilidade das crianças: a solicitude com que nossas lideranças de esquerda se prestam a colaborar com os novos invasores forma um contraste deprimente com os inflamados discursos nacionalistas que lhes sobem aos lábios ante o leilão de qualquer empresa estatal. E essa gente não vê a menor contradição em defender o patrimônio de uma nação ao mesmo tempo que, com o discurso antidescobrimento, se nega a legitimidade da existência mesma dessa nação. A consciência nacional está em decomposição, o Brasil está caindo para um estado de menoridade intelectual que, daqui a pouco, tornará razoáveis e legítimas quaisquer pretensões estrangeiras de nos administrar como colônia.

 

  • Não estudei os maias, mas a cultura azteca, com todo o seu avanço tecnológico, era uma monstruosidade, um totalitarismo sangrento fundado no sacrifício ritual de seres humanos. Diariamente, em cada cidade e aldeia, se arrancava o coração de uma vítima, geralmente criança, para oferecê-lo ao deus Sol, a pretexto de persuadi-lo a iluminar a Terra na manhã seguinte. Em 1985 visitei o Museu da Universidade Livre e inúmeros templos remanescentes em vários pontos do México, lendo o que encontrava a respeito e observando, nos monumentos e pinturas sacras, as marcas da imaginação inconfundivelmente macabra de toda uma civilização que não conseguia conceber a divindade senão sob o aspecto do terrível e do persecutório. Além disso, os aztecas foram apenas os últimos da fila numas dezenas de povos que ali se sucederam na base da destruição sangrenta dos antecessores, não raro por meios de uma covardia ímpar, como por exemplo espalhar cascavéis numa aldeia adormecida ou convidar os membros da tribo vizinha para uma festa e envenená-los todos de uma vez. Os espanhóis que fizeram cessar à força esse morticínio milenar merecem a mesma gratidão que as tropas aliadas que destruíram o III Reich, com a ressalva de que estas tiveram muito menos complacência com os não-combatentes, incluindo velhos, mulheres e crianças. A sociedade azteca era tão perversa que já aspirava à sua própria destruição: quando Hernán Cortez entrou com um punhado de soldados arrasando tropas mil vezes superiores em número, os índios acreditaram que era seu deus, Quetzalcoatl, que voltava à Terra para um acerto de contas. E acho que foi mesmo. Se não foi ele, foi um deus melhor, talvez aquele a quem os espanhóis chamavam o Espírito Santo. Se existe o direito moral de protestar contra a extinção da sociedade e da religião aztecas, existe também o de proclamar que a erradicação do canibalismo, da clitorectomia ou dos campos de concentração foi uma violência cultural intolerável. Se em nome do relativismo cultural pode-se justificar os sacrifícios humanos ou qualquer atrocidade “cultural” do mesmo estilo, com muito mais razão se poderia argumentar em favor da escravatura mesma, afinal um hábito muito mais disseminado, menos truculento e economicamente mais útil do que arrancar corações para dar de comer ao Sol.

 

  • A história oficial diz que o canibalismo aqui só era praticado por umas poucas tribos. Não sei. Mas muitas outras faziam – e fizeram até recentemente — controle da natalidade pelo delicado expediente de sepultar vivas as crianças indesejadas. Com a chegada da Funai, esse costume foi progressivamente abandonado e as tribos começaram a crescer. Muitos dos índios que hoje gritam contra os “invasores brancos” teriam sido enterrados como excedente populacional se a maldita civilização ocidental não tivesse violado a integridade das culturas indígenas, ensinando-lhes que matar crianças não é um meio decente de reduzir despesas. Se ela mesma aliás vem desaprendendo essa lição, regredindo ao ponto de aceitar como normais e respeitáveis os costumes bárbaros que outrora ajudou a erradicar, é normal que ela perca rapidamente a autoridade moral que tinha sobre os índios e agora consinta em ouvir deles, com a cabeça baixa, as mais extraordinárias absurdidades.

 

  • Outra sentença repetida ad nauseam nas últimas semanas é que “os índios já estavam aqui milênios antes da chegada dos portugueses”. Daí conclui-se que cinco milhões de índios– a quarta parte da população da cidade de São Paulo – tinham a propriedade legítima e incontestável de um território maior que a Europa, enquanto dez milhões de portugueses se espremiam numa área exígua e passavam fome sem ter mais onde plantar. Na verdade os índios não tinham é propriedade nenhuma e direito nenhum, porque as tribos espalhadas pelo território não constituíam uma nação e nem sequer um condomínio, vivendo antes como bandos hostis ocupados em desalojar-se uns aos outros por meios da violência, malgrado a abundância de espaço livre, roubando aos inimigos não somente suas terras mas também – era o costume – suas mulheres, às vezes também seus cadáveres, para comê-los. E ninguém se dá conta da verdadeira cisão esquizofrênica que é preciso trazer na alma para poder advogar, a um tempo, o direito de os Sem-Terra invadirem fazendas e a legitimidade sacrossanta da posse de um continente inteiro por um grupo que constituiria, nessas condições, a mais poderosa casta latifundiária de todos os tempos.

 

  • De outro lado, os lusos também estavam na Lusitânia, os gauleses na Gália, os bretões na Bretanha e os saxões na Saxônia milênios antes da chegada dos romanos. Se vieram a crescer e tornar-se por sua vez dominadores foi porque não rejeitaram a nova cultura como um estupro, mas a aceitaram e a absorveram como um dom salvador e se tornaram, até com mais legitimidade do que os romanos, seus representantes e portadores. Muitos de nossos índios fizeram isso: abandonaram a cultura tribal, entraram na nova sociedade, adotaram a religião cristã. O Parlamento e as universisases estão repletos deles, e cada família antiga deste país se orgulha de ter mais de uma gota de sangue indígena. Os outros caíram vítimas de uma antropologia maluca intoxicada do “relativismo cultural” da charlatã Margaret Mead e empenhada em conservá-los como objetos de museu e bichinhos de estimação. Os primeiros representam a força e a glória das raças indígenas. Os segundos, a vergonha e a morbidez de um atavismo insano, alimentado e manipulado por um dominador mais rico e malicioso do que aquele contra o qual hoje ostentam uma revolta esquizofrênica e deslocada no tempo. Nada mais patético do que um índio que, acreditando ou fingindo lutar contra o fantasma do domínio português extinto, se torna instrumento e servo do dominador globalista. O barão de Itararé tinha razão ao contestar Auguste Comte: os vivos não são governados pelos mortos; são governados pelos mais vivos.

 

  • É verdade que, num Brasil cada vez mais afastado de suas raízes espirituais pelo impacto avassalador do globalismo materialista, a fidelidade dos índios às suas tradições religiosas é um exemplo capaz de fazer corar um frade se o frade for realmente de pedra e não daquela substância eminentemente não-ruborizável que forma a dupla Betto e Boff. Eu mesmo escrevi coisas bem contundentes em defesa dessas tradições. Mas elas adquirem valor somente como alternativas neo-românticas ao anticristianismo militante da sociedade moderna. Ante uma população descristianizada, elas se tornam, de maneira quase paradoxal, um testemunho de Cristo. Um testemunho parcial e tosco, mas, no deserto espiritual contemporâneo, um testemunho valioso. Mas concluir daí que são melhores do que o cristianismo pleno é subtrair-lhes até mesmo esse valor de contraste, fazendo delas apenas mais um instrumento de desespiritualização do mundo. Eis por que a preservação das tradições indígenas é uma causa ambígua, que só deve ser defendida com os maiores cuidados para que as boas intenções, caminhando sobre um fio de navalha, não sejam retalhadas e postas à venda no mercado das mentiras contemporâneas.

 

  • O protesto de João Ubaldo Ribeiro só pôde ser publicado porque veio com a assinatura de um membro da Academia bastante queridinho das esquerdas e porque se limitou a constatar, com a leveza habitual dos escritos desse autor, os aspectos mais periféricos e folclóricos de uma situação que, bem analisada, é de gravidade trágica. Qualquer abordagem mais séria do problema está rigorosamente proibida em toda a imprensa nacional. O jornalista gaúcho Janer Cristaldo sofreu ameaças, processos e exclusão do ofício pelo crime de ter denunciado como farsa (sem jamais ter sido contestado com fatos e argumentos) o suposto massacre de uns índios na fronteira Brasil-Bolívia. O livro do ex-secretário da Segurança Pública de Roraima, coronel Menna Barreto, A Farsa Inanomâmi (Biblioteca do Exército, 1996), a obra mais importante sobre o uso da fachada indigenista para a ocupação da Amazônia por ONGs e governos estrangeiros, não foi nem será noticiado em qualquer jornal deste país. Nesse depoimento ditado no leito de morte, e do qual dois terços foram suprimidos pelas autoridades antes de autorizar a publicação póstuma, o autor denuncia que nunca existiu nenhuma tribo Ianomâmi, que uma tribo biônica foi montada às pressas por agentes imperialistas para dar um arremedo de legitimidade à reivindicação de um “Estado indígena” administrado por organismos internacionais.

 

  • Com mais razão ainda, estão vetadas pela censura prévia quaisquer notícias de violências e atrocidades cometidas por índios contra as populações das cidades próximas às suas reservas (e cada brasileiro que retorna dessas regiões tem coisas horríveis a contar). Mas a probição nâo abrange somente os fatos da atualidade. As violências de índios contra brancos e a crueldade interna da sociedade indígena foram suprimidas dos livros de História, para que as novas gerações, após a lavagem cerebral que sofrem nas escolas, jamais venham a saber que a “brutal destruição” das culturas indígenas consistiu sobretudo na extinção de costumes hediondos como o canibalismo, a liquidação sistemática de prisioneiros, o sepultamento de crianças vivas e o roubo de mulheres. Outro dia, num noticiário da TV sobre uma exposição comemorativa dos 500 anos, duas imagens mostradas uma logo apósa outra resumiram da maneira mais eloqüente o estado de barbárie e de estupidez a que a mentalidade nacional está sendo reduzida pelo esforço conjugado da mídia: primeiro, vinha o arcebispo da Bahia repetindo melosamente os pedidos convencionais de “perdão” da Igreja católica por ter cristianizado os índios à força; logo em seguida, as câmeras mostravam o manto envergado pelos caciques durante o rito de devorar solenemente os cadáveres de seus adversários. Pedir perdão por ter substituído a costumes como esse a prática da religião cristã é fazer-se, despudoradamente, apóstolo de Satanás.

 

  • Raciocinando como esse prelado, eu teria também um pedido de perdão a apresentar. Meu nome de batismo é homenagem a Santo Olavo, rei e padroeiro da Noruega. A história desse santo guerreirro é contada na Saga de Olaf Haraldson, de Snorri Sturlson, leitura deliciosa, um clássico da literatura épica. Na juventude, Olavo notabilizou-se pelo gosto das aventuras e por um bizarro senso de humor: mandavam-no selar um cavalo, ele selava um bode e saía correndo para não apanhar do avô. Ainda adolescente, comandou com sucesso batalhas navais. Depois deu de rezar e, quando subiu ao trono, tornou-se o sujeito que cristianizou a Noruega a muque. Antes, as populações locais tinham costumes bem semelhantes aos dos nossos índios: invadiam aldeias para roubar mulheres, queimavam todos os prisioneiros, jogavam no lixo as crianças indesejadas. Olavo mandou parar com essa história e, para mostrar que não estava brincando, matou os chefes e sacerdotes de várias tribos e disse que faria o mesmo com quem não se batizasse. O pessoal então parou de enterrar criancinhas vivas e começou a confessar e comungar. Hediondo genocídio cultural, não é mesmo? Pensando nos feitos imperialistas desse meu homônimo, passo noites em claro, batendo no peito em crises de arrependimento midiático pela extinção da cultura viking. Afinal, aqueles fulanos estavam lá, como aqui a turminha do Xingu, milênios antes da chegada dos cristãos…

 

Direto do inferno

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 13 de abril de 2000

O clamor obsessivo dos intelectuais, dos políticos e da mídia pela “supressão das desigualdades” e por uma “sociedade mais justa” pode não produzir, mesmo no longo prazo, nenhum desses dois resultados ou qualquer coisa que se pareça com eles. Mas, de imediato, produz ao menos um resultado infalível: faz as pessoas acreditarem que o predomínio da justiça e do bem depende da sociedade, do Estado, das leis, e não delas próprias. Quanto mais nos indignamos com a “sociedade injusta”, mais os nossos pecados pessoais parecem se dissolver na geral iniqüidade e perder toda importância própria.

Que é uma mentira isolada, uma traição casual, uma deslealdade singular no quadro de universal safadeza que os jornais nos descrevem e a cólera dos demagogos verbera em palavras de fogo do alto dos palanques? É uma gota d’água no oceano, um grão de areia no deserto, uma partícula errante entre as galáxias, um infinitesimal ante o infinito. Ninguém vai ver. Pequemos, pois, com a consciência tranqüila, e discursemos contra o mal do mundo.

Eliminemos do nosso coração todo sentimento de culpa, expelindo-o sobre as instituições, as leis, a injusta distribuição da renda, a alta taxa de juros e as hediondas privatizações.

Só há um problema: se todo mundo pensa assim, o mal se multiplica pelo número de palavras que o condenam. E, quanto mais maldoso cada um se torna, mais se inflama no coração de todos a indignação contra o mal genérico e sem autor do qual todos se sentem vítimas.

É preciso ser um cego, um idiota ou completo alienado da realidade para não notar que, na história dos últimos séculos, e sobretudo das últimas décadas, a expansão dos ideais sociais e da revolta contra a “sociedade injusta” vem junto com o rebaixamento do padrão moral dos indivíduos e com a conseqüente multiplicação do número de seus crimes. E é preciso ter uma mentalidade monstruosamente preconceituosa para recusar-se a ver o nexo causal que liga a demissão moral dos indivíduos a uma ética que os convida a aliviar-se de suas culpas lançando-as sobre as costas de um universal abstrato, “a sociedade”.

Se uma conexão tão óbvia escapa aos examinadores e estes se perdem na conjeturação evasiva de mil e uma outras causas possíveis, é por um motivo muito simples: a classe que promove a ética da irresponsabilidade pessoal e da inculpação de generalidades é a mesma classe incumbida de examinar a sociedade e dizer o que se passa. O inquérito está a cargo do criminoso. São os intelectuais que, primeiro, dissolvem o senso dos valores morais, jogam os filhos contra os pais, lisonjeiam a maldade individual e fazem de cada delinqüente uma vítima habilitada a receber indenizações da sociedade má, e, depois, contemplando o panorama da delinqüência geral resultante da assimilação dos novos valores, se recusam a assumir a responsabilidade pelos efeitos de suas palavras. Então têm de recorrer a subterfúgios cada vez mais artificiosos para conservar uma pose de autoridades isentas e cientificamente confiáveis.

Os cientistas sociais, os psicólogos, os jornalistas, os escritores, as “classes falantes”, como as chama Pierre Bourdieu, não são as testemunhas neutras e distantes que gostam de parecer em público (mesmo quando em família se confessam reformadores sociais ou revolucionários). São forças agentes da transformação social, as mais poderosas e eficazes, as únicas que têm uma ação direta sobre a imaginação, os sentimentos e a conduta das massas. O que quer que se degrade e apodreça na vida social pode ter centenas de outras causas concorrentes, predisponentes, associadas, remotas e indiretas; mas sua causa imediata e decisiva é a influência avassaladora e onipresente das classes falantes.

Debilitar a consciência moral dos indivíduos a pretexto de reformar a sociedade é tornar-se autor intelectual de todos os crimes – e depois, com redobrado cinismo, apagar todas as pistas. A culpa dos intelectuais ativistas na degradação da vida social, na desumanização das relações pessoais, na produção da criminalidade desenfreada é, no seu efeito conjunto, ilimitada e incalculável. É talvez por eles terem se sujado tanto que suas palavras de acusação contra a sociedade têm aquela ressonância profunda e atemorizante que ante a platéia ingênua lhes confere uma aparência de credibilidade. Ninguém fala com mais força e propriedade contra o pecador do que o demônio que o induziu ao pecado. O discurso dos intelectuais ativistas contra a sociedade vem direto do último círculo do inferno.

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